O livro O Crepúsculo da Democracia, da escritora e jornalista norte-americana Anne Applebaum, começa numa festa de Réveillon. O local: Chobielin, na zona rural da Polônia. A data: a virada de 1999 para o ano 2000. O prato principal: ensopado de carne com beterrabas assadas, preparado por Applebaum e sua sogra. A escritora, que já recebeu o maior prêmio do jornalismo nos Estados Unidos, o Pulitzer, é casada com um político polonês, Radosław Sikorski – na época, ele ocupava o cargo de ministro do Interior em seu país. Os convidados: escritores, jornalistas, diplomatas e políticos. Segundo Applebaum, eles se definiam, em sua maioria, como “liberais” – “pró-Europa, pró-estado de direito, pró-mercado” – oscilando entre a centro-direita e a centro-esquerda. Como costuma ocorrer nas festas de Réveillon, todos estavam meio altos e muito otimistas em relação ao futuro. Todos, é claro, eram defensores da democracia – o regime que, no limiar do século XXI, parecia ser o destino inevitável de todas as nações do Ocidente, escreve João Gabriel de Lima no site da revista Piauí, em texto publicado na quinta, 22/7. Continua abaixo.
Numa era pré-Spotify, a música vinha de fitas K-7. Ao recordar o episódio, a escritora observa que os poloneses não conheciam as canções que os norte-americanos dançavam, e vice-versa. Passaram-se vinte anos, basta um clique para saber as paradas de sucesso em um país, mas algumas diferenças se aprofundaram. “Quase duas décadas depois, eu atravessaria a rua para evitar algumas das pessoas que compareceram à minha festa de Ano-Novo”, escreve Applebaum no livro. “Elas, por sua vez, não somente se recusariam a ir à minha casa como ficariam constrangidas em admitir que já estiveram lá. De fato, metade das pessoas presentes à festa já não fala com a outra metade. O distanciamento é político, não pessoal.”
A divisão se refletiu nas eleições polonesas de 2020. O país estava polarizado. De um lado, Andrzej Duda, apoiado pela extrema direita do partido Lei e Justiça, tentava a reeleição. De outro, a centro-direita e a centro-esquerda apoiavam Rafał Trzaskowski, do partido Plataforma Cívica. “Em plena pandemia, o coronavírus não foi o assunto principal da eleição, por incrível que pareça”, disse Applebaum à piauí, numa conversa por Zoom desde Washington. “Duda conseguiu que o assunto central do debate fosse o casamento gay. Colocou-se como defensor da família tradicional e dos valores religiosos. Trzaskowski não conseguiu mudar de assunto na campanha – e perdeu a eleição.” Foi por muito pouco, menos de 500 mil votos num colégio eleitoral de mais de 20 milhões de eleitores – 51,03% contra 48,97%.
“Uma das coisas mais importantes para um candidato de centro-direita ou de centro-esquerda que esteja combatendo um populista é mudar de assunto. Devemos fugir dos temas da guerra cultural. Em países como a Alemanha é a imigração. Na Polônia é o casamento gay”, disse ela. Segundo a escritora, existem duas Polônias, uma tradicionalista e sensível a apelos de extremistas de direita, e outra moderna, sofisticada e cosmopolita, avessa ao radicalismo. “Apenas por isso a Polônia ainda não se tornou uma ditadura. Duda não consegue controlar um empresariado diversificado, nem meios de comunicação que pertencem, em larga medida, a grupos estrangeiros, alemães e norte-americanos.”
Alguns jornais poloneses, no entanto, já sucumbiram ao governo que lhes compra anúncios. Entre os convidados do Réveillon do ano 2000, dois hoje trabalham no jornal Gazeta Polska, de Varsóvia. O veículo apoia o governista Lei e Justiça. Segundo Applebaum, o partido passou muito tempo atacando imigrantes islâmicos – ainda que praticamente inexistam imigrantes islâmicos na Polônia – e, agora, investe contra os homossexuais. Numa de suas edições recentes, a publicação distribuiu aos leitores um adesivo com os dizeres: “Área livre de LGBTS.” O Lei e Justiça faz também um discurso antissemita de viés conspiratório. Diz que forças antinacionais e antipatrióticas conspiram para culpar a Polônia, e não a Alemanha, pelo campo de concentração de Auschwitz, localizado em território polonês. Alguns dos escritores e pensadores que propagam esse discurso estavam no Réveillon de 2000 – e ficaram ao lado de Duda nas últimas eleições.
