Busca por imunizante do coronavírus envolve 147 pesquisas pelo mundo que devem resultar em doses no Brasil já na virada do ano, escreve Carlos Rydlewski no Valor, em importante matéria publicada no caderno Eu&Fim de Semana na sexta, 10/7.
Eis a pergunta que não quer calar: afinal, vai ter vacina contra a covid-19? Sim. Até outubro, devem ser divulgadas as informações definitivas sobre a eficácia das primeiras candidatas a imunizantes desenvolvidas para conter a doença, cuja expansão provocou, até aqui, a morte de quase 550 mil pessoas no mundo. Se tudo der certo com os testes em curso, o Brasil poderá contar com 90 milhões de doses desses produtos entre o fim do ano e o início de 2021.
Tantas esperanças concentram-se em duas frentes. A primeira responde pelo nome de AZD 1222, mas já foi chamada de ChAdOx1. Tais emaranhados de letras e números nasceram nas bancadas do Jenner Institute, da Universidade de Oxford, na Inglaterra, em parceria com a farmacêutica sueco-britânica AstraZeneca. Eles designam a vacina que está sendo aplicada em 50 mil voluntários desde junho.
São 5 mil pessoas no Brasil, 30 mil nos EUA, 10 mil no Reino Unido e outros 5 mil espalhados pela África e Ásia. “Os resultados dos testes devem sair entre setembro e outubro”, diz Jorge Mazzei, diretor de relações corporativas da AstraZeneca. “Se as análises forem positivas, teremos 30 milhões de doses disponíveis entre dezembro e janeiro no Brasil, com a expectativa de mais 70 milhões num segundo momento. Em todo o mundo, vamos produzir 2 bilhões de doses em 2021.”
A segunda fonte de expectativas vem da China. A CoronaVac, vacina criada pela Sinovac, empresa de biotecnologia com sede em Pequim, está sendo testada em 9 mil brasileiros, em 12 regiões. Em São Paulo, abrangem a capital paulista, São Caetano, Campinas, São José do Rio Preto e Ribeirão Preto. Isso além de polos em três Estados (Rio, Minas, Paraná) e no Distrito Federal.
“Em uma boa perspectiva, poderemos concluir os ensaios até o fim deste ano”, diz Dimas Covas, diretor do Instituto Butantan, em São Paulo, responsável pela condução dos estudos no país. “Mas já teremos 60 milhões de doses da vacina à disposição em setembro, e esse número pode chegar a 120 milhões no início de 2021.”
É enorme a ansiedade em torno da descoberta de um imunizante contra o Sars-CoV-2, o vírus que causa a covid-19. Uma vacina representaria uma barreira contra o desastre sanitário e econômico que varre o planeta, além de proporcionar possível passagem de volta à vida como ela era antes. Porém, cabem “senões” às notícias alvissareiras dadas até aqui. Esses experimentos, observam especialistas, precisam comprovar sua eficácia - tarefa que não é trivial.
A inserção do Brasil na vanguarda dos exames clínicos deu-se por linhas tortas. Embora os laboratórios internacionais reconheçam a qualidade da ciência praticada por aqui, esses ensaios ocorrem em locais onde o coronavírus está bem ativo. Quanto mais ele fervilhar, melhor para os exames. Como a covid-19 está em franca ascensão no país, os brasileiros assumiram o posto de cobaias preferenciais do planeta. “Nós nos tornamos um campo de testes fantástico”, diz Soraya Smaili, reitora da Unifesp, que coordena o estudo da candidata a vacina da dupla Oxford-AstraZeneca. “Mas o fato é que todos reconhecem que podemos fazer um excelente trabalho nesse campo, e essa é uma lição importante para o país.”
O atual processo de criação das vacinas marca um feito insólito. “O desenvolvimento de um imunizante consome, em média, entre 10 e 15 anos”, diz Márjori Dulcine, diretora médica da Pfizer. “Hoje, embora ainda estejamos nas etapas de testes, estamos vendo tudo acontecer em questão de meses. Isso não tem precedentes.”
