O pessoal do Estadão teve a mesma ideia que este blog ao analisar a crise no Senado. Tanto José Sarney (PMDB-AP) como Arthur Virgílio (PSDB-AM) se defendem com o bordão, "sou, mas quem não é" ou "fiz, mas quem não fez". No editorial desta sexta-feira, o Estadão dá nome e sobrenome para o estratagema dos nobres parlamentares. Vai abaixo, na íntegra, para os leitores do Entrelinhas.
A tática do Chico Anysio
Um Senado majoritariamente predisposto à complacência com o seu presidente, José Sarney, ouviu-o repetir em discurso de quase uma hora, na quarta-feira, que é "vítima de uma campanha sistemática e agressiva" para desestabilizá-lo, que a sua vida tem sido vasculhada "desde o meu nascimento", que jamais faltou com o decoro parlamentar - e que ou não fez o que lhe apontam ou o que fez não tem nada de errado. Por que haveriam de querer desestabilizá-lo, não se deu ao trabalho de explicar. Tampouco houve quem lhe pedisse explicações sobre essa alegação em que ele praticamente se compara a uma instituição pública, ou sobre as inverdades, meias-verdades e omissões com que tratou de se desvencilhar dos escândalos que o enredam. Sarney foi astuto. No lugar do pronunciamento de confronto que os aliados tinham antecipado, talvez para desorientar a oposição, adulou os seus pares, louvando o seu senso de justiça, e os exortou a "reconstruir a paz e a harmonia no Senado".
Encaixou onde pôde a mensagem de humildade, contrastando com a descrição altissonante de seus feitos ao longo da trajetória política de mais de meio século. "Todos aqui somos iguais. Nenhum senador é maior do que o outro", lisonjeou o plenário em dado momento - embora contrariando o grande paladino da sua incolumidade, Lula da Silva, que o considera "mais igual do que os outros". A tática do afago - a intimidação fica a cargo dos Renans Calheiros de sua guarda pretoriana - o ajudou ainda a compartilhar com os colegas ora a ignorância, ora a responsabilidade pelos problemas que espocaram neste seu terceiro mandato no comando da Câmara Alta. "Desconhecia - e eu acho que também todo o Senado - que o Senado tinha 170 diretorias. Elas não foram criadas por mim", exclamou, recorrendo, por sinal, ao conhecido artifício de rebater acusações inexistentes para desqualificar todas as demais. Como o papel aceita tudo e as palavras voam, permitiu-se achar que "ninguém aqui sabia ou podia pensar que existisse ato secreto", emendando que "afirmaram (?) que fui responsável por todos esses atos".
Mostrando-se meticuloso, apresentou uma tabela segundo a qual, dos 511 atos não publicados em parte alguma, 88 foram editados quando presidia a Casa (ante, por exemplo, 260 na gestão de Calheiros e 207 sob Garibaldi Alves). Mas o ponto simplesmente não é esse - e sim o fato de que foi ele quem nomeou e respaldou o diretor-geral Agaciel Maia, durante 14 anos o condutor das irregularidades em escala industrial na administração do Senado. No que foi tido como uma "defesa técnica", fez praça de esmiuçar "a grande acusação que me é feita" - a prática de nepotismo. Serviu uma macedônia de nomes, apenas para se desvincular da pletora de nomeações de parentes e afilhados, salvo no caso de uma sobrinha, "não julgando que nisso houvesse qualquer falha". A manipulação culminou com a memorável justificativa para o pedido a Agaciel para empregar o namorado da neta: "É claro que não existe o pedido de uma neta - se pudermos ajudar legalmente - que qualquer um de nós não deixa de ajudar." Precioso esse "legalmente": a nomeação saiu por ato secreto.
O espírito, por assim dizer, do discurso talvez tenha sido o seu único aspecto transparente: nada fez que já não tenha sido feito por seus pares. Ou, no famoso bordão do comediante Chico Anysio: "Sou, mas quem não é?" Terminou discretamente aplaudido. Depois, a farsa foi transportada para o recinto onde se reuniu o Conselho de Ética, cujo presidente escolhido a dedo pelo bloco sarneysista, o senador sem-voto Paulo Duque, cumpriu o papel a ele reservado no script. Alegando que não poderia acatar ações baseadas em "recortes de jornais", arquivou sumariamente 4 dos 11 pedidos de investigação contra Sarney, além de outro requerimento contra Calheiros. Foi para a gaveta, por exemplo, a acusação do líder do PSDB, Arthur Virgílio, de que o senador mentiu ao negar que tivesse poderes administrativos na Fundação José Sarney, de que ele é presidente vitalício. A entidade desviou para empresas fantasmas e do clã recursos recebidos da Petrobrás. Terá decerto o mesmo destino a denúncia, baseada em gravações da Polícia Federal, sobre o envolvimento de Sarney com o ato secreto da nomeação pedida pela neta. A oposição fará a expressão corporal de recorrer dos arquivamentos e produzir uma nota pelo afastamento do senador.
