Pular para o conteúdo principal

Mota: é Dilma ou Dilma

Segue abaixo um interessante artigo do professor Carlos Guilherme Mota, historiador dos (muito) bons, originalmente publicado no caderno Aliás do jornal O Estado de São Paulo.

O 'fator Dilma' já contagia todo o jogo político

Anúncio de doença da ministra torna complexo o quadro de candidaturas e desperta apetites adormecidos

A revelação recente de que Dilma Rousseff, ministra-chefe da Casa Civil da Presidência da República e candidata do presidente Lula para sucedê-lo, estaria com doença grave provocou impacto no quadro sucessório. Como seria de se esperar, complicou o leque de possibilidades de candidaturas, mas também despertou novas expectativas, rearranjos, apetites adormecidos e, para outros, eventuais frustrações quanto ao futuro próximo do País. E mexeu com temas mais delicados, como a eventualidade de o Brasil, marcado por uma cultura de tradição coronelística e machista, vir a ter, finalmente, uma mulher no principal posto da República.

A eleição para a Presidência é o acontecimento mais importante na vida desta democracia presidencialista. Uma ocorrência de tal dimensão, que poderia passar quase despercebida em outra conjuntura, adquire importância desproporcional. Mas talvez não seja tão despropositada a relevância que a mídia vem dando ao fato, em face da qualidade dessa personagem sem dúvida competente, firme e bem formada, figura rara nos quadros do PT, em cuja conta deve ser debitada reconhecida probidade, além de um passado limpo de militante responsável. Agora, revelada e domada a doença, sua figura cresce pelo componente propriamente humano, melhor revelado por suas declarações nesta última semana. O que complica ainda mais o quadro político sucessório, levando alguns, senão muitos, a imaginar - e até mesmo a cultivar - a hipótese de um terceiro mandato para o presidente Lula, no caso de se agravar, contra todos os prognósticos, a saúde da ministra.

Vale recordar, desde logo, que a ministra Dilma foi guindada ao importante posto no bojo da crise dos "mensalões" (mantenha-se o plural, pois foram muitos os envolvidos, todos bem conhecidos, alguns até presidenciáveis). Nesse posto, Dilma sucedeu ao deputado José Dirceu e constituiu a cartada forte que o presidente Lula deu para pôr ordem no PT, nos "aloprados" e na patuléia de aspones que se instalara no próprio Palácio do Planalto. A nova ministra da Casa Civil deu conta do recado, com austeridade que lhe valeu a alcunha de "Dama de Ferro", recuperando por sua firmeza o simbolismo que tal posto adquirira, de Darcy Ribeiro a Golbery do Couto e Silva. No mínimo, Dilma Rousseff ajudou a recuperar a ameaçada credibilidade de seu partido, até agora não de todo recuperada, tornando-se um divisor de águas na história do PT.

Mas, nessa nova conjuntura, o tema que se impõe é o da necessidade de se cultivar algum pragmatismo na condução dos negócios da República. A informação de que a ministra Dilma tem câncer linfático, praticamente debelado, abre outras perspectivas. Tirando coberturas jornalísticas de mau gosto, que preconizam sem delicadeza sua saída, o fato é que os partidos já mexem seus pauzinhos diante do destino incerto da sucessão presidencial. PSDB e DEM manifestam uma pseudossolidariedade. O PMDB, ah o fisiologismo do PMDB? O PT diz que não irá atrás de nome alternativo, talvez porque não tenha outro a não ser o do próprio Lula. Não à toa, as conjecturas em torno de um terceiro mandato são fortes, mas parece claro que o próprio presidente não arriscará incluir em sua biografia traços e exemplos autoritários de lideranças latino-americanas marcadamente ditatoriais e populistas, disfarçadas como a de Chávez ou abertas como a dos irmãos Castro. Sua trajetória aponta em outra direção, mais moderna, menos primitiva. E ele gosta de sua biografia.

Claro que o tema da doença que rondou ou atingiu alguns personagens de nossa história sempre volta à baila nessas ocasiões, como a epilepsia de Pedro I, ou a morte do presidente Rodrigues Alves, acometido pela gripe espanhola. Curioso é que nada se comentou, no atual quadro, as psicopatologias do ex-presidente Jânio Quadros, paranóico que no início dos anos 60 envolveu toda a UDN, inclusive a figura austera de Afonso Arinos de Melo Franco, e até Darcy Ribeiro, para renunciar ao tão disputado posto? Mais recente, evoca-se todo o drama que levou à morte o discreto Tancredo Neves, no clímax da transição para a ordem democrática, aprofundando a angústia de uma população que depois se soube enganada, já que laudos e fotografias foram "forjados" a fim de se esperar o melhor momento para se revelar a seriedade do caso. Felizmente evocam-se positivamente, neste país ciclotímico e pouco educado, o nome do vice-presidente, José de Alencar, que, doente, vem batalhando com galhardia sua permanência na cena política, e com mineira eficácia. E também, na cena internacional, mencionam-se nomes de mulheres que se destacam por sua competência na direção de seus países, como Michelle Bachelet, no Chile, e Angela Merkel, na Alemanha, e, menos significativa, Cristina Kirchner, na Argentina.

