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Carros, números e manipulações

Em dia de mais uma pane no Speedy - a conexão só voltou agora pouco - segue mais um artigo do autor do blog para o Observatório da Imprensa.


JORNALISMO ECONÔMICO
Carros, números e manipulações

Reza a lenda que jornalista não gosta de números. Mais acostumado com as letras, tal profissional foge das cifras como o diabo foge da cruz. Claro, é uma brincadeira, um exagero, pois há excelentes colegas capazes inclusive de perceber, durante uma coletiva, os erros ou as manipulações numéricas que certas autoridades tentam passar para engabelar o distinto público.

Números deveriam ser inequívocos, exatos, substantivos, mas na verdade são bastante traiçoeiros. Deveriam servir para explicar, mas muitas vezes só confundem. Um bom exemplo estava na segunda-feira (6/4) nos maiores sites noticiosos na internet. A mesma notícia, com origem em números divulgados pela Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea), foi editada de diferentes maneiras pelos portais G1, Estadão.com e UOL. É preciso um exercício de paciência e uma leitura atenta para entender a salada servida pelos jornalistas.

No G1, portal das Organizações Globo, a notícia saiu assim:

Produção de veículos retoma ritmo e cresce 34,2% sobre fevereiro

Indústria produziu 272.371 unidades em março. No trimestre, setor registra queda de 16,8% sobre o período de 2008.

Priscila Dal Poggetto Do G1, em São Paulo

Após um aquecimento acima das expectativas das vendas, a produção de veículos no Brasil chegou a 272.371 unidades no mês de março. O crescimento foi de 34,2% sobre fevereiro, quando saíram das linhas 202,9 mil unidades. Entretanto, em relação a março de 2008, há uma queda de 4%. Os números foram divulgados nesta segunda-feira (6) pela Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea). Embora o resultado de março tenha sido alto, a soma da produção de janeiro a março fechou em 660 mil unidades. Em relação ao mesmo período de 2008, houve uma queda de 16,8%, já que naquela época foram produzidas 792,9 mil unidades.

O Estadão.com, do Grupo Estado, publicou matéria da agência de notícias da casa:

Venda de veículos sobe 36,2% e garante melhor março do setor

Vendas somaram 271,4 mil unidades em março de 2009; produção também registrou alta de 34,2% ante fevereiro

Beth Moreira, da Agência Estado

SÃO PAULO - As vendas de veículos no mercado brasileiro somaram 271,4 mil unidades em março de 2009, o que representa um crescimento de 36,2% ante fevereiro e de 16,9% em relação a igual mês do ano passado, informou nesta segunda-feira, 6, a Associação Nacional de Veículos Automotores (Anfavea). Os números confirmam que esse foi o melhor mês de março e também o segundo melhor mês da história para o setor. No acumulado dos três primeiros meses deste ano, foram comercializados 668,3 mil veículos, uma expansão de 3,1% ante igual intervalo do ano passado. De acordo com a Anfavea, este foi o melhor primeiro trimestre da história do setor. A produção totalizou 272,4 mil unidades em março, uma elevação de 34,2% ante fevereiro e queda de 4% na comparação com março de 2008. No trimestre, foram produzidos 660 mil veículos, uma retração de 16,8% ante o mesmo intervalo do ano passado.

O UOL, do Grupo Folha, "cozinhou" a matéria abaixo, a partir de sua própria redação:

Produção de veículos cai 16,8% no 1º trimestre

Da Redação

Os fabricantes de veículos instalados no país produziram 660.010 unidades nos três primeiros meses deste ano, o que representa um recuo de 16,8% em relação às 792.916 registradas no mesmo intervalo de 2008 passado. As vendas, no entanto, cresceram 3,4%, no mesmo tipo de comparação, de 647.950 no ano passado para 668.262, um recorde para o período. Os dados foram divulgados nesta segunda-feira pela Anfavea (Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores).

Em março, a produção total foi de 272.371 veículos, alta de 34,2% frente às 202.920 unidades fabricadas em fevereiro. As vendas foram de 271.442 veículos, expansão de 36,2% em relação às vendas de fevereiro, que totalizaram 199.366 unidades. Na comparação com março de 2008, quando foram emplacados 232.147 veículos, houve aumento de 16,9% nas vendas, e queda de 4% na produção (283.671 unidades). Do total fabricado em março, 260.338 são automóveis e comerciais leves, 9.150 são caminhões e 2.883 são ônibus.

Crédito congelado

Nenhuma reportagem está propriamente errada, todas apresentam os números da produção e vendas de automóveis em março tal e qual divulgado pela Anfavea. Cada veículo, porém, escolheu um percentual diferente para apresentar no título e no lide das matérias. O G1 destacou a produção de carros (34% de aumento ante fevereiro, queda de 16,9% na comparação trimestre ante o mesmo trimestre de 2008); a Agência Estado preferiu o dado mais espantoso, do aumento da venda de veículos (36,2% ante fevereiro e expansão, e não queda, de 3,1% no trimestre em relação ao mesmo período do ano anterior). Por fim, o UOL valorizou a produção, mas foi na contramão dos concorrentes e destacou a queda de 16,9% no trimestre na comparação com igual período de 2008.

