Vale a pena ler o artigo abaixo, do mestre Alberto Dines, originalmente publicado no Último Segundo. Este blog não concorda com tudo que vai abaixo, mas admite que se trata de uma excelente análise.
Fidel, fiel
Renunciar é uma opção que não cabe na alma do ser político. O verbo mantém-se no vocabulário, ajuda na retórica, reaparece em emergências, serve como ameaça, mas na natureza do voluntarismo – é disso que se trata quando examinamos a política como filosofia - não cabe este gesto extremo.
Monarcas abdicam (quase sempre em favor de alguém), executivos demitem-se de cargos (para obter outros), representantes eleitos abrem mão dos mandatos (para logo tentar recuperá-los), crentes podem renegar suas crenças (inclusive para sobreviver, como acontecia na Inquisição), mas a renúncia é opção terminal, precursora do suicídio. Getúlio Vargas renunciou e matou-se, não havia meio termo, a transição entre um gesto e outro deve ter durado minutos.
Fidel Castro não renunciou: apenas trocou o título de comandante-em-chefe pelo de companheiro. Continua como guia, suas reflexões – embora permeadas de rememorações – funcionam como referência para o futuro. “Cuba mudou [em 1959] e seguirá seu rumo dialético" escreveu no “Granma” nesta sexta-feira.
Ficou evidente que o “renunciante” não abre mão da sua vocação missionária e, apesar da alegada fragilidade física tem energia para convocar não apenas seus leitores, mas o seu povo e seus dirigentes para continuar a caminhada iniciada há quase meio século.
Filósofos e cientistas políticos deverão ocupar-se nas próximas semanas com um novo game: qual é o matiz da dialética anunciada por Fidel – platônica, aristotélica, hegeliana ou marxista? Mas o que importa neste momento é compreender a dialética desta “renúncia”: Fidel Castro saiu de cena e roubou a cena.
A questão cubana arrombou a agenda eleitoral americana. O grito de guerra mudancista proclamado por Barack Obama e a aura de experiência exibida por Hillary Clinton não poderão passar ao largo da desumanidade do embargo econômico norte-americano contra Cuba. O bom-mocismo de McCain, agora ligeiramente empanado pelas relações com uma lobista, será obrigatoriamente testado pela inesperada rentrée da questão cubana no debate político americano.
A guerra no Iraque, de certa forma, homogeneizou as postulações dos três mais fortes candidatos à Casa Branca: nenhum deles consegue ser suficientemente diferenciado e afirmativo nesta matéria. Mas a “renúncia” de Fidel lançou a questão cubana na direção dos palanques e dos debates televisivos. Um dos candidatos, talvez o mais desesperado, poderá agarrar a bandeira do fim do embargo e os estrategistas eleitorais até agora ocupados com a imagem decadente do país, a crise imobiliária, a guerra contra o terror, as pesquisas genéticas, aborto, casamento gay e assistência médica, de repente terão que lidar com esta batata quente, quentíssima, que não interessa apenas aos exilados cubanos da Flórida, mas à comunidade latina dos EUA.
Apesar da encenação de renúncia, Fidel será doravante o avalista dos sucessores, a esta altura já escolhidos. O cronograma foi bem pensado e precisamente executado. Revigorado e, de certa forma, restabelecido (contudo limitado pela perda de algumas funções fisiológicas), o ex-comandante-agora-companheiro está perfeitamente apto a supervisionar a transição. Nenhum dos ditadores modernos conseguiu preparar sua sucessão, exceto Fidel.
Nenhum líder mundial contemporâneo conseguiu fazer um percurso tão surpreendente. O guerrilheiro incendiou uma geração, melancolizou outra e agora prepara-se para humanizá-las através de reflexões e textos. Em Sierra Maestra, os jovens idealistas faziam leituras coletivas de clássicos literários, agora o encanecido comandante oferece uma retribuição.
Em busca de metáforas, alguns comparam o líder cubano com D. Quixote, o sonhador alquebrado. Outros com El Cid, o Campeador (ferido e amarrado ao cavalo, ajudou a vencer os mouros no início da Reconquista da Espanha).
