Pular para o conteúdo principal

Ricardo Musse: a polícia de
Serra e as ironias da história

Professor do departamento de sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, Ricardo Musse resolveu premiar este blog com uma análise sobre o embate em curso entre o governo de São Paulo e os estudantes, funcionários e professores da USP. Para Musse, Serra está mais uma vez caindo em uma armadilha para ficar ao lado dos herdeiros das forças políticas que apoiaram o golpe de 1964. Vale a pena ler o artigo na íntegra, a seguir:

No momento em que se intensificam os indicadores positivos na economia, quando, no jargão do mercado, se comprova “a solidez dos fundamentos econômicos” do país, a oposição passa por uma crise sem precedentes. Encurralada pela estratégia de Lula no córner de “oposição conservadora e golpista” (no jargão popularizado por Paulo Henrique Amorim), o PSDB patina e “bate cabeça”.

A crise da USP é um bom observatório dessa situação. O governador Serra iniciou seu mandato com uma série de decretos que colocam “sob judice” a “autonomia” das universidades estaduais paulistas. Não custa lembrar que, ao tomar posse na presidência, o torneiro-mecânico Lula da Silva anunciou, no primeiro mandato, sua prioridade no combate à fome e, no segundo, a ênfase no crescimento econômico.

O espanto foi geral. Como se sabe, mas não se costuma dizer, a “autonomia” das três universidades nunca foi além de um “sim senhor!” dos reitores ao governador de plantão, o que se comprova pelas idas e vindas, ditos e desditos deles depois da ocupação da reitoria da USP. Para se ter uma idéia de como essa autonomia é ilusória, basta observar que eles nunca reclamaram publicamente do fato de que, embora a contribuição para a previdência estadual seja descontada dos salários de cada professor, é a universidade que paga as aposentadorias.

Uma vez que nunca houve autonomia política, a percepção geral foi de que Serra mirava a autonomia administrativa, acadêmica e financeira. Como os reitores, subservientes como sempre, não se posicionam satisfatoriamente; como as associações dos docentes estão ofuscadas por uma pauta “equivocada”, que não vai além do mantra “mais verbas para a educação”, os alunos resolveram agir em defesa de sua universidade.

Tudo não teria passado de mais um ato isolado do movimento estudantil se a reitora, obediente a ordens superiores, não tivesse obtido um mandato de reintegração de posse e ameaçado chamar a tropa de choque. O apoio à ocupação espalhou-se como ondas entre estudantes, professores, na sociedade e, pasme-se, até mesmo na imprensa.

O governador José Serra, o mais credenciado candidato à sucessão de Lula, cai novamente na armadilha e aceita ser colocado como herdeiro das forças políticas que prepararam e apoiaram o golpe militar de 1964. Tudo isso enquanto Lula procura vincular seu nome à linhagem de Getúlio e JK.

Mas o mais engraçado dessa situação é o contraste da pauta de notícias e manchetes dos jornais: no mesmo instante em que Lula usa sua polícia para prender empreiteiros e políticos corruptos, a polícia de Serra entra em prontidão para atacar os estudantes da USP – aqueles que conseguiram, por mérito, vencer a disputa do vestibular mais concorrido do país.

Visto de longe, fica a sensação de que José Serra já escolheu seu candidato à presidência em 2010. Trata-se do jovem político mineiro Aécio Neves.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Rogério Andrade, o rei do bicho

No dia 23 de novembro do ano passado, o pai de Rodrigo Silva das Neves, cabo da Polícia Militar do Rio de Janeiro, foi ao batalhão da PM de Bangu, na Zona Oeste carioca, fazer um pedido. O homem, um subtenente bombeiro reformado, queria que os policiais do quartel parassem de bater na porta de sua casa à procura do filho — cuja prisão fora decretada na semana anterior, sob a acusação de ser um dos responsáveis pelo assassinato cinematográfico do bicheiro Fernando Iggnácio, executado com tiros de fuzil à luz do dia num heliporto da Barra da Tijuca. Quando soube que estava sendo procurado, o PM fugiu, virou desertor. Como morava numa das maiores favelas da região, a Vila Aliança, o pai de Neves estava preocupado com “ameaças e cobranças” de traficantes que dominam o local por causa da presença frequente de policiais. Antes de sair, no entanto, o bombeiro confidenciou aos agentes do Serviço Reservado do quartel que, “de fato, seu filho trabalhava como segurança do contraventor Rogério And...

Dica da semana: Nine Perfect Strangers, série

Joia no Prime traz drama perturbador que consagra Nicole Kidman  Dizer que o tempo não passou para Nicole Kidman seria tão leviano quanto irresponsável. E isso é bom. No charme (ainda fatal) de seus 54 anos, a australiana mostra que tem muita lenha para queimar e escancara o quanto as décadas de experiência lhe fizeram bem, principalmente para composição de personagens mais complexas e maduras. Nada de gatinhas vulneráveis. Ancorando a nova série Nine Perfect Strangers, disponível na Amazon Prime Video, a eterna suicide blonde de Hollywood – ok, vamos dividir o posto com Sharon Stone – empresta toda sua aura de diva para dar vida à mística Masha, uma espécie de guru dos novos tempos que desenvolveu uma técnica terapêutica polêmica, pouco acessível e para lá de exclusiva. Em um lúdico e misterioso retiro, a “Tranquillum House”, a exotérica propõe uma nova abordagem de tratamento para condições mentais e psicossociais manifestadas de diferentes formas em cada um dos nove estranhos, “...

No pior clube

O livro O Crepúsculo da Democracia, da escritora e jornalista norte-americana Anne Applebaum, começa numa festa de Réveillon. O local: Chobielin, na zona rural da Polônia. A data: a virada de 1999 para o ano 2000. O prato principal: ensopado de carne com beterrabas assadas, preparado por Applebaum e sua sogra. A escritora, que já recebeu o maior prêmio do jornalismo nos Estados Unidos, o Pulitzer, é casada com um político polonês, Radosław Sikorski – na época, ele ocupava o cargo de ministro do Interior em seu país. Os convidados: escritores, jornalistas, diplomatas e políticos. Segundo Applebaum, eles se definiam, em sua maioria, como “liberais” – “pró-Europa, pró-estado de direito, pró-mercado” – oscilando entre a centro-direita e a centro-esquerda. Como costuma ocorrer nas festas de Réveillon, todos estavam meio altos e muito otimistas em relação ao futuro. Todos, é claro, eram defensores da democracia – o regime que, no limiar do século XXI, parecia ser o destino inevitável de toda...