Pular para o conteúdo principal

Bom artigo sobre honra e mídia

Do Observatório da Imprensa. Vale a leitura, o Imperador não merecia o tratamento que teve.

A MÍDIA E O IMPERADOR
Adriano, ou a honra de ser inseto

Por Sylvia Moretzsohn em 14/4/2009

Quando, certa manhã, acordou metamorfoseado num inseto monstruoso, aquele pacato caixeiro-viajante cometeu a suprema ousadia de se expor sem máscaras. A repulsa foi previsível e inevitável: a metamorfose daquele pequeno funcionário insignificante que vivia a banalidade metódica de seus dias era a metáfora de um sistema que nos desumaniza a todos, mas que só pode funcionar ao preço da ignorância de nossa condição. Assumindo-se radicalmente como inseto, aquele homem comum e medíocre era nosso espelho insuportável.

A interpretação de Hélio Pellegrino do famoso conto de Kafka, num artigo publicado originalmente em junho de 1968 no Jornal do Brasil e reproduzido vinte anos depois em livro, permite um paralelo com o caso do jogador Adriano: o ex-garoto pobre transformado em celebridade por imposição do complexo midiático-empresarial, que fabrica imperadores e outros fenômenos – e depois os descarta –, decide "dar um tempo" e provoca espanto, indignação e escárnio ao dizer que não é feliz assim e que deseja voltar a ser um homem comum. Suprema ousadia: declara seu amor pelo lugar ("a favela") onde nasceu. Por isso, precisa ser ridicularizado, execrado, criminalizado: é uma afronta insuportável rejeitar o que todos exaltam.

As verdadeiras razões do jogador talvez jamais sejam conhecidas. O que se pode, e de fato importa, avaliar são suas declarações e o tratamento que a nossa imprensa deu ao caso, pelo que revela de insensibilidade, moralismo e preconceito.

O estigma da favela

Adriano deveria ter embarcado de volta à Itália no dia 2 de abril, depois do último jogo da seleção brasileira pelas eliminatórias da Copa do Mundo. Não viajou. A partir desse fato, e dos comentários do técnico de seu clube, o Inter de Milão, de que o jogador estaria enfrentando "um problema muito sério", começaram os boatos sobre alcoolismo, drogas e depressão decorrente de uma frustração amorosa.

A aura de mistério intensificava as especulações: como não era localizado, Adriano foi dado como desaparecido, refém de traficantes, teria sido baleado e até morto.

Na verdade, nunca esteve desaparecido. Apenas não aparecia – o que é bem diferente –, e as pessoas com quem poderia ter contato não informavam seu paradeiro.

Os boatos continuaram mesmo depois de amigos, parentes e seu próprio empresário afirmarem que ele estava em casa, "com a família".

Estava mesmo, mas antes havia passado uns dias "na favela".

O medo do caveirão

Essa informação já era objeto de especulação e foi o quanto bastou para detonar a onda de preconceito. O jornal carioca O Dia caprichou: primeiro, destacou o "sumiço"; depois, misturou os ingredientes clássicos para a exploração da conduta reprovável: o convívio na favela – antro do vício, do crime e da perdição – e a "loucura" pela loura da Zona Sul, esse permanente objeto de desejo de pretos e mulatos recalcados. Assim sustentou as edições da semana: Adriano teria sido "resgatado" do morro, era suspeito de estar entre "más companhias" e de consumir cocaína – o gesto banal de esfregar o nariz, congelado numa foto casual do jogador em campo, seria indício bastante para isso –, estava tão perdido que a mãe apelava à oração ("Rezem por meu filho"), pois "salvação, só pela fé".

Ao mesmo tempo, exibida na capa, a loura siliconada de coxas suculentas, embora não desse o menor sinal de ter "caído em prantos", falava sobre o namoro conturbado: negava que o jogador usasse drogas e dizia-se cansada das tantas vezes em que foi buscá-lo no morro, a pedido da mãe dele, "que tem medo do caveirão".