No exercício do cargo, Duda violou a Constituição para mudar a maneira de nomear juízes para a Suprema Corte, assumiu o controle da principal emissora estatal, demitindo os jornalistas que criticavam o regime e substituindo-os por militantes de sites de extrema direita. A antes respeitada tevê estatal polonesa, que ambicionava ser uma BBC do Leste Europeu, passou a exibir documentários de valor jornalístico duvidoso. Um deles, seguindo a linha de uma certa obsessão sexual da extrema direita, denunciava um “plano LGBT” para enfraquecer a Polônia.
Na tentativa de entender por que tantas pessoas inteligentes e bem preparadas – em geral viajadas, com pendor cosmopolita e pós-graduações no currículo – se afastam do espírito democrático, a escritora recorreu à obra da psicóloga australiana Karen Stenner, autora de artigos acadêmicos sobre a “predisposição autoritária”. Para Stenner, tal predisposição – que favoreceria a hegemonia e a ordem, em oposição a uma “predisposição libertária”, afeita à diversidade e à diferença – pode passar a vida inteira sem se manifestar. “Dito de modo simples”, interpreta Applebaum, “o autoritarismo atrai pessoas que não conseguem tolerar a complexidade: não há nada intrinsecamente de esquerda ou de direita nesse instinto. Trata-se de um estado mental, não de um conjunto de ideias.” Para que esse estado se manifeste, é necessário um estímulo. “Na Roma antiga, César tinha escultores para criar múltiplas versões de sua imagem. Nenhum autoritarismo pode ter sucesso sem o seu equivalente moderno: os escritores, intelectuais, panfletários, blogueiros, assessores de imprensa, produtores de tevê e criadores de memes que vendem sua imagem para o público.”
Anita Gargas, uma das convidadas do Réveillon que trabalha na Gazeta Polska, faz parte dos que difundem a imagem do autoritarismo polonês. Em 2014, ela produziu um documentário sobre a “tragédia de Smolensk” e alimentou as teorias conspiratórias promovidas nas redes sociais do Lei e Justiça. A tragédia refere-se ao acidente de avião que matou o então presidente Lech Kaczyński e sua comitiva na cidade russa de Smolensk, em abril de 2010. As investigações mostraram que a queda decorreu de falha humana – e todo mundo aceitou a conclusão. Até que, cinco anos depois, o Lei e Justiça, partido do presidente morto, voltou ao poder com a primeira eleição de Andrzej Duda, que reabriu o caso para investigar a hipótese de sabotagem russa. A versão conspiratória jamais foi comprovada, mas, com o reforço do documentário de Gargas, anima o discurso conspiratório da extrema direita.
Em que pese a semelhança de métodos, o autoritarismo do passado e o do presente são diferentes, segundo os estudiosos. O nazismo alemão e o fascismo italiano eram autoritarismos explícitos, numa época em que a democracia não era uma ideia majoritária. Já as ditaduras ou protoditaduras de hoje são em geral disfarçadas de democracias. Os autoritarismos modernos costumam fazer eleições periódicas, manter parlamentos abertos e constituições vigentes – mas, mesmo assim, o estado de direito vai sendo lentamente solapado. Para detectar sua progressão, às vezes, é preciso um sismógrafo capaz de captar as oscilações sutis.
Criado em 2014, o Instituto V-Dem, ligado à Universidade de Gotemburgo, na Suécia, vem fazendo uma radiografia minuciosa dos regimes políticos no planeta. Com uma enorme variedade, sua base de dados está revolucionando o estudo das democracias. Seu último relatório, publicado em março passado, traz o seguinte título: A Autocratização se Torna Viral. O termo “autocratização” é empregado quando uma democracia perde qualidade durante um período de tempo, iniciando um processo que, no fim da linha, pode resultar na instalação de um regime fechado e autoritário.
