Pular para o conteúdo principal

Mais uma do Mainardi

Abaixo, mais um artigo do autor do blog para o Observatório da Imprensa. Na íntegra, para os leitores do Entrelinhas.

LEITURAS DE VEJA
Cimento, cocaína e um colunista ensandecido

Diogo Mainardi adora provocar polêmica. Nem sempre é feliz: algumas vezes consegue criar enorme barulho, em outras passa apenas despercebido. Ironia e sarcasmo são algumas das armas que o colunista da revista Veja sempre utiliza para tentar obter o efeito desejado. Quem acompanha os escritos de Mainardi conhece bem suas posições políticas, tão explicitamente alardeadas e que podem ser sintetizadas na confissão do próprio colunista, em um texto publicado em agosto de 2005: "Quero derrubar Lula". É simples assim, não tem jeito de não entender.

Na edição corrente de Veja (nº 2108, com data de capa de 15/04/2009), Mainardi volta a citar o presidente da República no título de sua coluna, reproduzida ao final deste artigo. "O Lula shakespeariano" poderia ser apenas um texto cômico, uma piada meio sem graça, dessas que nem todo mundo entende. Talvez a melhor coisa seja não levar a sério o que diz o colunista, como se faz com as brincadeiras às vezes bem agressivas dos palhaços de circo. Em certos casos, porém, vale a pena entrar no jogo de Mainardi – por trás das ironias e das palavras bem escolhidas está uma ideologia consumida pelos milhões de brasileiros que assinam ou compram Veja nas bancas.

No texto em questão, a ironia de Mainardi é dirigida ao corte do IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados) em alguns produtos, em especial o cimento, que o jornalista considerou pequeno. Tal ironia pode ser compreendida na comparação feita entre a medida tomada por Lula em relação ao IPI e o esforço de Barack Obama para recuperar a economia dos Estados Unidos – segundo Diogo Mainardi, o presidente norte-americano "está aumentando o déficit público, num prazo de dez anos, em cerca de 6 500 000 000 000 de dólares (com todos os zeros)", ao passo que Lula teria conseguido reduzir "o custo do saco de 25 quilos de cimento em cerca de 40 centavos (com todos os zeros)".

Até aqui, nenhum problema, certos analistas econômicos meio chinfrins que se lêem por aí devem até concordar com a mui justa comparação de Mainardi. IPI brasileiro e déficit público americano, tudo a ver. Mas vamos em frente.

O que vem na sequência de tão estapafúrdia comparação é que realmente choca no texto de Mainardi: "No Brasil, ao contrário, o corte do IPI do cimento ajudará, indiretamente, uma indústria próspera: a do comércio de drogas. Em primeiro lugar, estimulando o crescimento das favelas. Encasteladas nos morros, elas correspondem, para os traficantes, às fortalezas medievais: Comando Vermelho e William Shakespeare. Em segundo lugar, subsidiando a cocaína. Algumas semanas atrás, o Globo mostrou que os traficantes da Rocinha (o rei do tráfico – o Henrique IV da Rocinha – é conhecido como Nem) misturam cimento à cocaína. O que fez o governo? Zerou o IPI da cocaína por três meses, garantindo uma economia de 40 centavos a cada 25 quilos. Isso sim é uma medida anticíclica", escreveu o colunista de Veja.

Favelado é traficante

É muito raro ver tanto preconceito junto em um só parágrafo. Na verdade, é realmente incrível que tamanha sandice tenha sido publicada. Sim, trata-se de um texto humorístico e no humor vale qualquer coisa, mas o que vai acima não chega a ter muita graça, lembra as piores e mais infames piadas racistas. Em menos de dez linhas, Mainardi reforça as idéias de que quem mora na favela é traficante, de que é preciso conter o crescimento das favelas e o de que o problema do tráfico de droga está no traficante, e não na sociedade. Tudo isto para não falar da risível acusação ao governo Lula, qual seja a de subsidiar o tráfico por meio da redução de impostos para... cimento. Aí realmente não dá nem para levar a sério, é apenas uma piada nonsense.

