Vale a pena ler o artigo abaixo, sobre um gigante do jornalismo brasileiro, publicado na Folha desta terça.
Cláudio Abramo, jornalista marceneiro
ROBERTO MÜLLER FILHO
QUANDO RECEBI o convite para escrever sobre Cláudio Abramo, com quem trabalhei várias vezes nesta Folha e de quem fui amigo o tempo todo, tive uma espécie de medo e desejo irresistível de aceitar. Passados 20 anos de sua morte, ele ainda é o melhor de todos.
Herdei-lhe uma bengala, preciosa lembrança que guardo com grande carinho. Por via das dúvidas, ela está, enquanto escrevo, ao meu lado. Talvez para inspirar-me, quem sabe para tê-la ao alcance dos olhos, para evitar que Cláudio a utilize como reprimenda à ousadia de escrever sobre ele, seja pela pobreza do texto que estou produzindo, seja constrangido pelos elogios que certamente escorrerão do teclado enquanto tento conter a emoção que a lembrança de sua figura majestosa desperta.
Explico-me: o pouco que aprendi sobre jornalismo devo ao muito que ele sabia. Cláudio adotou-me assim que soube que eu estivera preso num navio-presídio, Raul Soares, onde descarregavam subversivos da Baixada Santista e de outros lugares.
Fez-me repórter, depois editor de economia, por duas vezes, quando implantava a reforma deste jornal, após ter feito, jovem ainda, a de "O Estado de S. Paulo". Leu meus textos, corrigiu-os impiedosamente. Com ele aprendi também a editar.
Algum tempo depois de sua vinda para a Folha, Cláudio comandou a grande mudança para o método de composição a frio, que aposentou a linotipia. Na fase inicial da mudança, a luta contra o tempo era implacável, horários rígidos de fechamento.
Lembro-me dele retirando os diagramas das editorias mesmo que ainda incompletos. Nos espaços vazios, entravam calhaus. Mas ele ajudava com sua experiência e genialidade. Havia um título de alto de página, de uma coluna, acho que eram quatro linhas de sete toques, dificílimo de fazer, sobretudo quando pressionados pela urgência do fechamento. De sua enorme mesa ao centro da ampla redação que comandava, Cláudio anunciava que chegara a hora de entregar os diagramas. Não raro, quando pedíamos clemência, alegando que faltava apenas produzir o maldito título de uma coluna, ele pedia que disséssemos de que a matéria tratava e, de pronto, ditava-nos, lá de seu posto, com impressionante exatidão, as tais quatro linhas de sete toques.
Aos jornalistas que aprendemos com ele, e fomos tantos, de tantas gerações, ficaram lições de forma e de conteúdo. De ética e de caráter. Autodidata, Cláudio falava fluentemente cinco línguas e escrevia em português e inglês. Leu muito, tinha uma cultura humanista admirável. As reportagens e colunas que escreveu ao longo da vida são impecáveis. Mas gostava mesmo era de ser marceneiro. A propósito, Cláudio era bom nisso também. Fazia bons móveis e dizia que a ética do jornalista, assim como a do marceneiro, era a mesma, ou seja, só havia uma ética, a do cidadão.
Modesto, não se levava a sério. Mas levava muito a sério a profissão. Fazia o trabalho com paixão. Participou de todos os embates políticos de seu tempo. Sempre do lado dos oprimidos. Foi vítima da ditadura como profissional e cidadão. Preso com sua mulher Radhá, manteve a altivez e a irreverência com os poderosos.
No comando, Cláudio era exigente, transmitia-nos técnica e regras de conduta. Aprendi com ele que é possível, embora não seja fácil, combinar emoção e isenção ao reportar os episódios que cobríamos.
Mas Cláudio era, sobretudo, justo e combinava isso com generosidade. Gostava de recrutar jovens, aos quais ensinava pelo exemplo. Houve um dia em que, constrange-me revelar, aprendi com ele uma preciosa lição de integridade. Testemunhei conversa tensa entre ele e Octavio Frias de Oliveira, uma de tantas, fruto de uma curiosa relação de respeito e farpas.
Cláudio tentava convencer Frias de que a Folha, que já se tornara o jornal de maior tiragem no Estado, precisava agregar influência. Recomendava a criação de uma ou duas páginas de opinião, com a contribuição de jornalistas notórios e respeitáveis. Apresentou três nomes famosos. Ante a resistência inicial de Frias, saiu fechando abruptamente a porta.
Atônito, temendo pela reação que o gesto pudesse provocar, atrevi-me a sugerir paciência a Frias, argumentando que Cláudio era um tanto irascível, mas certamente um grande jornalista. Recebi mal-humorada resposta, mais ou menos nesses termos: "E você acha que, se eu não soubesse disso, toleraria tal temperamento?".
Depois, fui ter com Cláudio e argumentei que os três nomes que ele sugerira eram competentes, mas nem sempre falavam bem dele. E foi aí que me veio a lição, inesquecível como um bofetão: "Eu sei, mas são grandes jornalistas e têm direito ao trabalho".
É por tudo isso que ele faz tanta falta.
ROBERTO MÜLLER FILHO, 65, jornalista, é diretor da edição brasileira da "Harvard Business Review" e da revista "Razão Contábil". Foi diretor da "Gazeta Mercantil" e editor de economia da Folha .