No documento, há um capítulo que classifica os regimes em quatro categorias. As “democracias liberais” estão no topo. São os regimes de maior liberdade, como Bélgica, França, Canadá, Suécia. As “democracias eleitorais” estão um degrau abaixo, com regimes ainda livres, mas com instituições menos sólidas e debate público tendendo à polarização. Exemplos: Paraguai, Peru, Colômbia, a própria Polônia. Depois, vêm as “autocracias eleitorais”, que estão perigosamente próximas da ditadura, como Filipinas, Turquia, Nicarágua, Venezuela. Por fim, as “autocracias fechadas”, que definem ditaduras sem eleição como Coreia do Norte, Cuba, China e Arábia Saudita.
O Brasil aparece entre as “democracias eleitorais”, mas o documento aponta uma tendência preocupante. Os pesquisadores levantaram os países em que o regime democrático se deteriorou com maior velocidade no período de 2010 a 2020 em todo o planeta. Nesse critério, os países que compõem o “Top 5” são, pela ordem: Polônia, Hungria, Turquia, Brasil e Sérvia.
As democracias não acabam mais abruptamente com golpes militares, descartadas exceções como Myanmar. Elas se deterioram aos poucos, seguindo um roteiro mais ou menos comum. No relatório deste ano, o V-Dem detalha o padrão. Começa com o assédio à imprensa, às universidades e às organizações da sociedade civil que garantem o debate público. O segundo momento, de acordo com o relatório, se dá quando “os governos se engajam em polarizar a sociedade, por meio de campanhas de desinformação pelas mídias sociais, com crescente desrespeito pelos argumentos dos adversários”. É quando o adversário vira inimigo. Só então, segue o texto, “minam-se as instituições e a qualidade das eleições, num passo adiante em direção à autocracia”. É fácil compreender por que o Brasil está em quarto lugar no mundo.
Para entender os critérios do V-Dem é preciso ir além das duas dimensões clássicas da democracia. A primeira é a eleitoral, já que pleitos livres e justos são o evento central das democracias e sua condição primária. A segunda são as liberdades individuais fundamentais, como as de expressão e associação, que garantem que a maioria não tiranize a minoria. Mas o norte-americano Robert Dahl (1915-2014), talvez o cientista político mais influente do século XX, ressalta em sua obra outras dimensões tão importantes quanto a eleição e as liberdades individuais. Para haver democracia, é necessário que a população participe não apenas na hora de votar, mas no período entre as eleições – em conselhos participativos, em passeatas, em interação com políticos por meio de canais digitais. Outro aspecto essencial abordado por Dahl é o debate público. Um debate de alto nível, baseado em fatos e do qual todos os cidadãos possam, em tese, participar, é central para a qualidade das democracias. Um debate baseado em fake news deteriora a qualidade democrática.
Numa democracia ideal, todos os adultos votam, as leis funcionam, o debate público é de alto nível, todos os cidadãos são suficientemente informados para decidir com racionalidade – e, quando necessário, largam os afazeres do dia a dia para participar da vida política. Dahl sabia que um regime assim não existe na vida real. Por isso, considerava que a democracia é, antes de tudo, um ideal a ser perseguido. Preferia chamar os regimes de liberdade da vida real de poliarquias, tanto melhores quanto mais se aproximassem da democracia ideal.
Em artigo sobre a obra de Dahl, os cientistas políticos argentinos Andrés Malamud e Santiago Leiras mostram que a democracia é o processo histórico de ampliação de direitos políticos e civis – o aumento da participação política e a elevação da qualidade do debate público. Tal evolução aproximaria a poliarquia do ideal democrático. Segundo Malamud e Leiras, no início da segunda metade do século XX os temas centrais da ciência política eram o desenvolvimento (transformação de sociedades arcaicas em modernas) e a revolução (a mudança do capitalismo para o socialismo). Hoje o tema central é a democratização, a transformação de regimes autoritários em regimes de liberdade. E também a preservação de tais regimes: por isso é essencial monitorar, com lupa, a qualidade democrática.
“Decidimos abordar aspectos que diferentes tradições da ciência política consideram importantes para a democracia”, disse o cientista político sueco Staffan Ingemar Lindberg, um dos criadores do V-Dem, em conversa com a piauí, também por Zoom, desde Estocolmo. Uma das influências decisivas na metodologia do instituto é justamente a obra de Dahl. Os rankings do V-Dem se assentam sobre quatro dimensões: a eleitoral, a liberal, a participativa e a deliberativa – esta última, seguindo o conceito de Dahl, mede a qualidade do debate púbico. Recentemente, foi incorporada uma quinta dimensão, a igualitária: a concepção moderna de democracia considera que uma distribuição de riqueza minimamente decente é essencial para a sobrevivência dos regimes de liberdade.
