Luiz Weis não é nenhum "petralha", como gostam de dizer os direitosos. Ao contrário, é editorialista do jornal O Estado de S. Paulo, que também não é nada simpático ao governo Lula. Tudo isto para reforçar que a análise de Weis sobre o movimento Cansei merece ser lida até o fim. Trata-se de uma reflexão lúcida, embora este blog não concorde com tudo que vai abaixo:
A indignação seletiva
Na véspera da manifestação do Cansei, na sexta-feira passada, em São Paulo, um amigo tentava persuadir o outro a participar do ato na Sé - contra, entre outras coisas, a corrupção. Em dado momento, o convidado arregalou os olhos: “Mas você não pagou outro dia R$ 400 para se livrar de uma obrigação legal?” (Perdoe o leitor a escassez de detalhes do relato verídico: é para proteger o culpado, como se diz.)
Impossível saber, obviamente, quantos dos manifestantes daquela tarde já não fizeram, ao menos uma vez, o mesmo que o cansado cuja incoerência o amigo não perdoou. Em todo caso, admita-se, apenas para raciocinar, a implausível hipótese de que, entre as 1.500 pessoas reunidas diante da catedral, aquela fosse a única que tivesse alguma vez cometido um ilícito do gênero.
Ainda assim, a história serviria perfeitamente bem para simbolizar o que o movimento tem de marcante - a hipocrisia. Diga-se desde logo que, entre os freqüentadores da arena pública nacional, esse traço não é exclusivo dos cansados; não torna menos condenáveis a impunidade, a violência, os impostos altos e os outros malfeitos contra os quais protestam; e não atinge, vai sem dizer, o seu sagrado direito de ir às ruas.
Uma parte da hipocrisia é a da parábola do homem que aponta o argueiro no olho alheio, evitando reparar na trave do seu próprio - o roto rindo do esfarrapado, como fala o povo. Alguns dos mais vistosos protagonistas do evento têm escassa ou nenhuma autoridade moral para denunciar os podres - reais - do Brasil, como se não tivessem contribuído com o próprio baldinho para o lameiro que (só) agora os horroriza.
Outra parte é a da agenda política encoberta pelas justas causas invocadas para o exercício de cidadania. Trata-se, evidentemente, de fazer o que os partidos de oposição parecem haver desistido: bater pesado no governo e, em especial, no presidente. A tanto chegou a hipocrisia que um dos pais do movimento disse que não ouviu os gritos de “fora, Lula” ao fim do ato. Deve ter sido o único na praça.
Raivosos por raivosos, primários por primários, antes os que pregavam sem disfarces “fora, FHC”. Mas não só a audição é seletiva na cansaçolândia - a indignação também. E aí a hipocrisia sobe ao pódio. Ninguém será ingênuo de imaginar que uma corrente se organize para pôr a boca no mundo contra tudo o que a cansa no seu país. Ou por serem demasiadas as mazelas, ou por cansarem algumas pessoas mais do que outras, quando cansam.
Umas, por exemplo, não suportam o desgoverno que deixou correr o apagão aéreo. Outras tampouco suportavam o desgoverno que deixou acontecer o apagão propriamente dito. Umas estão fartas de ouvir do presidente que não sabia disso, nem daquilo - incertas quanto ao que seria pior: ele não saber ou alegar não saber. Outras, também “por aqui”, pelo menos se lembram dos motivos pelos quais o antecessor era comparado a Maria Antonieta.
De todo modo, sendo o Brasil o que é - e o que até os cegos enxergam -, chega a ser inconcebível um protesto abrangente que não se dirija em primeiro lugar ao que nos devia manter cobertos de vergonha: o vasto repertório de injustiças que configuram o apartheid social brasileiro. E que protesto é esse que ignora a monumental incultura cívica que perpassa a sociedade de alto a baixo, da qual o desrespeito à lei é o carro-chefe?
Uma e outra são coisas nossas mesmo, robustas construções históricas erguidas com a cumplicidade de um Estado submetido aos predadores impunes dos bens públicos. Coisa igualmente nossa é a incultura civil, o corriqueiro comportamento anti-social de tantos, que degrada em barbárie as relações cotidianas nas já insuportáveis metrópoles nacionais - sporche, brutte e cattive, diriam os italianos -, São Paulo puxando a fila.