Para ter uma ideia da amplitude desse salto, considere que a vacina da catapora levou 28 anos para ficar pronta. A mais rápida da história foi a da caxumba, com quatro anos de prazo, na década de 1960. Esse corte no tempo de maturação do produto está sendo obtido por meio de uma somatória de fatores. Ela inclui uma mobilização incomum entre países, instituições, empresas e órgãos reguladores, além de uma considerável porção de engenho humano.
A tecnologia é central para a aceleração. Os métodos tradicionais de produção de vacina utilizam diretamente o vírus, o organismo vivo. Grosso modo, ele é enfraquecido ou inativado e, depois, aplicado em uma pessoa por meio de uma solução. Debilitado, o material viral já não consegue provocar a doença, mas induz o sistema imunológico à reação contra esse ser estranho. Tal técnica é empregada nos dias correntes, mas nova gama de recursos e estratégias proporcionou velocidade inédita a esse processo.
Esse é o caso das plataformas tecnológicas que empregam ácidos nucleicos, como o DNA e do RNA mensageiro (mRNA). Elas prescindem do vírus. Utilizam somente seus dados genéticos. Com isso, ganha-se tempo. A sequência genética do Sars-CoV-2, por exemplo, foi publicada pela primeira vez em 11 de janeiro. Em 16 de março, a Moderna, firma de biotecnologia dos EUA, iniciou os testes clínicos em humanos de imunizante à base de mRNA. Usando o mesmo método, no dia seguinte a chinesa CanSino começou ensaios. Em condições normais, tal fase do desenvolvimento do produto demoraria um ano. Agora, foi reduzida a dois meses.
Joseph Kim, executivo-chefe da Inovio, de San Diego, na Califórnia, que utiliza uma plataforma de DNA, foi mais longe - ou melhor, mais rápido. Disse que precisou de apenas 3h para projetar uma vacina contra a covid-19, batizada de INO-4800, depois que as informações genéticas do novo coronavírus se tornaram públicas.
São ações que precisam ser ponderadas. Luciana Cezar de Cerqueira Leite, pesquisadora do Instituto Butantan, observa que as vacinas à base de ácidos nucleicos apresentam “muitas vantagens e são fáceis de lidar”. Ainda assim, têm muito o que provar. “As de DNA, por exemplo, são estudadas há mais de duas décadas”, afirma. “Elas têm respostas muito boas em animais, mas, em humanos, nem tanto. O nosso sistema imunológico é muito mais complexo. Agora, vamos ver como esses recursos atuam contra a covid.”
A bióloga Natalia Pasternak, diretora do Instituto Questão de Ciência, em São Paulo, acrescenta que outra vantagem das técnicas que usam DNA, mRNA e vetores virais, usada no experimento de Oxford, é a versatilidade. “Em tese, são ideias para episódios pandêmicos”, diz. “Isso porque basta trocar a sequência genética usada na plataforma que podemos alterar o tipo de vacina que está sendo produzida.” Com isso, indica, é possível oferecer respostas rápidas a novos vírus, ou mesmo a mutações de um patógeno.
A vacina da parceria Oxford-AstraZeneca, por exemplo, em teste no Brasil, usa plataforma de um adenovírus (que normalmente causa doenças respiratórios, como resfriados) de chimpanzé. Ela havia sido empregada na pesquisa de imunizantes contra a Sars (a síndrome respiratória aguda grave), que matou 800 pessoas entre 2002 e 2003, e a Mers (a síndrome respiratória do Oriente Médio), identificada em 2012, que levou 900 pessoas à morte. A versão contra a Sars estava pronta para testes em humanos, mas o número de casos caiu e as análises foram interrompidas. A Moderna também havia desenvolvido nove vacinas experimentais, cuja essência do sistema foi adaptada ao novo coronavírus.
O desenho dos projetos é outro elemento que dá celeridade às vacinas. Nesse sentido, a alemã BioNTech e a americana Pfizer estão desenvolvendo quatro imunizantes diferentes. Baseadas em mRNA, diferem no tipo de proteína do vírus que querem atacar. “Uma das vantagens de analisar quatro modelos diferentes ao mesmo tempo é que as nossas chances de sucesso, em tese, quadruplicam”, diz Márjori Dulcine, da Pfizer. A expectativa da companhia é produzir 100 milhões de doses do produto que se mostrar mais eficaz neste ano e mais de 1 bilhão em 2021.
