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Três visões sobre a entrevista de Lula no JN

Seguem abaixo três análises bastante distintas sobre a entrevista concedida pelo presidente Lula ontem ao Jornal Nacional. A primeira, do jornalista Reinaldo Azevedo, ex-diretor da "falecida" revista Primeira Leitura, é bastante conservadora e, em certos momentos, preconceituosa, mas vale a pena ser lida porque revela como pensa boa parte dos eleitores anti-Lula. A segunda é do ex-ministro José Dirceu e mostra, nas entrelinhas, que existe muito ruído na comunicação dele com o presidente Lula. Apesar disto, o ex-ministro foi leal ao antigo chefe e confirmou a versão sobre o seu afastamento do cargo na Casa Civil: sim, ele reconhece ter sido demitido por Lula. A última análise, do experiente jornalista Tão Gomes Pinto, é a mais favorável ao presidente.

1. Reinaldo Azevedo

A entrevista de Lula: análise

Abaixo, há um clipping do que achei de mais relevante ou diferenciado nos jornais e depois seguem muitos textos sobre a entrevista concedida ontem por Lula no Jornal Nacional. Leitores têm me perguntado duas coisas: 1) o desempenho foi mesmo ruim? 2) ele pode interferir na preferência do eleitorado? Embora próximas, são questões muito distintas.
O desempenho de Lula, segundo uma avaliação que fosse puramente técnica, foi catastrófico. Releiam a transcrição (abaixo) ou vejam o vídeo (há link): ele não conseguiu dar uma miserável resposta satisfatória ou minimamente articulada. Tentou algumas de suas saídas costumeiras, mas foi devida e prontamente contraditado pelos dois jornalistas: não com opiniões, mas com fatos. É essa a percepção do grande eleitorado? Bem, isso é realmente outra coisa. Volto depois a esse ponto.
Vou seguir mais um pouco na trilha em que estava. Eis a razão por que Lula não concede entrevistas coletivas, a menos que se cerque das devidas proteções — aquelas criadas por André Singer (não pode gravar, não pode contraditar, essas coisas). Proteção contra quem ou o quê? Contra Lula, ora essa. Sua incapacidade de pensar logicamente e de articular raciocínios complexos se evidencia de uma maneira chocante. Seu principal segredo sempre esteve em criar uma falsa intimidade com os interlocutores. Tentou o truque com William Bonner e Fátima Bernardes. Bateu numa parede de gelo. Eles já tinham sido chamados de “meu amor” e “minha querida” o bastante por Heloísa Helena.
A entrevista deve gerar subprodutos. Paulo Okamotto afirmou no Senado, sob juramento, que Lula nem sabia da dívida que ele supostamente pagou. Lula o desmentiu. Numa carta a José Dirceu, o presidente aceita seu pedido de demissão: ao Jornal Nacional, sustentou que foi ele a demiti-lo. Insistiu, de forma constrangedora, que ignorava o esquema. E que garantia existe de que não terá de dizer isso de novo?, quis saber Fátima. E Lula engrolou um palavrório sem sentido. Nada funcionou.
Mas e o grande público? Segundo o Ibope divulgado ontem, 73% dos que ganham até um salário mínimo, e 69% dos que têm até a quarta série aprovam o governo, contra, respectivamente, 22% e 25% que o desaprovam. A força do eleitorado lulista está entre os mais pobres e mais desinformados (para ver mais dados, clique aqui). Trata-se de pessoas que ouviram ontem William Bonner falar em procurador geral da República e não têm a mais remota noção de quem seja. Não saberiam distingui-lo de um torresmo à milanesa de Adoniram Barbosa. Lembro a música porque um trecho da letra é significativo:
Vamos armoçá
Sentados na carçada
Conversar sobre isso e aquilo
Coisas que nóis
Num entende nada
Há aí o retrato de uma boa parte do eleitorado de Lula (e é claro que escrevo isso como um lamento, não com desdém)? Sim, mas é também o retrato do próprio Lula. Ontem, mais de uma vez, ele me lembrou um desses motoristas de táxi sempre muito propositivos, verdadeiros generalistas. Sabem quase nada sobre quase tudo. Deu-se no país o casamento maldito entre as baixas expectativas — e também baixas exigências — de um povo muito pobre e seu suposto representante, que diz atuar no limite das suas forças, mas sempre enfrentando inimigos terríveis.
Lula se danou? Se houvesse, vamos dizer, o júri técnico, não duvidem. Mas os juízes são outros. Sabem por que ele insiste naquela besteira de comparar o governo com a família? Porque pesquisas qualitativas apontam ser uma linguagem que “o povo” entende e aprova. Fátima deu-lhe um chega pra lá. Foi eficaz? Tendo a achar que não. Mais umas duas entrevistas neste pique, e ele começaria a ter problemas? Ai, sim, Porque se iniciaria um fenômeno de opinião pública. A avaliação negativa saltaria o muro das classes médias informadas e começaria a ganhar o povo na forma de um burburinho.
Lula sabe disso. Seus estrategistas sabem disso. Por isso eu duvido que ele compareça a debates do primeiro turno. Duvido que ele tenha a coragem de enfrentar Heloísa Helena, que descaracterizaria, provavelmente até com injustiças e bobagens teóricas, algumas conquistas do seu governo e tem à mão muito mais generosidades a oferecer — já que não terá mesmo de cumpri-las.
Leitor quer um “sim” ou “não”, um “bola” ou “bule” para a pergunta: a entrevista pode alterar as pesquisas? Então lá vai: se morrer nos jornais de amanhã, não. Seu efeito será irrelevante. Se as oposições e aqueles dispostos a ver Lula derrotado passarem adiante a mensagem, aí, sim. PSDB e PFL puderam ter uma idéia muito clara das fragilidades de Lula e das questões para as quais ele não tem resposta. A mais importante delas, mesmo numa excelente entrevista, a meu ver, não foi feita: as relações entre a Gamecorpo, de Lulinha, filho de Lulão, e a Telemar. Pelo que se viu ontem, é certo que o presidente não ganhou votos. Mas também ainda não perdeu. Os descalabros da entrevista têm de saltar esse fosso, vá lá, entre ricos e pobres — os termos são impróprios mas servem para pensar.
Em setembro, já anunciou Wlliam Bonner, há uma nova rodada de entrevistas, aí com temas da administração, incluindo a área social. Lula tentará nadar de braçada. Com dados corretos na mão, dá para fazer picadinho do seu discurso — tarefa para os coleguinhas: estudar os números do Caged e entender aquilo. Vamos ver. Cumpre agora a PSDB e PFL a tentativa de transformar em fato político-eleitoral a entrevista desastrosa. Por geração espontânea, nada acontece. E a observação final: quem entende um pouco de reações, olhares e esgares de desagrado pôde contatar: Lula detesta ser contraditado. Provou-se mais uma vez que ele só não estudou porque está absolutamente convencido de que sabe tudo.
PS: Leitores observam que Lula não errou quando falou da extensão das fronteiras. Teria querido dizer 17 milhões de metros e não 17 milhões de quilômetros. Revi o vídeo e a transcrição que a Globo fez. Continuo a achar que ele não sabia mesmo se era uma coisa ou outra e optou pelo absurdo. Vejam lá. Mas isso é o de menos. Houvesse o efetivo combate ao narcotráfico nas fronteiras, já estaria de bom tamanho.