Analisando um pouco mais a fundo, estão presentes no texto de Mainardi alguns dos chavões que a classe média brasileira mais gosta, porque jogam no colo do governo problemas sociais bastante complexos e de difícil solução – a questão da droga e da favelização dos grandes centros urbanos. Diogo Mainardi reforça sutilmente a idéia de que a solução é "jogar uma bomba nos morros e acabar com os favelados", tão presente no discurso nem sempre tão envergonhado de certa classe média ultradireitista. Também com a mesma "sutileza" o colunista procura vincular o presidente Lula aos dois pólos negativos de seu texto – drogas e favelas –, apresentando-o como um aliado dos traficantes e dos pobres habitantes dos morros. Assim, fecha-se o círculo: ideal mesmo seria "jogar uma bomba nos morros com o Lula e toda a sua corja lá dentro" – mata-se os traficantes e de quebra devolve-se o país ao governo dos homens bons.

Mainardi gosta de fazer graça e há quem ria das suas brincadeiras, mesmo sem entender direito o que conduz o tipo de humor que o colunista é (bem) pago para fazer. A liberdade de expressão evidentemente comporta este tipo de texto, como suportava, em priscas eras, os editoriais ("Basta!" e "Fora!", no Correio da Manhã) que pediam exatamente o que Diogo Mainardi já pediu em 2005: a derrubada de um governo – constitucionalmente eleito, diga-se de passagem. Se é para rir, melhor pelo menos entender a piada.


***

O Lula shakespeariano

Diogo Mainardi # reproduzido de Veja, 15/04/2009

Lula e Barack Obama confraternizaram no G-20 como Falstaff e o Príncipe de Gales no H-4 – ou Henrique IV.

Ato I, cena II:

Falstaff – Que horas são, rapaz?

Príncipe – Embruteceste de tal modo, à força de beber xerez, de desabotoar-te depois da ceia e de dormir à tarde sobre os bancos, que esqueces de perguntar o que realmente mais importa saberes. Que diabo tens tu que ver com o tempo?

Falstaff – o Falstaff shakespeariano – é obeso, barbado, embriagado, ocioso, medroso, mulherengo, traidor, desonesto. Ele anima as noitadas do Príncipe de Gales com seus planos para roubar as bolsas dos peregrinos. O Príncipe de Gales só se aborrece quando Falstaff é infiel à sua imagem de fanfarronice, como na passagem em que pergunta, distraidamente, as horas.

Lula – isso mesmo, o Lula shakespeariano – animou as noitadas de Barack Obama durante o G-20. Quando perguntou as horas, ninguém respondeu. O Brasil representa o elemento de comicidade nesses encontros internacionais, a taberna suja e barulhenta que contrasta com o rigor puritano do Castelo de Westminster. A trama que "realmente mais importa", na qual se decide o destino da Inglaterra, se desenrola em outras cenas, em outros ambientes, com outros protagonistas.

Concretamente, em números, como as horas no mostrador de um relógio: Barack Obama, para tentar restabelecer a economia dos Estados Unidos, está aumentando o déficit público, num prazo de dez anos, em cerca de 6 500 000 000 000 de dólares (com todos os zeros); Lula, para tentar restabelecer a economia do Brasil, cortou o IPI de alguns produtos por um prazo de três meses, reduzindo o custo do saco de 25 quilos de cimento em cerca de 40 centavos (com todos os zeros).