Números são frios, mas servem, sim, para explicar boa parte da realidade. Nem tudo pode ser resumido em cifras, mas as estatísticas ajudam na compreensão de vários fenômenos. Muita gente implica, por exemplo, com a mania da Folha de S.Paulo em usar números na cobertura de um jogo de futebol (tendência esta, aliás, bastante amenizada nos últimos tempos) porque não adianta nada uma equipe chutar 33 bolas ao gol, ter a posse de bola por 79,5% do tempo de jogo e levar um gol no único chute do adversário. Um a zero significa três pontos na tabela e a alegria do torcedor da equipe que apanhou o jogo inteiro e saiu de campo com a vitória...

Voltando ao caso dos automóveis, é preciso imaginar que repórteres e editores devem analisar as estatísticas de olho no que interessa ao leitor e tentar ajudá-lo a compreender o que está acontecendo à sua volta. Com uma boa análise da conjuntura dos outros aspectos da realidade que envolvem os números divulgados é possível escrever uma matéria correta, que apresente não apenas os dados brutos, mas também uma interpretação honesta de seus significados. Basta refletir um pouco, fazer alguma pesquisa e um exercício mental básico para botar no papel um texto coerente.

Ora, quando o assunto é a produção e venda de automóveis no Brasil de hoje, não há como escrever uma reportagem sem contextualizar os números em relação à terrível crise financeira que o mundo enfrenta, com consequências já bastante evidentes no país. No último trimestre de 2008, a economia brasileira tomou um tombo considerável, que inclusive já consta de estatísticas divulgadas não apenas pelo setor automotivo, mas por vários outros. Boa parte da paralisação ou desaceleração da atividade econômica pode ser atribuída ao quase congelamento do sistema de crédito, tanto ao consumidor quanto a empresas. Em novembro e dezembro do ano passado, produção e vendas despencaram em diversos setores da economia nacional porque o dinheiro virou bem escasso.

A economia gira

Tudo isto posto, é evidente que os sinais de recuperação da indústria automobilística em março – e também no primeiro trimestre deste ano, se considerada a estatística relativa à venda – é a notícia mais relevante que os números divulgados trazem. No caso da venda, o aumento foi bastante significativo e ainda que muitos analistas possam dizer que houve "antecipação de vendas" em função da isenção do IPI, que terminaria em março e acabou prorrogada até julho, a realidade é um pouco mais complexa e, neste caso particular, animadora. Em primeiro lugar, o argumento da antecipação, especialmente nas vendas ocorridas no mês de março, é capenga porque os compradores estavam relativamente bem informados sobre a grande chance de a isenção continuar. Hoje, por exemplo, já é sabido que o governo estuda manter essa medida até o fim do ano. Quantos compradores de automóveis realmente anteciparam o negócio em função do IPI reduzido? Só Deus sabe, porque não há estatísticas sobre o assunto.

Mais importante do que a questão do imposto menor, porém, é um outro fato que está passando despercebido dos jornalistas: automóvel é um bem caro e bastante dependente de crédito. Se as vendas aumentaram, é lícito supor que o "empoçamento" de crédito nos bancos, sobre o qual tanto se falou em novembro e dezembro, não existe mais, pelo menos não na magnitude verificada três ou quatro meses atrás. Isto é um sinal de que a economia está girando, que o dinheiro voltou a fluir.

Ativo e vigilante

O jornalismo praticado na internet pelos grandes portais ainda não dá conta de análises mais profundas – nos três casos apontados acima as reportagens apenas relatam a numeralha divulgada pela Anfavea. Chama atenção, porém, que o UOL tenha preferido destacar a única estatística negativa da série apresentada pelos fabricantes de automóveis. Estatística esta, inclusive, que pode ser considerada bastante razoável se o jornalista pensar um pouco sobre o cenário de um ano atrás, quando a economia brasileira estava engatando a sexta marcha e os concessionários ofereciam planos de até 100 meses para os consumidores pagaram pelo sonho do carrinho zero quilômetro. Uma queda na produção no primeiro trimestre deste ano em relação ao mesmo período de 2008 era bola cantada depois da eclosão da crise, já o aumento das vendas neste mesmo período é algo que nenhum analista poderia prever no final de 2008. Notícia, como se aprende em qualquer faculdade mequetrefe de jornalismo, é quando o homem morde o cachorro (recorde de vendas de automóveis em plena crise financeira global) e não quando o cachorro morde o homem (produção de veículos cai durante a crise mais brava do capitalismo desde 1929).

A partir das edições de terça-feira (7/4), os jornalões deverão tratar o assunto com mais profundidade. Voltaremos ao tema se houver sinais de manipulação, erros ou incorreção nas matérias. Por ora fica a dica para o leitor da web: ao ler uma matéria sobre estatísticas econômicas, confira em mais de um portal. Com certeza a mesma notícia será apresentada de maneiras diferentes. Um pouco de leitura comparada e reflexão sobre o que se lê não faz mal a ninguém. Ao contrário, é um bom exercício para manter o cérebro ativo e a consciência vigilante.

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