Para Soraya, os estudos também ganham rapidez por causa do uso de sistemas de dados abertos. “Neles, podemos obter informações importantes para as pesquisas, ainda que não sejam conclusivas.” Ela ressalta, porém, que embora seja precioso para os pesquisadores, o mecanismo já derrapou pilotado por leigos. “Um exemplo desse problema foi a cloroquina. Os trabalhos preliminares sugeriam que o medicamento poderia ser promissor contra a covid. Depois, constatamos que a história não era assim.”
Os atalhos para a chegada ao imunizante incluem mudanças nas estruturas de produção até dos institutos de pesquisa. Com esse objetivo, a Merck, com sede na Alemanha, colaborou com o Jenner Institute, de Oxford, e com o Baylor College, nos EUA, cuja candidata a vacina está em fase inicial de testes em humanos. “O resultado do trabalho foi que encurtamos o processo de desenvolvimento dos produtos de seis meses, mas que poderia chegar a um ano, para somente dois meses”, afirma Eduardo Dias, gerente de contas de vacinas da Merck.
A preparação da cadeia de suprimentos também está sendo feita. A Coalizão de Inovações em Preparação para Epidemia (Cepi), entidade que envolve organizações públicas e privadas (como a Fundação Bill e Melinda Gates), criada em Davos, em 2017, está atuando nessa área. A organização, estruturada para prevenir pandemias, fez acordo com o grupo italiano Stevanato para o fornecimento de 100 milhões de frascos de vidro especial, feitos de borossilicato (resistente ao calor e à ação de elementos químicos), capazes de armazenar até 2 bilhões de doses de vacinas. Há muita coisa pronta para o desembarque das doses.
Chama atenção a quantidade e variedade de pesquisas em andamento. A OMS tem mapeados 147 institutos e empresas que desenvolvem versões de candidatas a uma vacina contra a covid-19 - 18 estão em fase de testes com humanos. Entre as iniciativas mais avançadas estão as da dupla Oxford-AstraZeneca e da Sinovac, usadas no Brasil. Ambas entraram na etapa decisiva de ensaios clínicos com grandes contingentes de participantes - mais de 5 mil pessoas.
Há outros velocistas de destaque. A lista inclui a Moderna, a China National Biotec Group (CNBG), com testes de última fase já programados nos Emirados Árabes; a CanSino, cujo uso do imunizante foi autorizado nas Forças Armadas chinesas; além da dupla formada pela alemã BioNTech e a americana Pfizer. Gigantes da indústria como a francesa Sanofi Pasteur, em parceria com a britânica GSK (GlaxoSmithKline), além da Johnson & Johnson, estão no páreo com pesquisas que devem chegar à fase clínica, que envolve humanos, em 2021.
É preciso tanta gente para fabricar apenas um produto? Sim. A corrida pela vacina da covid-19 não tem nada de convencional ou um vencedor, ainda que um dos competidores cruze em primeiro lugar a linha de chegada. Tal noção tem ganho ares de consenso entre especialistas. Foi isso o que assinalou um grupo de bambambãs da ciência americana, em artigo na “Science”: “Nenhuma vacina sozinha provavelmente atenderá à necessidade global e, portanto, uma abordagem estratégica para o esforço multifacetado é absolutamente crítica”. O texto foi assinado por gente como Anthony Fauci, assessor técnico do governo americano para questões da pandemia; e Francis Collins, ex-diretor do Projeto Genoma Humano, responsável pelo mapeamento do DNA humano, em 2001, e diretor dos Institutos Nacionais de Saúde.
“Na prática, não existem vacinas 100% eficazes”, diz Márjori. “Algumas são mais eficazes para determinados segmentos da população, como os jovens, e outras surtem melhor efeito em pessoas mais velhas ou em grupos que apresentam problemas específicos. Assim, é muito provável que uma solução não será suficiente para resolver todos esses desafios.”
