Pular para o conteúdo principal

Serra enfrenta Fernando Henrique

Um artigo publicado nesta segunda-feira na Folha de S. Paulo e reproduzido abaixo, de autoria do jornalista João Batista Natali, traz para a opinião pública uma disputa que estava circulando apenas nos bastidores do PSDB. Segundo o texto, o governador José Serra estaria disposto a "queimar" o maestro John Neschling, da Orquestra Sinfônica do Estado, a fim de afastá-lo do cargo. Até aí, poderia ser apenas uma mudança corriqueira, natural, até, em trocas de governo. Ocorre que a permanência Neschling é bancada pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que hoje preside o Conselho de Administração da Fundação Osesp. Segundo este blog apurou, FHC teria feito um pedido pessoal pela manutenção de Neschling. Em um primeiro momento, Serra teria aceitado, mas agora voltou atrás e está mesmo disposto a forçar a saída do maestro, de preferência sem precisar demiti-lo. Leia a seguir o texto de Natali.


José Serra e a música

O Governador José Serra não é um homem inculto.
Economista com boa carreira acadêmica, tem ainda grande experiência na gestão de políticas públicas. Mas a música erudita não está entre seus campos de interesse. Talvez apenas por isso ele corra o risco de, já no início do governo, colocar no currículo o título duvidoso de coveiro da Osesp, a Orquestra Sinfônica do Estado.
É essencialmente essa a dimensão do processo de fritura do diretor artístico John Neschling, que se confunde com um dos únicos projetos coletivos da cultura brasileira a se tornar uma ilha de excelência de reconhecimento mundial.
O maestro tem a reputação de estrela idiossincrática, de egocentrismo mal-humorado, de excessivamente caro. O que importa, no entanto, é o produto de um trabalho que deu aos brasileiros uma auto-estima elevadíssima em termos de produção de música sinfônica.
Neschling tem com a Osesp uma relação osmótica. Não há como demiti-lo sem que se expatrie parte dos músicos estrangeiros que ele trouxe, sem que se abandone a ousadia do repertório ou se engavete a projeção externa do Brasil por suas turnês e gravações. E, sobretudo, sem que vá a pique a rotina de elevada cultura para os milhares que freqüentam os três concertos semanais da Sala São Paulo.
Há para o governador um outro ponto potencial de desonra. É o de acabar com o Teatro São Pedro ou transformar sua recente vocação de espaço experimental para óperas. Foram dez produções no ano passado -duas a mais que no Teatro Municipal. O teatro está sendo cobiçado pelo olho gordo de produtores que gravitam em torno do tucanato. "Bravo, bravíssimo", como diria ironicamente um personagem de "Don Giovanni", ópera picaresca de Mozart.
Serra estaria apenas seguindo o mau exemplo do prefeito Gilberto Kassab, que permitiu o recente desmantelamento do Quarteto de Cordas da Cidade de São Paulo. Se seus músicos erraram, que sejam punidos por multas ou suspensão.
Afastá-los e abrir concurso para substituí-los não assegura a manutenção do mesmo padrão. Um conjunto de câmara apenas vai adiante com afinidades estéticas que permitam mergulhar no repertório com uma aguda simetria nos planos técnico e musical.
A Osesp, o São Pedro e o quarteto podem caminhar para a vala comum das grandes frustrações brasileiras no campo da música erudita, que não sobrevive em nenhum canto do mundo sem o amplo apoio de governantes -mesmo nos Estados Unidos, onde o Estado entra no jogo por meio da renúncia fiscal. O resto é birra, é pirraça, é estreiteza de visão. Atributos que o governador certamente não quer ter acoplados a sua imagem.
natali@folhasp.com.br

JOÃO BATISTA NATALI é repórter da Folha.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Rogério Andrade, o rei do bicho

No dia 23 de novembro do ano passado, o pai de Rodrigo Silva das Neves, cabo da Polícia Militar do Rio de Janeiro, foi ao batalhão da PM de Bangu, na Zona Oeste carioca, fazer um pedido. O homem, um subtenente bombeiro reformado, queria que os policiais do quartel parassem de bater na porta de sua casa à procura do filho — cuja prisão fora decretada na semana anterior, sob a acusação de ser um dos responsáveis pelo assassinato cinematográfico do bicheiro Fernando Iggnácio, executado com tiros de fuzil à luz do dia num heliporto da Barra da Tijuca. Quando soube que estava sendo procurado, o PM fugiu, virou desertor. Como morava numa das maiores favelas da região, a Vila Aliança, o pai de Neves estava preocupado com “ameaças e cobranças” de traficantes que dominam o local por causa da presença frequente de policiais. Antes de sair, no entanto, o bombeiro confidenciou aos agentes do Serviço Reservado do quartel que, “de fato, seu filho trabalhava como segurança do contraventor Rogério And...

Dica da semana: Nine Perfect Strangers, série

Joia no Prime traz drama perturbador que consagra Nicole Kidman  Dizer que o tempo não passou para Nicole Kidman seria tão leviano quanto irresponsável. E isso é bom. No charme (ainda fatal) de seus 54 anos, a australiana mostra que tem muita lenha para queimar e escancara o quanto as décadas de experiência lhe fizeram bem, principalmente para composição de personagens mais complexas e maduras. Nada de gatinhas vulneráveis. Ancorando a nova série Nine Perfect Strangers, disponível na Amazon Prime Video, a eterna suicide blonde de Hollywood – ok, vamos dividir o posto com Sharon Stone – empresta toda sua aura de diva para dar vida à mística Masha, uma espécie de guru dos novos tempos que desenvolveu uma técnica terapêutica polêmica, pouco acessível e para lá de exclusiva. Em um lúdico e misterioso retiro, a “Tranquillum House”, a exotérica propõe uma nova abordagem de tratamento para condições mentais e psicossociais manifestadas de diferentes formas em cada um dos nove estranhos, “...

No pior clube

O livro O Crepúsculo da Democracia, da escritora e jornalista norte-americana Anne Applebaum, começa numa festa de Réveillon. O local: Chobielin, na zona rural da Polônia. A data: a virada de 1999 para o ano 2000. O prato principal: ensopado de carne com beterrabas assadas, preparado por Applebaum e sua sogra. A escritora, que já recebeu o maior prêmio do jornalismo nos Estados Unidos, o Pulitzer, é casada com um político polonês, Radosław Sikorski – na época, ele ocupava o cargo de ministro do Interior em seu país. Os convidados: escritores, jornalistas, diplomatas e políticos. Segundo Applebaum, eles se definiam, em sua maioria, como “liberais” – “pró-Europa, pró-estado de direito, pró-mercado” – oscilando entre a centro-direita e a centro-esquerda. Como costuma ocorrer nas festas de Réveillon, todos estavam meio altos e muito otimistas em relação ao futuro. Todos, é claro, eram defensores da democracia – o regime que, no limiar do século XXI, parecia ser o destino inevitável de toda...