O V-Dem surgiu como uma iniciativa de quatro cientistas políticos: além de Lindberg, Jan Teorell, também sueco, e os norte-americanos Michael Coppedge e John Gerring. “Conversávamos muito sobre nossas insatisfações com os rankings existentes e queríamos criar um mais abrangente”, diz Lindberg. Ele se refere, por exemplo, ao ranking da Freedom House, criado depois da Segunda Guerra Mundial e ainda muito usado nos Estados Unidos, e o da revista britânica The Economist. O V-Dem se destaca pela quantidade de critérios (mais de quatrocentos), pela abrangência (incorpora dados desde pelo menos 1900 de todos os países do mundo) e pelo rigor metodológico (seus questionários são preenchidos por mais de 3 mil especialistas espalhados pelo planeta). O V-Dem, assim, já nasceu globalizado, numa época em que o conhecimento se dá em redes, e instalou-se na Suécia. “Simplesmente pelo fato de que a maior parte de nosso financiamento vem de fundações e governos de países escandinavos”, disse Lindberg.
A vice-campeã em deterioração democrática, a Hungria, já passou pelas duas primeiras fases descritas pelo V-Dem – assédio à sociedade civil e polarização – e chegou à terceira fase, a da mudança das regras eleitorais. “A Hungria é um dos casos mais característicos entre as autocracias modernas, onde a democracia se desfaz aos poucos”, disse o cientista político português António Costa Pinto, durante uma conversa com a piauí na cantina do Instituto de Ciências Sociais, na Universidade de Lisboa. “Isso acontece porque um país que se assume como ditadura paga um preço alto, ainda mais se ele faz parte de um clube de democracias. É o caso da Hungria com a União Europeia.” Costa Pinto estuda, há décadas, a lógica que rege os regimes autoritários, e já deu aulas sobre o assunto nas universidades Princeton e Berkeley, nos Estados Unidos. Hoje é professor na Universidade de Lisboa, onde vive, e acaba de lançar o livro O Regresso das Ditaduras?.
A deterioração da democracia húngara teve a marca de Viktor Orbán, o autocrata local, uma espécie de primus inter pares, festejado como um ídolo por Steve Bannon, o estrategista radical de Donald Trump. “Viktor Orbán é um homem sofisticado, que não chegou à política querendo destruir o sistema. Seu partido, o Fidesz, começou como uma sigla moderada”, disse Anne Applebaum. “Ele é um diplomata, amigo dos democrata-cristãos alemães e dos conservadores britânicos, fala um inglês perfeito, defende seus pontos de vista no Parlamento Europeu em Bruxelas. Com essas virtudes, foi corroendo a democracia de seu país aos poucos.” Realizou a proeza de fazer isso sem ser expulso do clube de democracias que é a União Europeia.
Antes de mexer nos ordenamentos eleitoral e jurídico, Orbán atacou a área de comunicações. No rearranjo que fez, as três rádios e as três televisões estatais, além da agência de notícias do governo, passaram a responder a um comando único – e foram entregues a pessoas de sua confiança. Orbán também incentivou empresários amigos a assumir o controle acionário em empresas de mídia privadas. O resultado: 80% dos húngaros têm como principal fonte de informação meios controlados pelo governo. Na primeira vez que se elegeu primeiro-ministro, em 1998, Orbán disse que o segredo para manter o poder era ter “oito a dez capitalistas claramente do nosso lado” e uma rede própria de comunicações. Na primeira vez, ele não conseguiu avançar sobre a mídia. Em 2010, eleito primeiro-ministro pela segunda vez, conseguiu.
Logo no ano seguinte, Orbán aprovou uma nova Constituição, aproveitando a maioria parlamentar que conseguira. Entre a apresentação do projeto e a promulgação da nova Carta decorreram apenas onze dias. Não houve debate, discussão ou plebiscito. Em vez disso, o primeiro-ministro enviou um questionário para 8 milhões de húngaros com perguntas apenas remotamente relacionadas à nova Constituição, segundo relata Paul Lendvai, jornalista húngaro naturalizado austríaco, em seu livro-reportagem Orbán: Europe’s New Strongman (Orbán: O novo homem-forte da Europa). A ideia era poder dizer que fora feita uma “consulta nacional”.