Como se sabe, ninguém precisa sair de Milão ou subir o morro para consumir drogas. E a referência ao medo do caveirão – nem tanto dos traficantes –, embora tão significativa, ficou assim perdida no meio do texto.

Enxurrada de lugares-comuns

Paralelamente, O Dia explorava um jogo de contrastes e de (supostas) contradições. Assim, Adriano aparece feliz ao lado da loura, mas a "paixão maior" da manchete do caderno de esportes tinha outro sentido: o jogador não se referia à mulher, mas à favela. Da mesma forma, estaria "na favela o mesmo Adriano de sempre", embora a foto mostrasse o jogador com suas (boas ou más?) companhias, no mar da Sardenha, batizando seu iate com uma garrafa de Don Pérignon. (O jornal não cita a marca da famosa champanhe, identificável pelo formato do rótulo, talvez por considerar irrelevante esta informação para seu público "popular": champanhe, qualquer que seja, seria "coisa de rico".)

Para arrematar, quando o jogador reuniu a imprensa para comunicar sua decisão, O Dia resolveu associar a frase "dar um tempo na carreira" à negativa do uso de drogas.

Que não se perca por falta de sutileza. Por falta de criatividade, talvez: não faz muito tempo, a mesma frase foi manchete do veículo mais "popular" da casa, o Meia Hora, quando noticiou o afastamento de um ator da Globo para se tratar da dependência de cocaína.

Seria excessivo citar a enxurrada de lugares-comuns e jogos de palavras tão lamentavelmente previsíveis no jornalismo, sobretudo no jornalismo esportivo: "a queda do imperador", "o imperador nos gramados é um rei da confusão", "o imperador vê seu castelo ruir", "joga para o alto a coroa"... Justiça seja feita, imbatível mesmo foi o trocadilho cometido pelo Globo, em matéria retrospectiva que definia os muitos percalços na vida e na carreira do atacante como "a saga onde impera a dor".

É possível recuperar a dignidade

Prisioneiro de estereótipos, esse jornalismo está condenado à simplificação da lógica binária, onde não cabe qualquer complexidade.

Na entrevista coletiva em que anunciou sua decisão de "dar um tempo", Adriano disse que não estava feliz e que queria voltar a viver em seu país, junto dos amigos e da família. Em suma: voltar às raízes. Contradição absoluta no mundo da elite do futebol, que expressa com rara clareza a ideologia da desterritorialização: ali tudo se negocia, inclusive a nacionalidade. Quem pretende penetrar nesse mundo deve abrir mão de toda esperança de cultivo à identidade.

Então o Estadão anota: "Adriano troca a Inter de Milão pelo Complexo do Alemão". A Veja aponta o "milionário do morro" e repete: "Ele prefere a favela a Milão".

A favela é a Vila Cruzeiro, onde morreu Tim Lopes em 2002 e onde a polícia fez uma megaoperação de mais de três meses em 2007, matando oficialmente 19 pessoas em um só dia.

Nessa favela nasceu o menino que ganhou o apelido de Pipoca por causa do lanche que a avó trazia para a garotada que jogava bola no campo de terra. Esse menino despontou para o estrelato, mas agora renega a engrenagem que o transformou em "imperador" e diz que quer voltar para casa. Expõe-se como homem comum, e isso, no mundo de hoje, significa transformar-se em inseto: nas palavras de Hélio Pellegrino, é "dizer `basta!´ a uma estrutura social que, alienando-nos, exige de nós que sejamos, não apenas alienados, mas totalmente insensíveis e inconscientes com relação à distorção alienadora" que nos é imposta.

Reduzido a um inseto, Adriano nos mostra, mesmo sem saber, que é possível recuperar a dignidade.

Comentários

  1. Luiz Antonio, há também um excelente texto sobre o assunto na Agência Carta Maior (www.cartamaior.com.br), escrito pelo sociólogo Emir Sader. Fica na sessão "Blog do Emir", e é uma das mais recentes postagens dele. Vale a pena.

