Pular para o conteúdo principal

Sobre o fumo e as incoerências tucanas

Um bom artigo sobre a lei antifumo do governador José Serra (PSDB) saiu na revista Época desta semana. Vale a leitura, até porque o autor é bastante sincero e avisa logo que é fumante.

Este blog defende uma posição bastante particular neste debate: assim como existe casa noturna com frequência exclusivamente gay (há também as tais GLS), deveria ser regulamentado um número determinado de "franquias" para restaurantes, bares e casas noturnas em que o fumo seria permitido. Digamos que 20% ou 10% dos estabelecimentos seriam livres para fumantes, com avisos na porta, bem claros – pode até ser uma caveirinha humana com dois cigarros acesos cruzados embaixo ou a cara feia do governador Serra, tanto faz. A proibição valeria para 80% ou 90% dos locais e os empresários que quisessem poderiam operar o nicho do público fumante sem maiores dores de cabeça. Quem não fuma tem seus direitos preservados - basta não entrar nos esfumaçados ambientes livres para o cigarro - e quem fuma pode se enfurnar entre seus companheiros de trago e de dor sem ser visto com uma espécie de ET.

É evidente que a lei do governador José Serra tem um viés totalitário – o texto chega ao cúmulo de proibir tabacarias de servir comida, o que não faz sentido: por que diabos o pessoal que curte um charuto não pode bebericar e petiscar entre uma tragada e outra? Por outro lado, também é verdade que a tendência mundial é mesmo a de restringir o direito dos fumantes. O blog concorda plenamente com a proibição em praticamente todos os locais públicos e privados fechados, à exceção de residências, mas considera que é preciso um pouco de bom senso em relação a locais em que o fumo é tradicionalmente utilizado, como bares e casas noturnas, em especial. A "cota para fumantes" resolveria esta questão com facilidade, sem prejuízo para os não fumantes. Abaixo, o texto de Ricardo Amaral publicado em Época.

Por que não proíbem logo fabricar cigarros?

A lei antifumo de Serra não combate o cigarro: ela estigmatiza o fumante e envenena a sociedade

Ricardo Amaral

É difícil apontar o pior defeito da lei antifumo que o governador José Serra fez aprovar na Assembleia Legislativa de São Paulo. Ela consegue ser iníqua, demagógica e ineficaz ao mesmo tempo. Serve pouco ou nada para reduzir os males ou combater o vício do tabagismo, mas contribui, e muito, para fomentar uma histeria discriminatória que anda envenenando as relações sociais. Não é uma lei contra o cigarro. É só mais um instrumento, com o peso do Estado, para estigmatizar o fumante.

Vou logo avisando: fumo, desde os 15 anos de idade, uma quantidade razoável de cigarros por dia. Não menos do que 15, às vezes até 30 ou mais, depende. Ao longo dos anos, prejudiquei a saúde e o bem-estar de quem conviveu comigo em salas, gabinetes, redações – e, pasmem as novas gerações, também em cinemas, teatros, ônibus e aviões (em elevadores, só na Europa). O tempo do tabagismo selvagem e estúpido passou. Meu passivo hoje é com minha própria saúde e com a estabilidade emocional dos meus filhos, minha mulher e de todos que gostam de mim, apesar do cigarro. Não são poucos motivos para parar de fumar. Posso dispensar o concurso do governador e dos senhores deputados.

Se o leitor continuar disposto a considerar os argumentos de um fumante, mesmo suspeito de parcialidade, vamos a eles. Basta um teste simples para saber se uma iniciativa é realmente eficaz para reduzir o consumo de cigarros: conferir a reação dos fabricantes. A Lei Serra nem sequer fez cócegas na indústria do fumo. Os sindicatos dos hoteleiros e dos donos de bares e restaurantes é que anunciam ações judiciais contra a nova lei. Devem ganhar, mas vão pagar o desgaste de uma ação considerada politicamente incorreta. A indústria do cigarro só se mexe quando é atingida no cofre, pela elevação de impostos, ou no balcão, pelo controle dos pontos de venda.

