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Para entender a demissão de Neschling

O jornalista Mauricio Stycer é um craque. Repórter especial do iG, já trabalhou na Folha (o autor destas Entrelinhas, à época um jovem redator na editoria de Cotidiano do jornal, jamais conseguiu mexer uma vírgula nos textos de Stycer porque eles chegavam para a edição absolutamente impecáveis), foi editor da Carta Capital e recentemente também se tornou blogueiro. Na semana passada, Mauricio publicou no Último Segundo a mais completa reportagem sobre a saída do maestro John Neschling do comando da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo. É um trabalho de fôlego, com muita apuração, e brilhantemente apresentado. Vale a pena ler até o final, pois diz muito das relações entre cultura e política. Abaixo, na íntegra, para os leitores do Entrelinhas.

Demissão anunciada: os bastidores da queda de John Neschling da Osesp

A demissão do maestro John Neschling do comando da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp) é, há dez dias, o assunto mais comentado nos ambientes culturais e políticos de São Paulo.

Dirigente da orquestra desde 1997, o maestro foi demitido por carta, assinada pelo presidente do Conselho de Administração da Osesp, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, no último dia 21, em resposta a uma entrevista que deu ao jornal “O Estado de S.Paulo”, em 8 de dezembro de 2008.

É um episódio ainda cercado de mistérios e muita fofoca, que a reportagem do Último Segundo tentou reconstituir, ouvindo uma dezena de pessoas, nos últimos dias. Quase sempre sob o compromisso do anonimato, os entrevistados ajudam a unir alguns pontos, mas deixam outros em aberto, ainda à espera de esclarecimentos.

O que se sabe, oficialmente, é que Neschling será substituído temporariamente, até 30 de outubro de 2010, quando se encerrava o seu contrato, pelo maestro francês Yan Pascal Tortelier. As duas funções que exercia simultaneamente na orquestra, a de diretor musical e de regente principal, não deverão mais ser ocupadas por uma mesma pessoa.

O “timing” da demissão do maestro causou alguma insatisfação e mal estar entre os assinantes, que compraram pacotes antecipadamente, no final de 2008, para assistir a apresentações da orquestra ao longo de 2009. O novo programa previa a presença de Neschling em diversos concertos e isso, certamente, influenciou na decisão de compra de pacotes para o ano.

Entre a notícia da demissão de Neschling, dia 21, e esta sexta-feira, 30 de janeiro, apenas 12 assinantes da orquestra pediram o cancelamento das suas assinaturas para 2009 e receberam o dinheiro pago de volta. Trata-se de um número insignificante diante das 11.795 pessoas que assinaram diferentes programas da Osesp em 2008 (o número total de assinaturas vendidas este ano ainda não foi divulgado).

O economista Tiago Martinez Giorgetto está entre os que cancelaram a assinatura. Depois de prestigiar a Osesp por cinco temporadas, Tiago resolveu interromper o seu compromisso por discordar da forma como a crise com Neschling está sendo gerida. “Ele foi demitido por e-mail. Isso me incomoda”, diz. Tiago também lamenta que os assinantes não tiveram voz alguma no processo. “Eu não tinha a pretensão de decidir, mas gostaria de ser ouvido”.

Essa queixa ecoa em diferentes ambientes. No Orkut, por exemplo, a professora Maria José Ferreira do Amaral mantém uma comunidade chamada “Pensar Osesp, o Mundo e a Música”. Um dos temas debatidos no fórum é justamente sobre a representatividade (ou falta de) do Conselho da orquestra.

“Acompanho a orquestra há dez anos. Vou lá semanalmente”, diz Maria José. “Acho que eu teria de ser ouvida”, reclama. Os músicos da orquestra têm um representante no conselho, o trombonista Darrin Milling, mas os assinantes não têm assento no órgão. “O conselho não é representativo. Pedimos para ser recebidos, mas nada. Tal é a nossa estatura”, lamenta Maria José.

Orquestra pública até 2005, a Osesp hoje é uma Oscip, uma organização da sociedade civil de interesse público. A sua gestão é responsabilidade da Fundação Osesp, cujo Conselho de Administração é presidido por Fernando Henrique Cardoso. O governo de São Paulo, no entanto, é ainda a principal fonte de recursos da orquestra. A dotação em 2008 foi de R$ 43 milhões, mas a orquestra é obrigada a arrecadar 12% do valor repassado junto à iniciativa privada.