A tática do Chico Anysio
Um Senado majoritariamente predisposto à complacência com o seu presidente, José Sarney, ouviu-o repetir em discurso de quase uma hora, na quarta-feira, que é "vítima de uma campanha sistemática e agressiva" para desestabilizá-lo, que a sua vida tem sido vasculhada "desde o meu nascimento", que jamais faltou com o decoro parlamentar - e que ou não fez o que lhe apontam ou o que fez não tem nada de errado. Por que haveriam de querer desestabilizá-lo, não se deu ao trabalho de explicar. Tampouco houve quem lhe pedisse explicações sobre essa alegação em que ele praticamente se compara a uma instituição pública, ou sobre as inverdades, meias-verdades e omissões com que tratou de se desvencilhar dos escândalos que o enredam. Sarney foi astuto. No lugar do pronunciamento de confronto que os aliados tinham antecipado, talvez para desorientar a oposição, adulou os seus pares, louvando o seu senso de justiça, e os exortou a "reconstruir a paz e a harmonia no Senado".
Encaixou onde pôde a mensagem de humildade, contrastando com a descrição altissonante de seus feitos ao longo da trajetória política de mais de meio século. "Todos aqui somos iguais. Nenhum senador é maior do que o outro", lisonjeou o plenário em dado momento - embora contrariando o grande paladino da sua incolumidade, Lula da Silva, que o considera "mais igual do que os outros". A tática do afago - a intimidação fica a cargo dos Renans Calheiros de sua guarda pretoriana - o ajudou ainda a compartilhar com os colegas ora a ignorância, ora a responsabilidade pelos problemas que espocaram neste seu terceiro mandato no comando da Câmara Alta. "Desconhecia - e eu acho que também todo o Senado - que o Senado tinha 170 diretorias. Elas não foram criadas por mim", exclamou, recorrendo, por sinal, ao conhecido artifício de rebater acusações inexistentes para desqualificar todas as demais. Como o papel aceita tudo e as palavras voam, permitiu-se achar que "ninguém aqui sabia ou podia pensar que existisse ato secreto", emendando que "afirmaram (?) que fui responsável por todos esses atos".
Mostrando-se meticuloso, apresentou uma tabela segundo a qual, dos 511 atos não publicados em parte alguma, 88 foram editados quando presidia a Casa (ante, por exemplo, 260 na gestão de Calheiros e 207 sob Garibaldi Alves). Mas o ponto simplesmente não é esse - e sim o fato de que foi ele quem nomeou e respaldou o diretor-geral Agaciel Maia, durante 14 anos o condutor das irregularidades em escala industrial na administração do Senado. No que foi tido como uma "defesa técnica", fez praça de esmiuçar "a grande acusação que me é feita" - a prática de nepotismo. Serviu uma macedônia de nomes, apenas para se desvincular da pletora de nomeações de parentes e afilhados, salvo no caso de uma sobrinha, "não julgando que nisso houvesse qualquer falha". A manipulação culminou com a memorável justificativa para o pedido a Agaciel para empregar o namorado da neta: "É claro que não existe o pedido de uma neta - se pudermos ajudar legalmente - que qualquer um de nós não deixa de ajudar." Precioso esse "legalmente": a nomeação saiu por ato secreto.
O espírito, por assim dizer, do discurso talvez tenha sido o seu único aspecto transparente: nada fez que já não tenha sido feito por seus pares. Ou, no famoso bordão do comediante Chico Anysio: "Sou, mas quem não é?" Terminou discretamente aplaudido. Depois, a farsa foi transportada para o recinto onde se reuniu o Conselho de Ética, cujo presidente escolhido a dedo pelo bloco sarneysista, o senador sem-voto Paulo Duque, cumpriu o papel a ele reservado no script. Alegando que não poderia acatar ações baseadas em "recortes de jornais", arquivou sumariamente 4 dos 11 pedidos de investigação contra Sarney, além de outro requerimento contra Calheiros. Foi para a gaveta, por exemplo, a acusação do líder do PSDB, Arthur Virgílio, de que o senador mentiu ao negar que tivesse poderes administrativos na Fundação José Sarney, de que ele é presidente vitalício. A entidade desviou para empresas fantasmas e do clã recursos recebidos da Petrobrás. Terá decerto o mesmo destino a denúncia, baseada em gravações da Polícia Federal, sobre o envolvimento de Sarney com o ato secreto da nomeação pedida pela neta. A oposição fará a expressão corporal de recorrer dos arquivamentos e produzir uma nota pelo afastamento do senador.
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