A nova Carta mudou substancialmente a política húngara, concentrando poderes no primeiro-ministro. Na formação do equivalente local ao Supremo Tribunal Federal, por exemplo, foi abandonada a prática de criar um comitê com representantes de todos os partidos – a escolha passou a ser por maioria parlamentar, ou, na prática, do primeiro-ministro. O número de juízes passou de 11 para 15. Orbán rapidamente nomeou amigos para as vagas que se abriram, incluindo ex-colegas de escola, alguns deles sem formação jurídica. Na lei eleitoral, segundo Lendvai, os distritos foram reorganizados de forma a aumentar o peso dos apoiadores de Orbán. “Esse tipo de deterioração democrática é muito sutil, pois tudo acontece aparentemente dentro da lei”, diz António Costa Pinto.
O Parlamento perdeu poderes sobre uma de suas competências centrais nas democracias – a aprovação e o controle do orçamento público. Na mudança promovida por Orbán, a aprovação do orçamento ficou a cargo de um comitê de três especialistas – todos eles nomeados pelo primeiro-ministro. Em um ensaio sobre Orbán, o cientista político belga Jan-Werner Müller, estudioso dos autoritarismos, escreveu que o primeiro-ministro húngaro alterou o ordenamento de seu país de forma que, mesmo que perca eleições, seu partido – o Fidesz, atualmente na extrema direita – continuará detendo uma fatia grande de poder.
Em um de seus livros clássicos, A Terceira Onda, o cientista político norte-americano Samuel Huntington (1927-2008) definiu três momentos em que a democracia se espalhou pelo mundo. O primeiro foi do século XIX ao início do século XX, no período pós-iluminista. O segundo foi logo após a Segunda Guerra Mundial, com o aniquilamento dos totalitarismos europeus. O terceiro, iniciado nos anos 1970 com o arrefecimento da Guerra Fria, varreu do mapa os fascismos que restavam – incluindo o salazarismo em Portugal, o franquismo na Espanha e os regimes militares na América Latina – e, posteriormente, as ditaduras nos países comunistas. Segundo a ciência política moderna, a cada vaga democratizante se segue uma onda de refluxo. Uma das grandes discussões da atualidade é se vivemos, ou não, uma “terceira onda de autocratização” – da qual a Hungria e a Polônia são exemplos lapidares na Europa, e o Brasil desponta como um caso preocupante na América do Sul.
Para responder a essa pergunta, Staffan Lindberg, presidente do V-Dem, escreveu um artigo em parceria com a alemã Anna Lührmann, até recentemente vice-diretora do instituto – ela abandonou o cargo no início deste ano para se dedicar à política partidária em seu país. A análise dos dados disponíveis desde 1900 permitiu comparar as características das diferentes “ondas de autocratização”, e captar o que o momento atual tem de peculiar.
As conclusões do estudo iluminam os dias de hoje. Nunca o mundo teve tantas democracias. São 50% dos países, de acordo com os critérios do V-Dem, contra 20% em 1960, 15% em 1930 e 5% em 1900. A velocidade dos processos de autocratização é hoje bem mais lenta que no passado, o que permite que em alguns países a sociedade civil se mobilize para reverter o processo – como ocorreu, recentemente, na Coreia do Sul. Para um país, perder o status de democracia pode significar sanções e perdas econômicas, como lembra Costa Pinto. Por isso, cada vez mais os autocratas contemporâneos – Viktor Orbán à frente – usam de estratégias graduais e, até certo ponto, legalistas para ganhar poder.
O primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, é considerado outro mestre das estratégias de autocratização, tanto que se tornou responsável pela proeza mais notável – e lamentada – do relatório mais recente do V-Dem: o rebaixamento da maior democracia do planeta ao status de “autocracia eleitoral”. A Índia não faz parte dos Top 5 que mais deterioram suas democracias porque, partindo de um patamar já mais baixo, acabou rebaixada e mudou de categoria.