O Conselho de Administração da Osesp foi criado por iniciativa do próprio Neschling ao longo do processo de separação da orquestra do governo do Estado. Além de FHC, os demais integrantes do Conselho são Pedro Moreira Salles (vice-presidente), Alberto Dines, Celso Lafer, Horacio Lafer Piva, José Ermírio De Moraes Neto, Luiz Schwarcz, Pedro Malan, Persio Arida e Rubens Antonio Barbosa – além de um músico da orquestra (no site da fundação aparece o nome de Eneida Mônaco, mas, segundo a assessoria, o atual representante é Darrin Milling).

A imagem de Neschling

Sob o comando de Neschling, nesses doze anos, a orquestra se tornou a mais importante do Brasil e ganhou reconhecimento no exterior. Em 1999, foi inaugurada a moderna Sala São Paulo, na antiga estação Julio Prestes, resultado de um investimento do governo Mario Covas de R$ 44 milhões.

Sua gestão à frente da orquestra é reputada unanimemente como decisiva para a transformação da Osesp numa instituição sólida e respeitada. É também, e ao mesmo tempo, uma administração polêmica, marcada por uma série de incidentes que, tornados públicos, ajudaram a construir uma imagem muito negativa de Neschling.

Administração marcada por incidentes

Da divulgação de seu salário (hoje em torno de R$ 110 mil mensais) às diárias que recebe quando está no exterior (superiores às do governador), passando pelos inúmeros conflitos com músicos e funcionários, Neschling tem a reputação de ser uma pessoa de trato difícil, autoritário, paranóico e, tudo indica, com mania de grandeza. Acumulou inúmeros inimigos ao longo do período em que dirigiu a orquestra e foi alvo, mais de uma vez, de tentativas de tirá-lo do cargo.

Num dos incidentes mais comentados, uma gravação realizada secretamente por músicos da orquestra em 2007, Neschling reclama do governador José Serra (“é um menino mimado”) e alardeia o seu poder junto ao Conselho da orquestra (“o Conselho não abre mão de mim”).

Em meados de 2008, desgastado, Neschling desistiu de tentar permanecer à frente da orquestra e concordou em deixar o cargo ao final do seu contrato, em outubro de 2010. Parecia ser a solução que todos os lados desejavam – tanto os amigos quanto os inimigos do maestro. A Fundação Osesp teria, então, mais de dois anos para escolher o seu sucessor.

"Minha sucessão está sendo feita"

Mas Neschling estava magoado. Em junho de 2008, em entrevista à “Folha de S.Paulo”, disse que “o conselho sofreu enormes pressões políticas”. E, em 9 de dezembro, em entrevista ao jornal “O Estado de S.Paulo”, foi além.

Na entrevista, intitulada “Minha sucessão está sendo feita de maneira irresponsável”, o maestro revela que, em dezembro de 2007, foi informado pelo vice-presidente do conselho, Pedro Moreira Salles, que o seu contrato não seria renovado. Também foi comunicado que a Fundação iria chamar consultores estrangeiros para ajudá-la na escolha do seu sucessor.

Depois dessa conversa, diz, no início de 2008 enviou uma carta a FHC comunicando que abria mão, em outubro de 2008, de renovar o seu contrato, concordando com o término previsto, para outubro de 2010. Diz ele na entrevista ao Estadão:

“Nela (na carta), eu colocava que, por tudo o que estava acontecendo, se eu não dissesse que sairia, seria ‘saído’. Era uma carta pessoal, não foi oficial. Mas, antes de qualquer resposta, recebi uma carta, uma semana depois, aceitando minha decisão de não renovar meu contrato.”

Em outros trechos da entrevista, Neschling argumenta sobre o risco, a seu ver, de chamar consultores estrangeiros para opinar sobre a sucessão na Osesp. “O perigo é imenso. A possibilidade de dar errado é grande porque não há um projeto claro. A vinda dos consultores é símbolo disso. Você traz um cara inexpressivo para passar aqui não mais que 36 horas para dizer o que mudar no projeto?”, dizia.

