Está simplesmente impecável a crítica interna do Ombudsman da Folha de S. Paulo de quinta-feira. Vale a pena ler na íntegra, reproduzida abaixo, e refletir sobre o que sobra da cobertura do jornal sobre a crise aérea. Pouca coisa, certamente...
Ademais, Mário Magalhães vai se firmando como o mais corajoso Ombudsman que o jornal já teve, conforme este blog tem apontado. A seguir, a íntegra da crítica.
02/08/2007
No tempo da indelicadeza
MÁRIO MAGALHÃES
Cada cabeça, uma sentença.
A minha: é de uma infelicidade antológica o título principal da capa de Turismo. Desrespeita-se quem ainda chora os mortos de Congonhas e quem se angustia com as incertezas da aviação.
A legitimidade do furo
É de interesse público conhecer as causas da tragédia de Congonhas. Nem que seja, ficando em um só exemplo, para saber se as condições da pista do aeroporto contribuíram mais ou menos para o desastre.
A reportagem de ontem, assinada por Fernando Rodrigues, foi um serviço prestado aos leitores, antecipando dados da caixa-preta do Airbus que só seriam divulgados horas mais tarde, na CPI do Apagão Aéreo.
A calibragem do furo
Jornalística e tecnicamente, me pareceu correto o tom da reportagem da capa de Cotidiano de ontem. Já no primeiro parágrafo, informou-se que o mais provável é que tenha havido erro de pilotagem, mas que é possível que uma pane no computador do avião tenha sido decisiva para o acidente, e não a performance dos pilotos.
A manchete do furo
Eis a manchete de ontem: "Caixa-preta indica erro do piloto".
Logo abaixo, uma das duas linhas-finas alerta: "Gravações do Airbus da TAM sugerem falha de operação, mas erro do equipamento não é descartado".
O título da capa de Cotidiano: "Caixa-preta do Airbus indica falha do piloto".
Muitos leitores consideraram precipitado o verbo "indica". Para eles, a rigor, a Folha afirmou que houve falha do piloto.
Um leitor preferia "sugere".
É possível que se empregasse "admite".
Na minha opinião, a Folha não bancou que houve erro do piloto, apenas avançou informações confirmadas depois em público por oficial da Aeronáutica, disse que a hipótese de erro do piloto era a mais provável, mas chamou a atenção para a possibilidade de falha eletrônica.
Poderia ter sido um pouco mais precavida? Poderia, como se viu na edição de hoje.
Silêncio sobre furo alheio
Se há leitores que só lêem a Folha, desconhecem outros jornais, não freqüentam a internet, não vêem TV ou ouvem rádio, eles não foram informados até hoje, que eu tenha notado, que no fim de semana uma revista, a Veja, informou ter tido acesso a parte do conteúdo da caixa-preta, fonte para afirmar na capa: "O comandante cometeu uma falha ao pousar".
Sem ter ela própria apurado o que dizia a caixa-preta, não caberia à Folha subscrever investigação alheia.
Mesmo que discorde, com acerto, sobre conclusão definitiva acerca do que ainda não foi provado --qual foi o erro decisivo para a tragédia--, o jornal tinha obrigação, em pé de texto que fosse, de oferecer ao leitor a informação sobre a reportagem exclusiva da Veja.
Tudo o que se soube depois fortaleceu a versão da revista, embora, creio, a elucidação da tragédia ainda esteja por vir.
A inflexão da Folha
A edição de hoje "aposta" menos na hipótese de erro de pilotagem do que a de ontem, embora registre logo na chamada da manchete: "O que não se sabe é se foi erro do piloto, como o dado registrado indica, ou se houve falha no equipamento".
Transcrição
Pelo que entendi, a transcrição dos diálogos é a tradução do inglês, embora os pilotos falassem em português na cabine. Ou seja: traduziu-se o português para o inglês e depois este para o português.