A diversidade de portfólio, dizem especialistas, e até a eventual fabricação simultânea de vacinas - algo que promoveria ampla concorrência - trazem outras vantagens para os consumidores ou sistemas de saúde: possíveis preços mais baixos. “Vai ser impossível apenas um laboratório dar conta de toda demanda mundial”, diz Sheila Homsani, diretora médica da Sanofi Pasteur. “E os modelos matemáticos indicam que o problema da covid-19 pode se estender por pelo menos dois anos. Portanto, estamos falando de algo que avançará no tempo.”
A competição pela vacina pode acomodar e até recompensar participantes que não acertarem o vírus na mosca. Vacinas ainda que imperfeitas podem ser bem-vindas no curto prazo. “Isso acontece no caso da gripe”, diz Covas. “No ano passado, uma vacina contra o H2N3 não garantia 30% de proteção para as pessoas. Mas, ainda assim, foi útil, uma vez que reduziu o número de doentes. Em relação à covid, isso seria importante, porque diminuiria a contaminação e a mortalidade provocadas pela doença.”
Alguma coisa pode dar errado? Sim. “É por isso que estou otimista, mas com um pé atrás”, diz Luciana. “Muitas tentativas de desenvolvimento já falharam, sendo que algumas delas usavam as mesmas plataformas que estão sendo empregadas atualmente.” Estudos indicam que somente 16% dos imunizantes que nascem em laboratórios são ministrados às pessoas.
Os riscos estão em todos os lados. A maior parte dos projetos em andamento, por exemplo, coloca as fichas no ataque a uma proteína do Sars-CoV-2, chamada de “spike”. Ela é a grande vedete do vírus. Ocupa lugar de destaque na sua superfície e tem a forma de uma espícula, como uma coroa (daí o nome, coronavírus). Ela se liga a receptores (como o ACE2, na sigla em inglês) para obter acesso às células humanas e causar o estrago da infecção. Para Covas, “apostar tudo em um só cavalo” pode ser “muito arriscado”. “Foi por isso que, depois de conversar com diversas empresas e instituições, escolhemos testar a vacina da Sinovac, que usa uma plataforma de vírus inativado, mais tradicional, e não foca somente na proteína ‘spike’”, diz o diretor.
Luciana alerta ainda para os perigos de possíveis efeitos colaterais, que só serão identificados nos testes com grandes contingentes de participantes. “Alguns problemas atingem uma pessoa em cada mil, ou mesmo 1 em cada 10 mil”, diz Luciana. À primeira vista, acrescenta a pesquisadora, trata-se de uma proporção ínfima, mas ela aumenta sobremaneira à medida que a vacina será aplicada em bilhões de pessoas.
Para enfrentar riscos, sem reduzir a velocidade das pesquisas, é preciso errar. Com isso, os gastos aumentam. Em maio, os EUA lançaram a operação “Warp Speed”, que remete à série “Star Wars” e define tipo de propulsão que vai além da velocidade da luz. O plano, cujo objetivo é atacar a covid-19 em diversas frentes, reúne recursos da ordem de US$ 10 bilhões, sendo US$ 2,2 bilhões para bancar os imunizantes considerados mais promissores pelo governo americano.
A OMS, por meio da ACT-Accelerator, iniciativa que reúne mais de 40 países, empresas e instituições, estima que serão necessários US$ 18,1 bilhões para garantir a produção de 2 bilhões de doses de vacinas entre 2020 e 2021 em todo o mundo. O cálculo inclui despesas que vão desde a pesquisa e desenvolvimento, passam pela transferência de tecnologia e seguem até a produção de risco de imunizantes.
Por fim, a corrida pela vacina está envolta em trama geopolítica. Washington e Pequim disputam os louros pela descoberta palmo a palmo. Donald Trump está em corrida presidencial, com eleições em novembro. Xi Jinping busca consolidar a influência global chinesa. Em ambos os casos, a descoberta do imunizante caberia como luva nas mãos de um dos dois líderes.
Até aqui, o placar favorece os chineses. Entre os 18 experimentos mais avançados, a China contabiliza nove; os EUA, quatro; o Reino Unido, três; além de Alemanha, Coreia do Sul e Rússia com um candidato cada um. Isso considerando as parcerias que envolvem mais de um país. O temor é que esse tipo de queda de braço comprometa a distribuição de uma vacina fora da área de influência de uma das duas potências.