A entrevista ao “Estadão” é citada na carta de Fernando Henrique Cardoso como o fato novo que determinou “a ruptura contratual imediata”. “A manifestação pública de Vossa Senhoria deixa poucas dúvidas quanto à possibilidade – como era nossa intenção – de uma convivência harmoniosa no processo de sucessão, evidenciando conduta indesejável e inconciliável com o desempenho das atribuições contratuais”.

A nota não deixa claro – e isso é motivo de forte especulação – se o Conselho considera que tem motivos para não indenizar Neschling, como prevê o contrato, pela ruptura antes do prazo final. Também não se esclarece na nota a demora em tomar esta decisão – passaram-se 42 dias entre a publicação da entrevista e a demissão. Em entrevista ao “Jornal do Brasil”, o maestro declarou-se “chocado” com a notícia da demissão, recebida por e-mail, e não descartou a possibilidade de levar o caso à Justiça.

O Último Segundo procurou falar com o presidente do Conselho da Osesp. A assessoria de imprensa da orquestra informou que Fernando Henrique Cardoso prestará esclarecimentos sobre o assunto, mas ainda não definiu quando fará isso. Três conselheiros procurados pelo Último Segundo informaram que apenas FHC falará sobre o assunto.

José Roberto Walker, assessor de Neschling, não concorda com a tese de que a entrevista, ao expor integrantes do Conselho da orquestra, tenha sido a causa da demissão do maestro. “A intenção da entrevista não era acender uma fogueira contra o Conselho, mas alertá-los para as consequências de uma transição mal feita”, diz Walker.

Apesar de a Osesp ter uma assessoria de imprensa própria, a FSB, em fevereiro de 2008 Neschling contratou os serviços de Walker, da Retrato, uma agência de marketing que também faz assessoria de imprensa. Walker foi, no governo Alckmin, diretor da Rádio Cultura, e foi afastado do cargo em 2007, na gestão Serra, numa reestruturação radical ocorrida na rádio, que culminou com a extinção de 17 programas.

Não deixa de ser irônico que o principal assessor de Neschling em 2008 fosse uma pessoa, politicamente, próxima a Alckmin – justamente no ano em que os dois tucanos chocaram-se abertamente por causa da disputa pela Prefeitura de São Paulo. Serra, como se sabe, apoiou a candidatura de Gilberto Kassab (DEM) mesmo depois que Geraldo Alckmin lançou-se candidato pelo PSDB.

Histórico de desavenças com Serra

Por coincidência, dois dias antes da demissão de Neschling, em 19 de janeiro, Serra anunciou o nome de Alckmin como secretário de Desenvolvimento do governo paulista, o que foi interpretado como sinal de um acordo, ou ao menos de trégua, entre os dois políticos.

Na entrevista ao “Estadão”, Neschling rememora o seu histórico de desavenças com o governador de São Paulo. “Tudo começou há dois anos, quando assumiu o governador José Serra. Não é segredo nenhum que, mesmo antes da posse, já se falava na minha substituição. O governador não queria, não gostava, não sei o quê.”

Serra ainda era prefeito de São Paulo, em novembro de 2005, quando a Osesp foi convidada a participar da primeira Virada Cultural. Neschling cancelou a apresentação da orquestra sob o argumento que não havia condições técnicas de uma boa exibição. Desde este incidente, Serra nunca mais prestigiou uma apresentação da Osesp.

Com Serra governador, em 2006, o economista João Sayad foi nomeado secretário de Cultura. Sayad logo apontou Claudia Toni como Assessora de Música. Não foi uma escolha sem significados. Por alguns anos, até 2002, Claudia foi diretora-executiva da Osesp, braço-direito de Neschling. Eram muito próximos. Naquele ano, por razões nunca tornadas públicas, Claudia foi demitida da orquestra.

Na entrevista ao “Estadão”, Neschling atribui as suas dificuldades no governo do Estado e também no Conselho da Osesp justamente a Claudia Toni: “Insisto que não há razão artística para minha saída. O que existe é uma assessora do secretário, Cláudia Toni, que foi diretora da Osesp e cuja missão pessoal é, hoje, se vingar. (...) Eu não sei se o conselho concorda com a necessidade de mudança, mas se rendeu a ela.”

A demissão de Neschling, tudo indica, é o mais recente capítulo, mas não o epílogo, de uma história potencialmente polêmica, pelas suas muitas intrigas e conexões que estabelece entre o mundo cultural e o mundo político.

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