Há um detalhado estudo sobre a relação entre impostos, preços e consumo de cigarros feito pelo economista Roberto Iglesias para a Aliança de Controle do Tabagismo no endereço http://actbr.org.br/uploads/conteudo/200_Precos-impostos-ACTBR.pdf. Ele demonstra como a indústria brasileira viveu os últimos dez anos num paraíso fiscal de tabacaria, sob o pretexto de combater o contrabando, e como essa política aumentou o consumo interno. Entre 1998 e 2007, o peso relativo do IPI sobre os cigarros caiu de 36,3% para 20,5%, enquanto o número de maços vendidos no país passou de 4,8 bilhões para 5,5 bilhões. Aumentar imposto e preço é também a forma mais eficiente de reduzir a adesão de jovens ao vício.

Nada disso é novidade para o governador José Serra. Ele enfrentou a indústria do fumo e lhe impôs grandes derrotas quando foi ministro da Saúde. Proibiu a propaganda de cigarros na televisão e nos carros de Fórmula 1, obrigou os fabricantes a estampar aquelas fotografias repugnantes nas embalagens, colocou o Brasil na vanguarda da prevenção contra os males do fumo. Trabalhei na equipe do Ministério da Saúde em 1999 e sou testemunha do antitabagismo sincero de Serra. E me recordo de ter convivido com um ministro tolerante. Serra tinha até cinzeiros em casa.

A lei pode estar inspirada em boas intenções, mas o resultado é uma violência – não só contra o fumante. Ela começa pela abolição do livre-arbítrio. A pretexto de garantir o direito da maioria, ela proíbe o exercício da racionalidade. O cidadão é considerado incapaz de decidir sobre o que pode ou não pode fazer em espaços privados. Provavelmente é essa lógica autoritária que define o erro seguinte da lei: o desobediente não sofre sanção alguma, no máximo será removido por força policial. O fumante torna-se inimputável, como os índios e os loucos. Por fim, a aberração mais perigosa de todas: as multas previstas na lei recaem sobre o proprietário, responsável ou preposto que tolerar o fumo em locais de uso coletivo. É a terceirização da pena pelo crime que outra pessoa cometeu.

A lei é perniciosa na forma e perversa nas consequências porque estimula a delação. Ela envenena a convivência, a pretexto de limpar o ambiente. Se o Estado quer mesmo combater o vício, por que não proíbe logo a produção de cigarros e dispensa uma arrecadação anual de R$ 6 bilhões em impostos?

Não sei aonde o governador José Serra quer chegar apagando cigarros pelas ruas de São Paulo. Se ele olhar em volta, verá que o ex-presidente Fernando Henrique corre o mundo defendendo a legalização da maconha.

Comentários

  1. Depois de ler este post um amigo me enviou esta resposta:

    Amore,
    Após 8 anos de fumo passivo no Baretto ( e olha que eram só 20 horas semanais ), eu, nadador e biker por hábito, que tinha a respiração e o fôlego exemplares, sou agora totalmente dependente de Aerolin ( bombinha para bronquite ), mal que tive quando neném, segundo minha mãe, e do qual imaginava estar livre...!
    São quase R200 mensais de despesa ( 'um condomínio' extra ), só em bombinha !!...Agora deixo de fazer programas, ou saio correndo, ao mínimo sinal de fumaça acumulada, mesmo que não mais em suspensão, o que detecto ficando sem ar, imediatamente. As vias aéreas se travam no ato ! Também virei detector de mofo, de ácaro, de poeira !...É um inferno !!!...
    Imagino o que acontece com as dezenas de milhares de garçons, cumins, recepcionistas etc, que convivem com cigarro dioturnamente !!...
    Ninguém estará proibido de fumar ! Os argumentos alarmistas de 'fascismo' são truque baixo e certo exagero maroto !!
    Quem fuma só fica proibido de obrigar os outros a compartilhar à força de uma compulsão auto-destrutiva !!...Que fumem em casa ( do mesmo modo como batem punheta, dormem etc ), ou em áreas abertas ! Será mesmo que isto é tão 'fascista' e 'autoritário' assim ?!!!...Ninguém teve ataque de abstinência, por exemplo, por ter que evitar o fumo em vôos de 12 horas, como já acontece há alguns anos. Isto que prova que o tamanho da 'fissura' e o 'relógio' do vício são facilmente incorporados ao tamanho da limitação !...
    O problema é que o mundo se acostumou erradamente, desde o início, ao hábito de empestear a vida alheia, achando isto 'normal' !!...Agora só se quer é por tudo nas devidas proporções ( tarde ).
    Mesmo que fosse abuso, aliás, seria uma parca 'revanche histórica' por muitas décadas do outro abuso, sendo que este agora não mata ninguém...!!!
    Vc, como pai, sabe da importância construtiva de impor certos limites, para que a personalidade da criança se molde ao convívio civilizado !
    Já era mais do que hora de tentar corrigir uma distorção na formação e no comportamento prático de milhões de egoístas, mimados pela leniência coletiva e oficial.
    Era isto, Querido !
    Beijão,
    CF-K