Portanto, é pequena a chance de os diálogos impressos hoje serem 100% fiéis às palavras dos tripulantes no dia 17. Por exemplo, "oh" talvez seja "ai".
Tudo bem, é detalhe. Mas o jornal deveria ter informado essa limitação ao divulgar a transcrição.
Folha versus Folha
A reportagem "Não há previsão para novo alarme, diz Airbus" (pág. C3 de hoje) conta que a empresa "disse ontem que não há data para lançamento deste novo 'sistema de alerta automático'".
Já o texto "Para ex-piloto, houve falha do equipamento" (pág. C6) trata o tal sistema de alerta automático como já existente.
A ilegitimidade do show
Não é possível generalizar, mas o comportamento de muitos integrantes da CPI do Apagão permite suspeitar que seus propósitos são menos o de esclarecer do que o de aparecer.
A Folha deveria ter sido mais crítica na descrição da sessão de ontem.
Questão de gênero
Tenho em casa um velho companheiro, dividido em cinco volumes alquebrados, de nome Caldas Aulete.
O dicionário informa que "manete" é substantivo feminino.
Faz sentido: o francês "manette" também é.
Não é à toa que a tradição aeronáutica no Brasil se refere à manete, e não ao manete.
A Folha decidiu adotar o gênero masculino. É o que predicam o Aurélio e o Houaiss.
O "Globo" fica com o feminino.
O "Estado", com o masculino, mas o jornal manteve hoje as declarações de um brigadeiro na pronúncia original, "a" manete.
Como se viu, há base para escolher qualquer das duas opções.
Prefiro "a" manete, em nome da tradição, também dicionarizada.
Para padronizar, passo a escrever "o" manete, ainda que incentive o jornal a rever sua decisão.
Padronização
Reverso, reversor, reversível, dá no mesmo.
Incomoda, contudo a variação. A Folha deveria escolher uma só expressão.
Ganância
Compartilho um testemunho ocular: ontem e anteontem, com Congonhas e Santos Dumont às moscas, meus vôos foram cancelados. Embarquei nos seguintes, longe da lotação.
Suspeito que vôos da ponte-aérea entre São Paulo e Rio estejam sendo cancelados porque as empresas só querem voar com as aeronaves mais cheias.
Se for isso mesmo, a mensagem é: os usuários e seus compromissos que se danem.
Em certo aspecto, tudo como dantes da tragédia.
O outro apagão
Duração de vôo de ontem à noite São Paulo-Rio: 40 minutos no ar.
De carro, da alameda Barão de Limeira a Congonhas no fim da tarde: 1 hora e 45 minutos.
Erramos
Ao contrário do que afirma a reportagem "Falha ocorreu 2 segundos antes do pouso", na capa de Cotidiano de hoje, o reverso com problema no Airbus era o direito, e não o esquerdo. Saiu: "Os pilotos sabiam do problema no reversor do motor esquerdo".
Lições
Assim como a Folha e seus jornalistas, em textos noticiosos ou de opinião, não deveriam ter avançado conclusões carentes de confirmação sobre as causas da tragédia, o jornal deveria ser mais rigoroso na publicação de artigos de convidados.
Muitos deles venderam certezas que se mostraram furadas ou que ainda hoje esperam comprovação.
Primeira página - Foto
Por mais fracas que fossem as fotos da histórica sessão da CPI do Apagão Aéreo e mais forte que seja a da ponte que ruiu nos EUA, a imagem do alto da primeira página da edição São Paulo deveria tratar da tragédia de Congonhas.
Primeira Página - Sem capricho
Parece incrível e é: fotografia na primeira página de jogo de ontem à noite identifica nominalmente o jogador do Atlético-PR que disputa bola, mas não o do Corinthians --clube mais popular do Estado onde a Folha é editada.
Ademais, Mário Magalhães vai se firmando como o mais corajoso Ombudsman que o jornal já teve, conforme este blog tem apontado. A seguir, a íntegra da crítica.