Eis a pergunta que não quer calar: afinal, vai ter vacina contra a covid-19? Sim. Até outubro, devem ser divulgadas as informações definitivas sobre a eficácia das primeiras candidatas a imunizantes desenvolvidas para conter a doença, cuja expansão provocou, até aqui, a morte de quase 550 mil pessoas no mundo. Se tudo der certo com os testes em curso, o Brasil poderá contar com 90 milhões de doses desses produtos entre o fim do ano e o início de 2021.
Tantas esperanças concentram-se em duas frentes. A primeira responde pelo nome de AZD 1222, mas já foi chamada de ChAdOx1. Tais emaranhados de letras e números nasceram nas bancadas do Jenner Institute, da Universidade de Oxford, na Inglaterra, em parceria com a farmacêutica sueco-britânica AstraZeneca. Eles designam a vacina que está sendo aplicada em 50 mil voluntários desde junho.
São 5 mil pessoas no Brasil, 30 mil nos EUA, 10 mil no Reino Unido e outros 5 mil espalhados pela África e Ásia. “Os resultados dos testes devem sair entre setembro e outubro”, diz Jorge Mazzei, diretor de relações corporativas da AstraZeneca. “Se as análises forem positivas, teremos 30 milhões de doses disponíveis entre dezembro e janeiro no Brasil, com a expectativa de mais 70 milhões num segundo momento. Em todo o mundo, vamos produzir 2 bilhões de doses em 2021.”
A segunda fonte de expectativas vem da China. A CoronaVac, vacina criada pela Sinovac, empresa de biotecnologia com sede em Pequim, está sendo testada em 9 mil brasileiros, em 12 regiões. Em São Paulo, abrangem a capital paulista, São Caetano, Campinas, São José do Rio Preto e Ribeirão Preto. Isso além de polos em três Estados (Rio, Minas, Paraná) e no Distrito Federal.
“Em uma boa perspectiva, poderemos concluir os ensaios até o fim deste ano”, diz Dimas Covas, diretor do Instituto Butantan, em São Paulo, responsável pela condução dos estudos no país. “Mas já teremos 60 milhões de doses da vacina à disposição em setembro, e esse número pode chegar a 120 milhões no início de 2021.”
É enorme a ansiedade em torno da descoberta de um imunizante contra o Sars-CoV-2, o vírus que causa a covid-19. Uma vacina representaria uma barreira contra o desastre sanitário e econômico que varre o planeta, além de proporcionar possível passagem de volta à vida como ela era antes. Porém, cabem “senões” às notícias alvissareiras dadas até aqui. Esses experimentos, observam especialistas, precisam comprovar sua eficácia - tarefa que não é trivial.
A inserção do Brasil na vanguarda dos exames clínicos deu-se por linhas tortas. Embora os laboratórios internacionais reconheçam a qualidade da ciência praticada por aqui, esses ensaios ocorrem em locais onde o coronavírus está bem ativo. Quanto mais ele fervilhar, melhor para os exames. Como a covid-19 está em franca ascensão no país, os brasileiros assumiram o posto de cobaias preferenciais do planeta. “Nós nos tornamos um campo de testes fantástico”, diz Soraya Smaili, reitora da Unifesp, que coordena o estudo da candidata a vacina da dupla Oxford-AstraZeneca. “Mas o fato é que todos reconhecem que podemos fazer um excelente trabalho nesse campo, e essa é uma lição importante para o país.”
O atual processo de criação das vacinas marca um feito insólito. “O desenvolvimento de um imunizante consome, em média, entre 10 e 15 anos”, diz Márjori Dulcine, diretora médica da Pfizer. “Hoje, embora ainda estejamos nas etapas de testes, estamos vendo tudo acontecer em questão de meses. Isso não tem precedentes.”
Para ter uma ideia da amplitude desse salto, considere que a vacina da catapora levou 28 anos para ficar pronta. A mais rápida da história foi a da caxumba, com quatro anos de prazo, na década de 1960. Esse corte no tempo de maturação do produto está sendo obtido por meio de uma somatória de fatores. Ela inclui uma mobilização incomum entre países, instituições, empresas e órgãos reguladores, além de uma considerável porção de engenho humano.