2. José Dirceu

O "candidato " Lula no JN

A primeira imagem que ficou é de um presidente muito tenso. Trocou várias palavras, ética por corrupção, milhares por milhões e salário por inflação – este último equívoco corrigiu a tempo, até porque ele é o presidente do emprego e do aumento dos salários, com controle da inflação e queda dos juros nominais (ainda que o real ainda seja o maior do mundo).
William Bonner e Fatima Bernardes, na verdade a Rede Globo e o Jornal Nacional, podiam ter-nos poupado do vexame de chamar o presidente da República de "candidato". Além de um desrespeito à instituição republicana e simples má educação, Lula é presidente, a Constituição permite que se candidate à reeleição e permaneça no cargo. Logo, é nosso chefe de Estado e de Governo.
Parece que a Rede Globo esta querendo provar que é independente, de quem? No mérito, a entrevista foi centrada na questão da denúncia do procurador-geral da República, denúncia que ainda não foi examinada pelo Judiciário, no caso o Supremo Tribunal Federal; portanto, não existe um processo. A verdade é que a denúncia pode ser rejeitada e arquivada ou aceita, e os denunciados serão processados e podem ser condenados ou absolvidos.
No entanto, William Bonner fez questão de frisar que o procurador geral da República só oferece denúncia quando ele está plenamente convencido da culpa de quem ele acusa. Mas deixou de dizer que existe, na Constituição brasileira, a presunção da inocência, o ônus da prova do acusador e o devido processo legal, com direito de defesa, contraditório e publicidade.
A tese de Bonner é esdrúxula, já que leva à conclusão de que todas as representações arquivadas pelo ex-procurador geral do governo anterior eram vazias. Nem uma coisa, nem outra.
Meu caso é exemplar, fui denunciado pelo irmão do ex-prefeito assassinado de Santo André, companheiro Celso Daniel, e o Ministério Público de São Paulo, com apoio do MP Federal, aceitou a denúncia de receptação de recursos ilegais. O STF não permitiu a investigação por absoluta falta de elementos. Mesmo assim, durante quatro anos, toda mídia me acusou, processou e julgou. No mês passado, o mesmo irmão do ex-prefeito se retratou em juízo – parte da mídia registrou a retratação em pé de página, e parte, incluindo o Jornal Nacional, não noticiou absolutamente nada.
O mesmo se repetiu no famoso caso que ficou com o nome de Waldomiro Diniz, meu ex-subchefe na Casa Civil. Duas CPIs, da Loterj e dos Bingos, investigações do Ministério Público do Rio e do MP federal, inquéritos da Polícia Civil do RJ e da Polícia Federal. Não há nada que me envolva, fui totalmente inocentado. Só que a mídia, à revelia do processo legal, me processou, acusou e julgou.
E agora, também já fui julgado e processado? Não sou chefe de quadrilha. Fui, sim, denunciado e vou provar minha inocência, ainda que o ônus da prova caiba ao acusador, no caso a CPI dos Correios e o MP federal, que me denunciaram sem apresentar nenhuma prova.
Espero que William Bonner e a Rede Globo divulguem minha defesa e me dêem o direito de um julgamento justo no STF. Só isso.