02/08/2007
No tempo da indelicadeza
MÁRIO MAGALHÃES
Cada cabeça, uma sentença.
A minha: é de uma infelicidade antológica o título principal da capa de Turismo. Desrespeita-se quem ainda chora os mortos de Congonhas e quem se angustia com as incertezas da aviação.
A legitimidade do furo
É de interesse público conhecer as causas da tragédia de Congonhas. Nem que seja, ficando em um só exemplo, para saber se as condições da pista do aeroporto contribuíram mais ou menos para o desastre.
A reportagem de ontem, assinada por Fernando Rodrigues, foi um serviço prestado aos leitores, antecipando dados da caixa-preta do Airbus que só seriam divulgados horas mais tarde, na CPI do Apagão Aéreo.
A calibragem do furo
Jornalística e tecnicamente, me pareceu correto o tom da reportagem da capa de Cotidiano de ontem. Já no primeiro parágrafo, informou-se que o mais provável é que tenha havido erro de pilotagem, mas que é possível que uma pane no computador do avião tenha sido decisiva para o acidente, e não a performance dos pilotos.
A manchete do furo
Eis a manchete de ontem: "Caixa-preta indica erro do piloto".
Logo abaixo, uma das duas linhas-finas alerta: "Gravações do Airbus da TAM sugerem falha de operação, mas erro do equipamento não é descartado".
O título da capa de Cotidiano: "Caixa-preta do Airbus indica falha do piloto".
Muitos leitores consideraram precipitado o verbo "indica". Para eles, a rigor, a Folha afirmou que houve falha do piloto.
Um leitor preferia "sugere".
É possível que se empregasse "admite".
Na minha opinião, a Folha não bancou que houve erro do piloto, apenas avançou informações confirmadas depois em público por oficial da Aeronáutica, disse que a hipótese de erro do piloto era a mais provável, mas chamou a atenção para a possibilidade de falha eletrônica.
Poderia ter sido um pouco mais precavida? Poderia, como se viu na edição de hoje.
Silêncio sobre furo alheio
Se há leitores que só lêem a Folha, desconhecem outros jornais, não freqüentam a internet, não vêem TV ou ouvem rádio, eles não foram informados até hoje, que eu tenha notado, que no fim de semana uma revista, a Veja, informou ter tido acesso a parte do conteúdo da caixa-preta, fonte para afirmar na capa: "O comandante cometeu uma falha ao pousar".
Sem ter ela própria apurado o que dizia a caixa-preta, não caberia à Folha subscrever investigação alheia.
Mesmo que discorde, com acerto, sobre conclusão definitiva acerca do que ainda não foi provado --qual foi o erro decisivo para a tragédia--, o jornal tinha obrigação, em pé de texto que fosse, de oferecer ao leitor a informação sobre a reportagem exclusiva da Veja.
Tudo o que se soube depois fortaleceu a versão da revista, embora, creio, a elucidação da tragédia ainda esteja por vir.
A inflexão da Folha
A edição de hoje "aposta" menos na hipótese de erro de pilotagem do que a de ontem, embora registre logo na chamada da manchete: "O que não se sabe é se foi erro do piloto, como o dado registrado indica, ou se houve falha no equipamento".
Transcrição
Pelo que entendi, a transcrição dos diálogos é a tradução do inglês, embora os pilotos falassem em português na cabine. Ou seja: traduziu-se o português para o inglês e depois este para o português.
Portanto, é pequena a chance de os diálogos impressos hoje serem 100% fiéis às palavras dos tripulantes no dia 17. Por exemplo, "oh" talvez seja "ai".
Tudo bem, é detalhe. Mas o jornal deveria ter informado essa limitação ao divulgar a transcrição.
Folha versus Folha
A reportagem "Não há previsão para novo alarme, diz Airbus" (pág. C3 de hoje) conta que a empresa "disse ontem que não há data para lançamento deste novo 'sistema de alerta automático'".