Que tal protestar também contra a arrogância e o preconceito dos que só não se cansam dos seus privilégios? Inesquecível, a propósito, o comentário entreouvido certo dia de um bem-apessoado cavalheiro. Ele culpava o presidente Lula pela catástrofe do Airbus da TAM. E culpava uma parte dos concidadãos por Lula ser presidente. “Esperar o quê”, perguntava o distinto, “se no Brasil analfabeto pode votar?”
Sábado último, no jornal O Globo, o senador e ex-presidenciável Cristovam Buarque escreveu Cansei, também, em que acrescenta 20 fundos motivos de fadiga aos do pessoal da Sé. “Cansei da tolerância passiva ante os dois muros nos quais o Brasil esbarra: o muro do atraso e o muro da desigualdade”, acusa, por exemplo. Mas a desesperança, que ele rejeita, é um luxo para poucos.
A ela podem se entregar apenas os que, sob Lula, não deixaram de fazer três boas refeições ao dia - ao contrário. Muitos deles desdenham do Bolsa-Família como reles assistencialismo e se recusam a reconhecer a competência do governo em tocar um programa que, segundo o insuspeito Ipea, melhorou substancialmente a vida da população alcançada - na qual os 40% mais pobres ficam com 80% dos recursos.
O desdém ainda é o menos letal dos ingredientes do simulacro de debate público que anda por aí. Na velha e na nova mídia, o rancor recíproco de lulistas e antilulistas é de deixar qualquer um desesperançado. A amarga ironia é que eles se agridem como se cada lado fosse o avesso do outro. Se já não houvesse provas de sobra da alienação política compartilhada, bastaria essa assintonia com a realidade para escancarar o abismo entre fatos e percepções.
Assim como uns repelem a idéia de que o Brasil avançou com Fernando Henrique, os que gritam “fora, Lula” não conseguem ver que o avanço prossegue. O atual governo aprofundou as políticas macroeconômicas do outro e aperfeiçoou as políticas sociais que começaram com aquele. No futuro, especula um acadêmico, por sinal eleitor de Lula, o período 1995-2010 será percebido como uma coisa só. Vá dizer isso aos exaltados do PT. Vá dizer isso aos cansados da Sé.
Luiz Weis é jornalista
A indignação seletiva
Na véspera da manifestação do Cansei, na sexta-feira passada, em São Paulo, um amigo tentava persuadir o outro a participar do ato na Sé - contra, entre outras coisas, a corrupção. Em dado momento, o convidado arregalou os olhos: “Mas você não pagou outro dia R$ 400 para se livrar de uma obrigação legal?” (Perdoe o leitor a escassez de detalhes do relato verídico: é para proteger o culpado, como se diz.)
Impossível saber, obviamente, quantos dos manifestantes daquela tarde já não fizeram, ao menos uma vez, o mesmo que o cansado cuja incoerência o amigo não perdoou. Em todo caso, admita-se, apenas para raciocinar, a implausível hipótese de que, entre as 1.500 pessoas reunidas diante da catedral, aquela fosse a única que tivesse alguma vez cometido um ilícito do gênero.
Ainda assim, a história serviria perfeitamente bem para simbolizar o que o movimento tem de marcante - a hipocrisia. Diga-se desde logo que, entre os freqüentadores da arena pública nacional, esse traço não é exclusivo dos cansados; não torna menos condenáveis a impunidade, a violência, os impostos altos e os outros malfeitos contra os quais protestam; e não atinge, vai sem dizer, o seu sagrado direito de ir às ruas.
Uma parte da hipocrisia é a da parábola do homem que aponta o argueiro no olho alheio, evitando reparar na trave do seu próprio - o roto rindo do esfarrapado, como fala o povo. Alguns dos mais vistosos protagonistas do evento têm escassa ou nenhuma autoridade moral para denunciar os podres - reais - do Brasil, como se não tivessem contribuído com o próprio baldinho para o lameiro que (só) agora os horroriza.
Outra parte é a da agenda política encoberta pelas justas causas invocadas para o exercício de cidadania. Trata-se, evidentemente, de fazer o que os partidos de oposição parecem haver desistido: bater pesado no governo e, em especial, no presidente. A tanto chegou a hipocrisia que um dos pais do movimento disse que não ouviu os gritos de “fora, Lula” ao fim do ato. Deve ter sido o único na praça.