De todo modo, por ora o quadro sucessório atual permanece como está. E não está tão mal, pois nele se destacam dois candidatos competentes e atualizados, José Serra e Dilma Rousseff, ambos oriundos da esquerda e experimentados na política partidária e na administração. Ambos com grandes cabos eleitorais, como o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e o presidente Lula, que possuem, cada um, biografia densa e capital eleitoral considerável. Na verdade, nas próximas eleições, o embate será entre essas duas vertentes da política e da vida político-social brasileira. Algo precipitado, Lula tomou a dianteira no processo eleitoral, lançando Dilma, mas o estilo lento e gradual do condottieri FHC não deve ser desprezado. Que Dilma esteja bem de saúde para disputar, pois não há outro candidato ou candidata de seu partido à altura para a peleja que se avizinha. A menos que o presidente Lula volte seus olhos para Fernando Haddad ou Roberto Mangabeira Unger?

*Historiador e professor titular de história na USP e na Universidade Presbieriana Mackenzie. Autor de Ideologia da Cultura Brasileira e, com Adriana Lopez, de História do Brasil

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Um pai

Bruno Covas, prefeito de São Paulo, morreu vivendo. Morreu criando novas lembranças. Morreu não deixando o câncer levar a sua vontade de resistir.  Mesmo em estado grave, mesmo em tratamento oncológico, juntou todas as suas forças para assistir ao jogo do seu time Santos, na final da Libertadores, no Maracanã, ao lado do filho.  Foi aquela loucura por carinho a alguém, superando o desgaste da viagem e o suor frio dos remédios.  Na época, ele acabou criticado nas redes sociais por ter se exposto. Afinal, o que é o futebol perto da morte?  Nada, mas não era somente futebol, mas o amor ao seu adolescente Tomás, de 15 anos, cultivado pela torcida em comum. Não vibravam unicamente pelos jogadores, e sim pela amizade invencível entre eles, escreve Fabrício Carpinejar em texto publicado nas redes sociais. Linda homenagem, vale muito a leitura, continua a seguir.  Nos noventa minutos, Bruno Covas defendia o seu legado, a sua memória antes do adeus definitivo, para que s...

Dica da Semana: Tarso de Castro, 75k de músculos e fúria, livro

Tom Cardoso faz justiça a um grande jornalista  Se vivo estivesse, o gaúcho Tarso de Castro certamente estaria indignado com o que se passa no Brasil e no mundo. Irreverente, gênio, mulherengo, brizolista entusiasmado e sobretudo um libertário, Tarso não suportaria esses tempos de ascensão de valores conservadores. O colunista que assina esta dica decidiu ser jornalista muito cedo, aos 12 anos de idade, justamente pela admiração que nutria por Tarso, então colunista da Folha de S. Paulo. Lia diariamente tudo que ele escrevia, nem sempre entendia algumas tiradas e ironias, mas acompanhou a trajetória até sua morte precoce, em 1991, aos 49 anos, de cirrose hepática, decorrente, claro, do alcoolismo que nunca admitiu tratar. O livro de Tom Cardoso recupera este personagem fundamental na história do jornalismo brasileiro, senão pela obra completa, mas pelo fato de ter fundado, em 1969, o jornal Pasquim, que veio a se transformar no baluarte da resistência à ditadura militar no perío...

Dica da semana: Nine Perfect Strangers, série

Joia no Prime traz drama perturbador que consagra Nicole Kidman  Dizer que o tempo não passou para Nicole Kidman seria tão leviano quanto irresponsável. E isso é bom. No charme (ainda fatal) de seus 54 anos, a australiana mostra que tem muita lenha para queimar e escancara o quanto as décadas de experiência lhe fizeram bem, principalmente para composição de personagens mais complexas e maduras. Nada de gatinhas vulneráveis. Ancorando a nova série Nine Perfect Strangers, disponível na Amazon Prime Video, a eterna suicide blonde de Hollywood – ok, vamos dividir o posto com Sharon Stone – empresta toda sua aura de diva para dar vida à mística Masha, uma espécie de guru dos novos tempos que desenvolveu uma técnica terapêutica polêmica, pouco acessível e para lá de exclusiva. Em um lúdico e misterioso retiro, a “Tranquillum House”, a exotérica propõe uma nova abordagem de tratamento para condições mentais e psicossociais manifestadas de diferentes formas em cada um dos nove estranhos, “...