“Não há nenhum ataque frontal à democracia. Em vez disso, há ataques múltiplos em várias frentes. Com isso, a passos lentos, o país caminha para o autoritarismo”, disse o advogado indiano Tarunabh Khaitan, vice-reitor da Faculdade de Direito de Oxford, em entrevista à revista The Economist. Ou seja: de uma “autocracia eleitoral” caminha para tornar-se uma autocracia fechada. Khaitan é autor de um artigo acadêmico sobre seu país que leva o título Killing a Constitution with a Thousand Cuts (Matando uma Constituição com mil cortes).
As mudanças em leis promovidas ou patrocinadas por Modi atacam principalmente a liberdade e o pluralismo do debate público – dimensão central da democracia na visão de Robert Dahl. Uma “lei de sedição” aplica multas pesadas contra os que, supostamente, incitam à rebelião contra o Estado. Modi aprovou também, em 2016, uma “lei de difamação”, que pune quem usar “palavras, escritas ou faladas, ou sinais visuais, que provoquem sentimento negativo contra o governo”. Tais figuras jurídicas são aplicadas sobretudo contra jornalistas. As penas previstas na lei de difamação vão de dois anos de detenção à prisão perpétua. A nota do V-Dem para a liberdade de expressão na Índia sempre foi alta, em geral acima de 3,5 pontos de 4 possíveis. Com Modi, caiu para 1,5.
Os jornalistas não são as únicas vítimas na sociedade civil. Uma lei antiterrorismo de 1967 foi alterada em 2019 de forma a prever punição não apenas contra grupos, mas também contra indivíduos. Ela é usada principalmente contra acadêmicos dissidentes. Modi aprovou ainda leis que dificultam o repasse de verbas a organizações não governamentais internacionais, complicando sua atuação – um ataque de manual à sociedade civil. A divisão indiana da Anistia Internacional foi uma das mais afetadas.
Novas leis dificultam também a operação de empresas de mídia estrangeiras – responsáveis por um respiro pluralista em sociedades em autocratização, caso da Polônia. As novas regras levaram ao fechamento da operação indiana do HuffPost, site crítico ao regime de Delhi. O ambiente de informação na Índia, outrora vibrante, cada vez mais se parece com o da Hungria. O governo apoia os conglomerados nacionais – a maioria pró-Modi –, injeta dinheiro numa mídia alternativa que propaga discursos de ódio, e investe pesado em mídias sociais.
O sistema político indiano foi redesenhado para aumentar o poder do partido no governo. Antes das eleições de 2019, Modi patrocinou uma alteração legal que permite doações anônimas a siglas eleitorais, sem prestação de contas. Seu partido, o BJP, foi o maior beneficiário. Nas eleições, o equivalente local do Tribunal Regional Eleitoral permitiu várias formas de propaganda ilegal dos governistas, mas puniu com severidade os oposicionistas. Um dos juízes que advogou a punição do partido de Modi foi investigado por fraude no imposto de renda, e acabou deixando a corte.
O modus operandi de Modi – ou “Modi operandi”, como diz a Economist, em reportagem recente sobre o assunto – inclui nomear amigos ou correligionários fiéis para postos-chave, em detrimento de quadros técnicos. Para o equivalente indiano da Controladoria-Geral da União, Modi nomeou um funcionário aposentado de Gujarati, estado que governou. Ele passou por cima de dois generais há mais tempo no Exército para nomear um comandante-geral fiel a ele, o general Bipin Rawat – e, depois, mudou a idade máxima de aposentadoria para mantê-lo no cargo. Trocas constantes no comando do Banco Central da Índia, antes uma instituição respeitada, criam insegurança econômica. A atitude mais polêmica de Modi, um nacionalista hindu, é a lei que permite a estrangeiros hinduístas, budistas, jainistas ou cristãos obter cidadania indiana – mas veta a mesma prerrogativa a muçulmanos. Especialistas dizem que a lei viola o princípio constitucional da liberdade religiosa, mas a Suprema Corte não a questionou até agora.
O brasileiro Fernando Bizzarro, pesquisador do Instituto de Pesquisas Afro-Latino-Americanas da Universidade Harvard, escreveu uma análise sobre a evolução política do Brasil. Redigido em parceria com Michael Coppedge, um dos fundadores do V-Dem, o artigo diz que a democracia brasileira evolui “em espiral”. A curva tem uma primeira alta na República Velha (1889-1930). Cai no período getulista (1930-1945). Volta a crescer, atingindo patamares mais altos que antes, entre 1946 e 1964. Cai novamente depois do golpe militar de 1964, para depois subir e atingir seus níveis mais altos com a redemocratização a partir de 1985.