Raivosos por raivosos, primários por primários, antes os que pregavam sem disfarces “fora, FHC”. Mas não só a audição é seletiva na cansaçolândia - a indignação também. E aí a hipocrisia sobe ao pódio. Ninguém será ingênuo de imaginar que uma corrente se organize para pôr a boca no mundo contra tudo o que a cansa no seu país. Ou por serem demasiadas as mazelas, ou por cansarem algumas pessoas mais do que outras, quando cansam.
Umas, por exemplo, não suportam o desgoverno que deixou correr o apagão aéreo. Outras tampouco suportavam o desgoverno que deixou acontecer o apagão propriamente dito. Umas estão fartas de ouvir do presidente que não sabia disso, nem daquilo - incertas quanto ao que seria pior: ele não saber ou alegar não saber. Outras, também “por aqui”, pelo menos se lembram dos motivos pelos quais o antecessor era comparado a Maria Antonieta.
De todo modo, sendo o Brasil o que é - e o que até os cegos enxergam -, chega a ser inconcebível um protesto abrangente que não se dirija em primeiro lugar ao que nos devia manter cobertos de vergonha: o vasto repertório de injustiças que configuram o apartheid social brasileiro. E que protesto é esse que ignora a monumental incultura cívica que perpassa a sociedade de alto a baixo, da qual o desrespeito à lei é o carro-chefe?
Uma e outra são coisas nossas mesmo, robustas construções históricas erguidas com a cumplicidade de um Estado submetido aos predadores impunes dos bens públicos. Coisa igualmente nossa é a incultura civil, o corriqueiro comportamento anti-social de tantos, que degrada em barbárie as relações cotidianas nas já insuportáveis metrópoles nacionais - sporche, brutte e cattive, diriam os italianos -, São Paulo puxando a fila.
Que tal protestar também contra a arrogância e o preconceito dos que só não se cansam dos seus privilégios? Inesquecível, a propósito, o comentário entreouvido certo dia de um bem-apessoado cavalheiro. Ele culpava o presidente Lula pela catástrofe do Airbus da TAM. E culpava uma parte dos concidadãos por Lula ser presidente. “Esperar o quê”, perguntava o distinto, “se no Brasil analfabeto pode votar?”
Sábado último, no jornal O Globo, o senador e ex-presidenciável Cristovam Buarque escreveu Cansei, também, em que acrescenta 20 fundos motivos de fadiga aos do pessoal da Sé. “Cansei da tolerância passiva ante os dois muros nos quais o Brasil esbarra: o muro do atraso e o muro da desigualdade”, acusa, por exemplo. Mas a desesperança, que ele rejeita, é um luxo para poucos.
A ela podem se entregar apenas os que, sob Lula, não deixaram de fazer três boas refeições ao dia - ao contrário. Muitos deles desdenham do Bolsa-Família como reles assistencialismo e se recusam a reconhecer a competência do governo em tocar um programa que, segundo o insuspeito Ipea, melhorou substancialmente a vida da população alcançada - na qual os 40% mais pobres ficam com 80% dos recursos.
O desdém ainda é o menos letal dos ingredientes do simulacro de debate público que anda por aí. Na velha e na nova mídia, o rancor recíproco de lulistas e antilulistas é de deixar qualquer um desesperançado. A amarga ironia é que eles se agridem como se cada lado fosse o avesso do outro. Se já não houvesse provas de sobra da alienação política compartilhada, bastaria essa assintonia com a realidade para escancarar o abismo entre fatos e percepções.
Assim como uns repelem a idéia de que o Brasil avançou com Fernando Henrique, os que gritam “fora, Lula” não conseguem ver que o avanço prossegue. O atual governo aprofundou as políticas macroeconômicas do outro e aperfeiçoou as políticas sociais que começaram com aquele. No futuro, especula um acadêmico, por sinal eleitor de Lula, o período 1995-2010 será percebido como uma coisa só. Vá dizer isso aos exaltados do PT. Vá dizer isso aos cansados da Sé.
Luiz Weis é jornalista
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