3. Tão Gomes Pinto

Lula foi ótimo. Só devia ter ido na Globo, no Rio
Comentários sobre a entrevista do presidente Lula à dupla William Bonner/Fátima Bernardes, o casal implacável do JN.
Primeira constatação: Lula enfrentou durante 9 minutos e 12 segundos perguntas sobre a "questão ética", o ponto que seus estrategistas achavam mais delicado da entrevista. Enfrentou e saiu-se bem.
Lula, pela primeira vez, teve de responder à pergunta sobre o
"caso" Paulo Okamoto, outro tema sempre evitado. Bonner dividiu a pergunta em duas. Primeiro estranhou o pagamento de uma dívida de Lula por Okamoto sendo que o candidato teria condições de pagar a dívida feita junto ao PT.
Resposta perfeita de Lula. Disse que achava que não devia nada ao PT na época. E continua achando que não deve. Okamoto pagou porque quis pagar. E, segundo Lula, admitiu o erro.
Ponto para Lula. Placar 2 a zero para o candidato
Quando Bonner volta à carga, indagando por que razão Paulo Okamoto resistiu às pressões para abrir seu sigilo bancário, Lula responde
que era um direito dele, Okamoto. Disse que essa questão de quebra de sigilo pode acontecer com qualquer pessoa, inclusive com ele Bonner. O entrevistador poderia ter oferecido a quebra do seu sigilo. Não o fez.
Enfim , o presidente poderia sair de campo com uma goleada sobre a dupla do JN.
Inclusive enfrentou outra pergunta complicada, quando Bonner disse que, mesmo depois das denuncias de corrupção, Lula declarou publicamente sua solidariedade a membros da sua equipe. E ao mesmo tempo disse que foi traido.
Resposta mais uma vez perfeita. Onde está o José Dirceu ? E o Palocci. "Eu afastei todos", disse o presidente.
Pode não ter sido exatamente assim, mas teve bom efeito junto ao eleitorado. O homem tem autoridade. Outro golaço de Lula.
Menos convincente e dúbia foi a resposta de que expressou sua solidariedade a companheiros que ainda não foram julgados em instância definitiva.
Em compensação fez um gol de placa quando respondeu o que achava do Procurador-Geral da República ter qualificado vários de seus auxiliares como membros de "uma quadrilha".
Lula disse, primeiro, que foi ele quem escolheu o Procurador-Geral para o cargo. Segundo, que ele nem conhecia o procurador. E terceiro , que o o procurador estava cumprindo a sua missão.
O ultimo "chapeu", antes do arremate final, foi lembrar que o "outro" procurador engavetava tudo.
Em resumo, a vitória seria por goleada. Pena que Lula tenha insistido demais no trabalho competente da Policia Federal e afirmado que está investindo pesado na área de inteligencia da PF, o que tem permitido a ela desbaratar quadrilhas "históricas", que vinham praticando crimes há anos.
Essa historia de investimento pesado na PF é menos verdade. Ou "menas", como diria o outro Lula, o metalúrgico.
Os nossos "federais" tem feito um belo trabalho apesar da falta de recursos materiais. Para o eleitor, que não sabe do dia-a-dia da administração, fica valendo a versão do presidente.
Foi tudo perfeito, inclusive a esgorregada final, quando Lula disse que os salários estão baixando, quando queria dizer que a inflação está baixando.
Lapsos desses acontecem com qualquer ser humano. Mostra que Lula não funciona como uma máquina.
Aliás, embora disfarçando o máximo, percebia-se que o candidato estava nervoso. Mais uma dado para "humanizar" o personagem.
Houve só uma grande e lamentável falha, e dela o presidente pode nem ter culpa.
A entrevista deveria ter sido feita nos estudios da Rede Globo, no Rio. Lula deveria sentar-se na mesma cadeirinha onde sentaram Alckmin, Heloisa Helena e Cristovam Buarque.
A solenidade do Palacio da Alvorada, com aquela biblioteca virgem e imaculada ao fundo, deu ao evento uma solenidade que Lula não precisava. E não merecia.

Comentários

  1. É claro que o artigo de Tão Gomes Pinto é favorável a LUla, visto que esse jornalista é assessor parlamentar de um senador do PT. Estranho seria se ele criticasse o próprio chefe!

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