Os majestosos pacotes fiscais de Barack Obama prometem enterrar os Estados Unidos, financiando uma série de indústrias falidas. No Brasil, ao contrário, o corte do IPI do cimento ajudará, indiretamente, uma indústria próspera: a do comércio de drogas. Em primeiro lugar, estimulando o crescimento das favelas. Encasteladas nos morros, elas correspondem, para os traficantes, às fortalezas medievais: Comando Vermelho e William Shakespeare. Em segundo lugar, subsidiando a cocaína. Algumas semanas atrás, o Globo mostrou que os traficantes da Rocinha (o rei do tráfico – o Henrique IV da Rocinha – é conhecido como Nem) misturam cimento à cocaína. O que fez o governo? Zerou o IPI da cocaína por três meses, garantindo uma economia de 40 centavos a cada 25 quilos. Isso sim é uma medida anticíclica. O Globo mostrou também que, em nossa taberna falstaffiana, suja e barulhenta, adolescentes com pouco mais de 25 quilos de peso se prostituem por 1,99 real. Sem IPI.

Em Henrique IV, o Príncipe de Gales, depois de assumir o trono, repudia Falstaff. Ei, Lula: agora são 11h53.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Abaixo o cancelamento

A internet virou o novo tribunal da inquisição — e isso é péssimo Só se fala na rapper Karol Conká, que saiu do BBB, da Rede Globo, com a maior votação da história do programa. Rejeição de 99,17% não é pouca coisa. A questão de seu comportamento ter sido odioso aos olhos do público não é o principal para mim. Sou o primeiro a reconhecer que errei muitas vezes. Tive atitudes pavorosas com amigos e relacionamentos, das quais me arrependo até hoje. Se alguma das vezes em que derrapei como ser humano tivesse ido parar na internet, o que aconteceria? Talvez tivesse de aprender russo ou mandarim para recomeçar a carreira em paragens distantes. Todos nós já fizemos algo de que não nos orgulhamos, falamos bobagem, brincadeiras de mau gosto etc… Recentemente, o ator Armie Hammer, de Me Chame pelo Seu Nome, sofreu acusações de abuso contra mulheres. Finalmente, através do print de uma conversa, acabou sendo responsabilizado também por canibalismo. Pavoroso. Tudo isso foi parar na internet. Ergue

OCDE e o erro do governo na gestão das expectativas

O assunto do dia nas redes é a tal negativa dos Estados Unidos para a entrada do Brasil na OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico). Enquanto os oposicionistas aproveitam para tripudiar, os governistas tentam colocar panos quentes na questão, alegando que não houve propriamente um veto à presença do Brasil no clube dos grandes, a Série A das nações. Quem trabalha com comunicação corporativa frequentemente escuta a frase "é preciso gerenciar a expectativa dos clientes". O problema todo é que o governo do presidente Bolsonaro vendeu como grande vitória a entrada com apoio de Trump - que não era líquida e certa - do país na OCDE. Ou seja, gerenciou mal a expectativa do cliente, no caso, a opinião pública brasileira. Não deixa de ser irônico que a Argentina esteja entrando na frente, logo o país vizinho cujo próximo governo provavelmente não será dos mais alinhados a Trump. A questão toda é que o Brasil não "perdeu", como o pobre Fla-Flu que impe

Rogério Andrade, o rei do bicho

No dia 23 de novembro do ano passado, o pai de Rodrigo Silva das Neves, cabo da Polícia Militar do Rio de Janeiro, foi ao batalhão da PM de Bangu, na Zona Oeste carioca, fazer um pedido. O homem, um subtenente bombeiro reformado, queria que os policiais do quartel parassem de bater na porta de sua casa à procura do filho — cuja prisão fora decretada na semana anterior, sob a acusação de ser um dos responsáveis pelo assassinato cinematográfico do bicheiro Fernando Iggnácio, executado com tiros de fuzil à luz do dia num heliporto da Barra da Tijuca. Quando soube que estava sendo procurado, o PM fugiu, virou desertor. Como morava numa das maiores favelas da região, a Vila Aliança, o pai de Neves estava preocupado com “ameaças e cobranças” de traficantes que dominam o local por causa da presença frequente de policiais. Antes de sair, no entanto, o bombeiro confidenciou aos agentes do Serviço Reservado do quartel que, “de fato, seu filho trabalhava como segurança do contraventor Rogério And