    ResponderExcluir

Postar um comentário

O Entrelinhas não censura comentaristas, mas não publica ofensas pessoais e comentários com uso de expressões chulas. Os comentários serão moderados, mas são sempre muito bem vindos.

Postagens mais visitadas deste blog

No pior clube

O livro O Crepúsculo da Democracia, da escritora e jornalista norte-americana Anne Applebaum, começa numa festa de Réveillon. O local: Chobielin, na zona rural da Polônia. A data: a virada de 1999 para o ano 2000. O prato principal: ensopado de carne com beterrabas assadas, preparado por Applebaum e sua sogra. A escritora, que já recebeu o maior prêmio do jornalismo nos Estados Unidos, o Pulitzer, é casada com um político polonês, Radosław Sikorski – na época, ele ocupava o cargo de ministro do Interior em seu país. Os convidados: escritores, jornalistas, diplomatas e políticos. Segundo Applebaum, eles se definiam, em sua maioria, como “liberais” – “pró-Europa, pró-estado de direito, pró-mercado” – oscilando entre a centro-direita e a centro-esquerda. Como costuma ocorrer nas festas de Réveillon, todos estavam meio altos e muito otimistas em relação ao futuro. Todos, é claro, eram defensores da democracia – o regime que, no limiar do século XXI, parecia ser o destino inevitável de toda

Abaixo o cancelamento

A internet virou o novo tribunal da inquisição — e isso é péssimo Só se fala na rapper Karol Conká, que saiu do BBB, da Rede Globo, com a maior votação da história do programa. Rejeição de 99,17% não é pouca coisa. A questão de seu comportamento ter sido odioso aos olhos do público não é o principal para mim. Sou o primeiro a reconhecer que errei muitas vezes. Tive atitudes pavorosas com amigos e relacionamentos, das quais me arrependo até hoje. Se alguma das vezes em que derrapei como ser humano tivesse ido parar na internet, o que aconteceria? Talvez tivesse de aprender russo ou mandarim para recomeçar a carreira em paragens distantes. Todos nós já fizemos algo de que não nos orgulhamos, falamos bobagem, brincadeiras de mau gosto etc… Recentemente, o ator Armie Hammer, de Me Chame pelo Seu Nome, sofreu acusações de abuso contra mulheres. Finalmente, através do print de uma conversa, acabou sendo responsabilizado também por canibalismo. Pavoroso. Tudo isso foi parar na internet. Ergue

OCDE e o erro do governo na gestão das expectativas

O assunto do dia nas redes é a tal negativa dos Estados Unidos para a entrada do Brasil na OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico). Enquanto os oposicionistas aproveitam para tripudiar, os governistas tentam colocar panos quentes na questão, alegando que não houve propriamente um veto à presença do Brasil no clube dos grandes, a Série A das nações. Quem trabalha com comunicação corporativa frequentemente escuta a frase "é preciso gerenciar a expectativa dos clientes". O problema todo é que o governo do presidente Bolsonaro vendeu como grande vitória a entrada com apoio de Trump - que não era líquida e certa - do país na OCDE. Ou seja, gerenciou mal a expectativa do cliente, no caso, a opinião pública brasileira. Não deixa de ser irônico que a Argentina esteja entrando na frente, logo o país vizinho cujo próximo governo provavelmente não será dos mais alinhados a Trump. A questão toda é que o Brasil não "perdeu", como o pobre Fla-Flu que impe