Cláudio Abramo, jornalista marceneiro
ROBERTO MÜLLER FILHO
QUANDO RECEBI o convite para escrever sobre Cláudio Abramo, com quem trabalhei várias vezes nesta Folha e de quem fui amigo o tempo todo, tive uma espécie de medo e desejo irresistível de aceitar. Passados 20 anos de sua morte, ele ainda é o melhor de todos.
Herdei-lhe uma bengala, preciosa lembrança que guardo com grande carinho. Por via das dúvidas, ela está, enquanto escrevo, ao meu lado. Talvez para inspirar-me, quem sabe para tê-la ao alcance dos olhos, para evitar que Cláudio a utilize como reprimenda à ousadia de escrever sobre ele, seja pela pobreza do texto que estou produzindo, seja constrangido pelos elogios que certamente escorrerão do teclado enquanto tento conter a emoção que a lembrança de sua figura majestosa desperta.
Explico-me: o pouco que aprendi sobre jornalismo devo ao muito que ele sabia. Cláudio adotou-me assim que soube que eu estivera preso num navio-presídio, Raul Soares, onde descarregavam subversivos da Baixada Santista e de outros lugares.
Fez-me repórter, depois editor de economia, por duas vezes, quando implantava a reforma deste jornal, após ter feito, jovem ainda, a de "O Estado de S. Paulo". Leu meus textos, corrigiu-os impiedosamente. Com ele aprendi também a editar.
Algum tempo depois de sua vinda para a Folha, Cláudio comandou a grande mudança para o método de composição a frio, que aposentou a linotipia. Na fase inicial da mudança, a luta contra o tempo era implacável, horários rígidos de fechamento.
Lembro-me dele retirando os diagramas das editorias mesmo que ainda incompletos. Nos espaços vazios, entravam calhaus. Mas ele ajudava com sua experiência e genialidade. Havia um título de alto de página, de uma coluna, acho que eram quatro linhas de sete toques, dificílimo de fazer, sobretudo quando pressionados pela urgência do fechamento. De sua enorme mesa ao centro da ampla redação que comandava, Cláudio anunciava que chegara a hora de entregar os diagramas. Não raro, quando pedíamos clemência, alegando que faltava apenas produzir o maldito título de uma coluna, ele pedia que disséssemos de que a matéria tratava e, de pronto, ditava-nos, lá de seu posto, com impressionante exatidão, as tais quatro linhas de sete toques.
Aos jornalistas que aprendemos com ele, e fomos tantos, de tantas gerações, ficaram lições de forma e de conteúdo. De ética e de caráter. Autodidata, Cláudio falava fluentemente cinco línguas e escrevia em português e inglês. Leu muito, tinha uma cultura humanista admirável. As reportagens e colunas que escreveu ao longo da vida são impecáveis. Mas gostava mesmo era de ser marceneiro. A propósito, Cláudio era bom nisso também. Fazia bons móveis e dizia que a ética do jornalista, assim como a do marceneiro, era a mesma, ou seja, só havia uma ética, a do cidadão.
Modesto, não se levava a sério. Mas levava muito a sério a profissão. Fazia o trabalho com paixão. Participou de todos os embates políticos de seu tempo. Sempre do lado dos oprimidos. Foi vítima da ditadura como profissional e cidadão. Preso com sua mulher Radhá, manteve a altivez e a irreverência com os poderosos.
No comando, Cláudio era exigente, transmitia-nos técnica e regras de conduta. Aprendi com ele que é possível, embora não seja fácil, combinar emoção e isenção ao reportar os episódios que cobríamos.
Mas Cláudio era, sobretudo, justo e combinava isso com generosidade. Gostava de recrutar jovens, aos quais ensinava pelo exemplo. Houve um dia em que, constrange-me revelar, aprendi com ele uma preciosa lição de integridade. Testemunhei conversa tensa entre ele e Octavio Frias de Oliveira, uma de tantas, fruto de uma curiosa relação de respeito e farpas.
Cláudio tentava convencer Frias de que a Folha, que já se tornara o jornal de maior tiragem no Estado, precisava agregar influência. Recomendava a criação de uma ou duas páginas de opinião, com a contribuição de jornalistas notórios e respeitáveis. Apresentou três nomes famosos. Ante a resistência inicial de Frias, saiu fechando abruptamente a porta.
Atônito, temendo pela reação que o gesto pudesse provocar, atrevi-me a sugerir paciência a Frias, argumentando que Cláudio era um tanto irascível, mas certamente um grande jornalista. Recebi mal-humorada resposta, mais ou menos nesses termos: "E você acha que, se eu não soubesse disso, toleraria tal temperamento?".
Depois, fui ter com Cláudio e argumentei que os três nomes que ele sugerira eram competentes, mas nem sempre falavam bem dele. E foi aí que me veio a lição, inesquecível como um bofetão: "Eu sei, mas são grandes jornalistas e têm direito ao trabalho".
É por tudo isso que ele faz tanta falta.
ROBERTO MÜLLER FILHO, 65, jornalista, é diretor da edição brasileira da "Harvard Business Review" e da revista "Razão Contábil". Foi diretor da "Gazeta Mercantil" e editor de economia da Folha .
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