A tecnologia é central para a aceleração. Os métodos tradicionais de produção de vacina utilizam diretamente o vírus, o organismo vivo. Grosso modo, ele é enfraquecido ou inativado e, depois, aplicado em uma pessoa por meio de uma solução. Debilitado, o material viral já não consegue provocar a doença, mas induz o sistema imunológico à reação contra esse ser estranho. Tal técnica é empregada nos dias correntes, mas nova gama de recursos e estratégias proporcionou velocidade inédita a esse processo.
Esse é o caso das plataformas tecnológicas que empregam ácidos nucleicos, como o DNA e do RNA mensageiro (mRNA). Elas prescindem do vírus. Utilizam somente seus dados genéticos. Com isso, ganha-se tempo. A sequência genética do Sars-CoV-2, por exemplo, foi publicada pela primeira vez em 11 de janeiro. Em 16 de março, a Moderna, firma de biotecnologia dos EUA, iniciou os testes clínicos em humanos de imunizante à base de mRNA. Usando o mesmo método, no dia seguinte a chinesa CanSino começou ensaios. Em condições normais, tal fase do desenvolvimento do produto demoraria um ano. Agora, foi reduzida a dois meses.
Joseph Kim, executivo-chefe da Inovio, de San Diego, na Califórnia, que utiliza uma plataforma de DNA, foi mais longe - ou melhor, mais rápido. Disse que precisou de apenas 3h para projetar uma vacina contra a covid-19, batizada de INO-4800, depois que as informações genéticas do novo coronavírus se tornaram públicas.
São ações que precisam ser ponderadas. Luciana Cezar de Cerqueira Leite, pesquisadora do Instituto Butantan, observa que as vacinas à base de ácidos nucleicos apresentam “muitas vantagens e são fáceis de lidar”. Ainda assim, têm muito o que provar. “As de DNA, por exemplo, são estudadas há mais de duas décadas”, afirma. “Elas têm respostas muito boas em animais, mas, em humanos, nem tanto. O nosso sistema imunológico é muito mais complexo. Agora, vamos ver como esses recursos atuam contra a covid.”
A bióloga Natalia Pasternak, diretora do Instituto Questão de Ciência, em São Paulo, acrescenta que outra vantagem das técnicas que usam DNA, mRNA e vetores virais, usada no experimento de Oxford, é a versatilidade. “Em tese, são ideias para episódios pandêmicos”, diz. “Isso porque basta trocar a sequência genética usada na plataforma que podemos alterar o tipo de vacina que está sendo produzida.” Com isso, indica, é possível oferecer respostas rápidas a novos vírus, ou mesmo a mutações de um patógeno.
A vacina da parceria Oxford-AstraZeneca, por exemplo, em teste no Brasil, usa plataforma de um adenovírus (que normalmente causa doenças respiratórios, como resfriados) de chimpanzé. Ela havia sido empregada na pesquisa de imunizantes contra a Sars (a síndrome respiratória aguda grave), que matou 800 pessoas entre 2002 e 2003, e a Mers (a síndrome respiratória do Oriente Médio), identificada em 2012, que levou 900 pessoas à morte. A versão contra a Sars estava pronta para testes em humanos, mas o número de casos caiu e as análises foram interrompidas. A Moderna também havia desenvolvido nove vacinas experimentais, cuja essência do sistema foi adaptada ao novo coronavírus.
O desenho dos projetos é outro elemento que dá celeridade às vacinas. Nesse sentido, a alemã BioNTech e a americana Pfizer estão desenvolvendo quatro imunizantes diferentes. Baseadas em mRNA, diferem no tipo de proteína do vírus que querem atacar. “Uma das vantagens de analisar quatro modelos diferentes ao mesmo tempo é que as nossas chances de sucesso, em tese, quadruplicam”, diz Márjori Dulcine, da Pfizer. A expectativa da companhia é produzir 100 milhões de doses do produto que se mostrar mais eficaz neste ano e mais de 1 bilhão em 2021.