Calcado em dados do V-Dem, o artigo de Bizzarro e Coppedge abrange um período que vai até 2015, antes do impeachment de Dilma Rousseff. “Estávamos entre os melhores alunos da classe da terceira onda da redemocratização”, diz Bizzarro. “A deterioração se deu depois disso.” O tropeço começou no governo de Michel Temer. A erosão se verificou no que Bizzarro chama de “componente liberal da democracia”, que mede a capacidade do Legislativo e do Judiciário de fiscalizar o Executivo – os freios e contrapesos do regime. “Entre outras coisas, os especialistas acharam que o combate à corrupção no governo Temer não foi tão veemente quanto no governo Dilma. Ou seja, o Congresso e o Judiciário se tornaram menos capazes de controlar o Executivo”, diz Bizzarro. Até o governo Dilma, a Polícia Federal estava focada no combate à corrupção e tinha ampla liberdade para investigar, a Operação Lava Jato estava em plena atividade e não sofria constrangimentos, e a Procuradoria-Geral da República era uma força propulsora das investigações.
No segundo momento, já sob Bolsonaro, o governo passou a aparelhar a Polícia Federal, conseguiu desmontar a Lava Jato e, na definição do constitucionalista Conrado Hübner Mendes, transformou a PGR em “Poste-Geral da República”. De 2015 para cá, os estudos da V-Dem confirmam a deterioração democrática do Brasil ao analisar apenas dois dados: a liberdade acadêmica e a liberdade de imprensa.
Antes, o ambiente nas universidades ganhava nota 3,7, num critério em que a nota máxima é 4. Agora, caiu para 2,08, o que significa, nos critérios do V-Dem, que as instituições acadêmicas são “mais ou menos respeitadas pelas autoridades públicas e podem ser reprimidas por criticar o governo”. A liberdade de imprensa caiu até mais, de 3,7 para 2. Diz Bizzarro: “Embora não haja censura formal no Brasil, os especialistas acharam que o assédio a jornalistas e acadêmicos de esquerda, por parte de aliados do governo, representava algo digno de se monitorar.”
O esfarelamento democrático, no entanto, não é uma força inarredável: depende do autocrata no poder e, sobretudo, de sua reeleição. Em O Povo Contra a Democracia, o cientista político alemão Yascha Mounk, da Universidade Johns Hopkins, observa que, em seus primeiros mandatos, o turco Recep Erdoğan, o russo Vladimir Putin e o venezuelano Hugo Chávez criaram leis em benefício próprio, mas não alteraram as regras eleitorais a ponto de impedir eleições competitivas. Uma vez reeleitos – e, portanto, fortalecidos – exercitaram os músculos autoritários.
Em seu livro, lançado em 2018, ainda antes da eleição de Bolsonaro, Mounk escreve sobre o riscos de que “populistas autoritários” – como Andrzej Duda, Narendra Modi e Donald Trump – venham a se reeleger: “Caso consigam outro mandato, tudo é possível; com tempo e poder suficientes, é muito provável que todos esses líderes causem estragos violentos e duradouros à democracia.”
Acertou na mosca. Reeleito em 2019, com o controle das duas casas do Parlamento, Modi conseguiu aprovar um punhado de leis de cunho autoritário. Duda, reeleito há um ano com uma vantagem estreitíssima, imprimiu um ritmo mais lento na autocratização polonesa, mas o processo só avança. Trump, para a boa saúde da democracia norte-americana, não foi reeleito. Joe Biden conseguiu o que os adversários dos autocratas da Polônia e da Índia não conseguiram.
“Biden conseguiu mudar de assunto na campanha. Repare que ele pouco fala de Trump ou de guerras culturais. Ele mantém a conversa na economia, em como recuperar o país, em dar vacina para todos”, disse Anne Applebaum. Na Índia, era a exaltação do nacionalismo hindu. Na Polônia, como se viu, o assunto era casamento gay. Não deixa de ser um alerta para o Brasil que, na eleição de 2018, começou a inclinar-se a favor de Bolsonaro na medida em que se difundia uma lorota criada sete anos antes: o “kit gay”.
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