    ResponderExcluir
  2. Caro Luiz Antonio:sempre vc presta atenção na diferença entre as noticias sobre o governo na Folha e outros meios de comunicação. O editorial da Folha de hj é exemplar sobre a parcialidade do jornal. Agora sim o jornal esta condenando o escândalo da Petrobras pq envolve o PT, mas se calou diante de todos os outros escândalos recentes envolvendo demos e tucanos. Engraçado não?:

    ResponderExcluir

Postar um comentário

O Entrelinhas não censura comentaristas, mas não publica ofensas pessoais e comentários com uso de expressões chulas. Os comentários serão moderados, mas são sempre muito bem vindos.

Postagens mais visitadas deste blog

Abaixo o cancelamento

A internet virou o novo tribunal da inquisição — e isso é péssimo Só se fala na rapper Karol Conká, que saiu do BBB, da Rede Globo, com a maior votação da história do programa. Rejeição de 99,17% não é pouca coisa. A questão de seu comportamento ter sido odioso aos olhos do público não é o principal para mim. Sou o primeiro a reconhecer que errei muitas vezes. Tive atitudes pavorosas com amigos e relacionamentos, das quais me arrependo até hoje. Se alguma das vezes em que derrapei como ser humano tivesse ido parar na internet, o que aconteceria? Talvez tivesse de aprender russo ou mandarim para recomeçar a carreira em paragens distantes. Todos nós já fizemos algo de que não nos orgulhamos, falamos bobagem, brincadeiras de mau gosto etc… Recentemente, o ator Armie Hammer, de Me Chame pelo Seu Nome, sofreu acusações de abuso contra mulheres. Finalmente, através do print de uma conversa, acabou sendo responsabilizado também por canibalismo. Pavoroso. Tudo isso foi parar na internet. Ergue

OCDE e o erro do governo na gestão das expectativas

O assunto do dia nas redes é a tal negativa dos Estados Unidos para a entrada do Brasil na OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico). Enquanto os oposicionistas aproveitam para tripudiar, os governistas tentam colocar panos quentes na questão, alegando que não houve propriamente um veto à presença do Brasil no clube dos grandes, a Série A das nações. Quem trabalha com comunicação corporativa frequentemente escuta a frase "é preciso gerenciar a expectativa dos clientes". O problema todo é que o governo do presidente Bolsonaro vendeu como grande vitória a entrada com apoio de Trump - que não era líquida e certa - do país na OCDE. Ou seja, gerenciou mal a expectativa do cliente, no caso, a opinião pública brasileira. Não deixa de ser irônico que a Argentina esteja entrando na frente, logo o país vizinho cujo próximo governo provavelmente não será dos mais alinhados a Trump. A questão toda é que o Brasil não "perdeu", como o pobre Fla-Flu que impe

Rogério Andrade, o rei do bicho

No dia 23 de novembro do ano passado, o pai de Rodrigo Silva das Neves, cabo da Polícia Militar do Rio de Janeiro, foi ao batalhão da PM de Bangu, na Zona Oeste carioca, fazer um pedido. O homem, um subtenente bombeiro reformado, queria que os policiais do quartel parassem de bater na porta de sua casa à procura do filho — cuja prisão fora decretada na semana anterior, sob a acusação de ser um dos responsáveis pelo assassinato cinematográfico do bicheiro Fernando Iggnácio, executado com tiros de fuzil à luz do dia num heliporto da Barra da Tijuca. Quando soube que estava sendo procurado, o PM fugiu, virou desertor. Como morava numa das maiores favelas da região, a Vila Aliança, o pai de Neves estava preocupado com “ameaças e cobranças” de traficantes que dominam o local por causa da presença frequente de policiais. Antes de sair, no entanto, o bombeiro confidenciou aos agentes do Serviço Reservado do quartel que, “de fato, seu filho trabalhava como segurança do contraventor Rogério And