Para Soraya, os estudos também ganham rapidez por causa do uso de sistemas de dados abertos. “Neles, podemos obter informações importantes para as pesquisas, ainda que não sejam conclusivas.” Ela ressalta, porém, que embora seja precioso para os pesquisadores, o mecanismo já derrapou pilotado por leigos. “Um exemplo desse problema foi a cloroquina. Os trabalhos preliminares sugeriam que o medicamento poderia ser promissor contra a covid. Depois, constatamos que a história não era assim.”
Os atalhos para a chegada ao imunizante incluem mudanças nas estruturas de produção até dos institutos de pesquisa. Com esse objetivo, a Merck, com sede na Alemanha, colaborou com o Jenner Institute, de Oxford, e com o Baylor College, nos EUA, cuja candidata a vacina está em fase inicial de testes em humanos. “O resultado do trabalho foi que encurtamos o processo de desenvolvimento dos produtos de seis meses, mas que poderia chegar a um ano, para somente dois meses”, afirma Eduardo Dias, gerente de contas de vacinas da Merck.
A preparação da cadeia de suprimentos também está sendo feita. A Coalizão de Inovações em Preparação para Epidemia (Cepi), entidade que envolve organizações públicas e privadas (como a Fundação Bill e Melinda Gates), criada em Davos, em 2017, está atuando nessa área. A organização, estruturada para prevenir pandemias, fez acordo com o grupo italiano Stevanato para o fornecimento de 100 milhões de frascos de vidro especial, feitos de borossilicato (resistente ao calor e à ação de elementos químicos), capazes de armazenar até 2 bilhões de doses de vacinas. Há muita coisa pronta para o desembarque das doses.
Chama atenção a quantidade e variedade de pesquisas em andamento. A OMS tem mapeados 147 institutos e empresas que desenvolvem versões de candidatas a uma vacina contra a covid-19 - 18 estão em fase de testes com humanos. Entre as iniciativas mais avançadas estão as da dupla Oxford-AstraZeneca e da Sinovac, usadas no Brasil. Ambas entraram na etapa decisiva de ensaios clínicos com grandes contingentes de participantes - mais de 5 mil pessoas.
Há outros velocistas de destaque. A lista inclui a Moderna, a China National Biotec Group (CNBG), com testes de última fase já programados nos Emirados Árabes; a CanSino, cujo uso do imunizante foi autorizado nas Forças Armadas chinesas; além da dupla formada pela alemã BioNTech e a americana Pfizer. Gigantes da indústria como a francesa Sanofi Pasteur, em parceria com a britânica GSK (GlaxoSmithKline), além da Johnson & Johnson, estão no páreo com pesquisas que devem chegar à fase clínica, que envolve humanos, em 2021.
É preciso tanta gente para fabricar apenas um produto? Sim. A corrida pela vacina da covid-19 não tem nada de convencional ou um vencedor, ainda que um dos competidores cruze em primeiro lugar a linha de chegada. Tal noção tem ganho ares de consenso entre especialistas. Foi isso o que assinalou um grupo de bambambãs da ciência americana, em artigo na “Science”: “Nenhuma vacina sozinha provavelmente atenderá à necessidade global e, portanto, uma abordagem estratégica para o esforço multifacetado é absolutamente crítica”. O texto foi assinado por gente como Anthony Fauci, assessor técnico do governo americano para questões da pandemia; e Francis Collins, ex-diretor do Projeto Genoma Humano, responsável pelo mapeamento do DNA humano, em 2001, e diretor dos Institutos Nacionais de Saúde.
“Na prática, não existem vacinas 100% eficazes”, diz Márjori. “Algumas são mais eficazes para determinados segmentos da população, como os jovens, e outras surtem melhor efeito em pessoas mais velhas ou em grupos que apresentam problemas específicos. Assim, é muito provável que uma solução não será suficiente para resolver todos esses desafios.”