Já o texto "Para ex-piloto, houve falha do equipamento" (pág. C6) trata o tal sistema de alerta automático como já existente.
A ilegitimidade do show
Não é possível generalizar, mas o comportamento de muitos integrantes da CPI do Apagão permite suspeitar que seus propósitos são menos o de esclarecer do que o de aparecer.
A Folha deveria ter sido mais crítica na descrição da sessão de ontem.
Questão de gênero
Tenho em casa um velho companheiro, dividido em cinco volumes alquebrados, de nome Caldas Aulete.
O dicionário informa que "manete" é substantivo feminino.
Faz sentido: o francês "manette" também é.
Não é à toa que a tradição aeronáutica no Brasil se refere à manete, e não ao manete.
A Folha decidiu adotar o gênero masculino. É o que predicam o Aurélio e o Houaiss.
O "Globo" fica com o feminino.
O "Estado", com o masculino, mas o jornal manteve hoje as declarações de um brigadeiro na pronúncia original, "a" manete.
Como se viu, há base para escolher qualquer das duas opções.
Prefiro "a" manete, em nome da tradição, também dicionarizada.
Para padronizar, passo a escrever "o" manete, ainda que incentive o jornal a rever sua decisão.
Padronização
Reverso, reversor, reversível, dá no mesmo.
Incomoda, contudo a variação. A Folha deveria escolher uma só expressão.
Ganância
Compartilho um testemunho ocular: ontem e anteontem, com Congonhas e Santos Dumont às moscas, meus vôos foram cancelados. Embarquei nos seguintes, longe da lotação.
Suspeito que vôos da ponte-aérea entre São Paulo e Rio estejam sendo cancelados porque as empresas só querem voar com as aeronaves mais cheias.
Se for isso mesmo, a mensagem é: os usuários e seus compromissos que se danem.
Em certo aspecto, tudo como dantes da tragédia.
O outro apagão
Duração de vôo de ontem à noite São Paulo-Rio: 40 minutos no ar.
De carro, da alameda Barão de Limeira a Congonhas no fim da tarde: 1 hora e 45 minutos.
Erramos
Ao contrário do que afirma a reportagem "Falha ocorreu 2 segundos antes do pouso", na capa de Cotidiano de hoje, o reverso com problema no Airbus era o direito, e não o esquerdo. Saiu: "Os pilotos sabiam do problema no reversor do motor esquerdo".
Lições
Assim como a Folha e seus jornalistas, em textos noticiosos ou de opinião, não deveriam ter avançado conclusões carentes de confirmação sobre as causas da tragédia, o jornal deveria ser mais rigoroso na publicação de artigos de convidados.
Muitos deles venderam certezas que se mostraram furadas ou que ainda hoje esperam comprovação.
Primeira página - Foto
Por mais fracas que fossem as fotos da histórica sessão da CPI do Apagão Aéreo e mais forte que seja a da ponte que ruiu nos EUA, a imagem do alto da primeira página da edição São Paulo deveria tratar da tragédia de Congonhas.
Primeira Página - Sem capricho
Parece incrível e é: fotografia na primeira página de jogo de ontem à noite identifica nominalmente o jogador do Atlético-PR que disputa bola, mas não o do Corinthians --clube mais popular do Estado onde a Folha é editada.
Incrivel como o experiente Ombudsman só agora entendeu que os cancelamentos de vôos nos aeroportos brasileiros, especialmente no eixo Rio-Sâo Paulo, não se devem a problemas de aterrissagens, de defeitos de pista, e quetais, mas ao desejo de somente sair com o avião lotado. Eu que com certeza viajo muito menos que o Ombudsman já sabia disso há tempos, por experiência própria, observação e conversa com o pessoal de aeroporto. Evidente, me aconteceu várias vezes, adiar ou antecipar o vôo porque o meu estaria vazio. Ora, ora!
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