Fidel é fiel, nada mais do que isso.
Fidel, fiel
Renunciar é uma opção que não cabe na alma do ser político. O verbo mantém-se no vocabulário, ajuda na retórica, reaparece em emergências, serve como ameaça, mas na natureza do voluntarismo – é disso que se trata quando examinamos a política como filosofia - não cabe este gesto extremo.
Monarcas abdicam (quase sempre em favor de alguém), executivos demitem-se de cargos (para obter outros), representantes eleitos abrem mão dos mandatos (para logo tentar recuperá-los), crentes podem renegar suas crenças (inclusive para sobreviver, como acontecia na Inquisição), mas a renúncia é opção terminal, precursora do suicídio. Getúlio Vargas renunciou e matou-se, não havia meio termo, a transição entre um gesto e outro deve ter durado minutos.
Fidel Castro não renunciou: apenas trocou o título de comandante-em-chefe pelo de companheiro. Continua como guia, suas reflexões – embora permeadas de rememorações – funcionam como referência para o futuro. “Cuba mudou [em 1959] e seguirá seu rumo dialético" escreveu no “Granma” nesta sexta-feira.
Ficou evidente que o “renunciante” não abre mão da sua vocação missionária e, apesar da alegada fragilidade física tem energia para convocar não apenas seus leitores, mas o seu povo e seus dirigentes para continuar a caminhada iniciada há quase meio século.
Filósofos e cientistas políticos deverão ocupar-se nas próximas semanas com um novo game: qual é o matiz da dialética anunciada por Fidel – platônica, aristotélica, hegeliana ou marxista? Mas o que importa neste momento é compreender a dialética desta “renúncia”: Fidel Castro saiu de cena e roubou a cena.
A questão cubana arrombou a agenda eleitoral americana. O grito de guerra mudancista proclamado por Barack Obama e a aura de experiência exibida por Hillary Clinton não poderão passar ao largo da desumanidade do embargo econômico norte-americano contra Cuba. O bom-mocismo de McCain, agora ligeiramente empanado pelas relações com uma lobista, será obrigatoriamente testado pela inesperada rentrée da questão cubana no debate político americano.
A guerra no Iraque, de certa forma, homogeneizou as postulações dos três mais fortes candidatos à Casa Branca: nenhum deles consegue ser suficientemente diferenciado e afirmativo nesta matéria. Mas a “renúncia” de Fidel lançou a questão cubana na direção dos palanques e dos debates televisivos. Um dos candidatos, talvez o mais desesperado, poderá agarrar a bandeira do fim do embargo e os estrategistas eleitorais até agora ocupados com a imagem decadente do país, a crise imobiliária, a guerra contra o terror, as pesquisas genéticas, aborto, casamento gay e assistência médica, de repente terão que lidar com esta batata quente, quentíssima, que não interessa apenas aos exilados cubanos da Flórida, mas à comunidade latina dos EUA.
Apesar da encenação de renúncia, Fidel será doravante o avalista dos sucessores, a esta altura já escolhidos. O cronograma foi bem pensado e precisamente executado. Revigorado e, de certa forma, restabelecido (contudo limitado pela perda de algumas funções fisiológicas), o ex-comandante-agora-companheiro está perfeitamente apto a supervisionar a transição. Nenhum dos ditadores modernos conseguiu preparar sua sucessão, exceto Fidel.
Nenhum líder mundial contemporâneo conseguiu fazer um percurso tão surpreendente. O guerrilheiro incendiou uma geração, melancolizou outra e agora prepara-se para humanizá-las através de reflexões e textos. Em Sierra Maestra, os jovens idealistas faziam leituras coletivas de clássicos literários, agora o encanecido comandante oferece uma retribuição.
Em busca de metáforas, alguns comparam o líder cubano com D. Quixote, o sonhador alquebrado. Outros com El Cid, o Campeador (ferido e amarrado ao cavalo, ajudou a vencer os mouros no início da Reconquista da Espanha).
Fidel é fiel, nada mais do que isso.
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