A diversidade de portfólio, dizem especialistas, e até a eventual fabricação simultânea de vacinas - algo que promoveria ampla concorrência - trazem outras vantagens para os consumidores ou sistemas de saúde: possíveis preços mais baixos. “Vai ser impossível apenas um laboratório dar conta de toda demanda mundial”, diz Sheila Homsani, diretora médica da Sanofi Pasteur. “E os modelos matemáticos indicam que o problema da covid-19 pode se estender por pelo menos dois anos. Portanto, estamos falando de algo que avançará no tempo.”
A competição pela vacina pode acomodar e até recompensar participantes que não acertarem o vírus na mosca. Vacinas ainda que imperfeitas podem ser bem-vindas no curto prazo. “Isso acontece no caso da gripe”, diz Covas. “No ano passado, uma vacina contra o H2N3 não garantia 30% de proteção para as pessoas. Mas, ainda assim, foi útil, uma vez que reduziu o número de doentes. Em relação à covid, isso seria importante, porque diminuiria a contaminação e a mortalidade provocadas pela doença.”
Alguma coisa pode dar errado? Sim. “É por isso que estou otimista, mas com um pé atrás”, diz Luciana. “Muitas tentativas de desenvolvimento já falharam, sendo que algumas delas usavam as mesmas plataformas que estão sendo empregadas atualmente.” Estudos indicam que somente 16% dos imunizantes que nascem em laboratórios são ministrados às pessoas.
Os riscos estão em todos os lados. A maior parte dos projetos em andamento, por exemplo, coloca as fichas no ataque a uma proteína do Sars-CoV-2, chamada de “spike”. Ela é a grande vedete do vírus. Ocupa lugar de destaque na sua superfície e tem a forma de uma espícula, como uma coroa (daí o nome, coronavírus). Ela se liga a receptores (como o ACE2, na sigla em inglês) para obter acesso às células humanas e causar o estrago da infecção. Para Covas, “apostar tudo em um só cavalo” pode ser “muito arriscado”. “Foi por isso que, depois de conversar com diversas empresas e instituições, escolhemos testar a vacina da Sinovac, que usa uma plataforma de vírus inativado, mais tradicional, e não foca somente na proteína ‘spike’”, diz o diretor.
Luciana alerta ainda para os perigos de possíveis efeitos colaterais, que só serão identificados nos testes com grandes contingentes de participantes. “Alguns problemas atingem uma pessoa em cada mil, ou mesmo 1 em cada 10 mil”, diz Luciana. À primeira vista, acrescenta a pesquisadora, trata-se de uma proporção ínfima, mas ela aumenta sobremaneira à medida que a vacina será aplicada em bilhões de pessoas.
Para enfrentar riscos, sem reduzir a velocidade das pesquisas, é preciso errar. Com isso, os gastos aumentam. Em maio, os EUA lançaram a operação “Warp Speed”, que remete à série “Star Wars” e define tipo de propulsão que vai além da velocidade da luz. O plano, cujo objetivo é atacar a covid-19 em diversas frentes, reúne recursos da ordem de US$ 10 bilhões, sendo US$ 2,2 bilhões para bancar os imunizantes considerados mais promissores pelo governo americano.
A OMS, por meio da ACT-Accelerator, iniciativa que reúne mais de 40 países, empresas e instituições, estima que serão necessários US$ 18,1 bilhões para garantir a produção de 2 bilhões de doses de vacinas entre 2020 e 2021 em todo o mundo. O cálculo inclui despesas que vão desde a pesquisa e desenvolvimento, passam pela transferência de tecnologia e seguem até a produção de risco de imunizantes.
Por fim, a corrida pela vacina está envolta em trama geopolítica. Washington e Pequim disputam os louros pela descoberta palmo a palmo. Donald Trump está em corrida presidencial, com eleições em novembro. Xi Jinping busca consolidar a influência global chinesa. Em ambos os casos, a descoberta do imunizante caberia como luva nas mãos de um dos dois líderes.
Até aqui, o placar favorece os chineses. Entre os 18 experimentos mais avançados, a China contabiliza nove; os EUA, quatro; o Reino Unido, três; além de Alemanha, Coreia do Sul e Rússia com um candidato cada um. Isso considerando as parcerias que envolvem mais de um país. O temor é que esse tipo de queda de braço comprometa a distribuição de uma vacina fora da área de influência de uma das duas potências.
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