Na Folha, Contardo escreveu uma coluna maravilhosa sobre um dos temas da semana, que chocou o Brasil. Abaixo, na íntegra.
Grande semana para quem lê jornais e revistas. Começou com o texto de João Moreira Salles, na revista Piauí de julho, sobre a morte e a destruição como os únicos valores do bolsonarismo e do próprio Bolsonaro. O texto é paradoxalmente chocante —choca e, ao mesmo tempo, nada nos é lembrado que já não soubéssemos. Diferente do que acontecia nos fascismos tradicionais, o bolsonarismo não tem um projeto de nação, só uma paixão destrutiva.
Ilustração de homem em uma espreguiçadeira com os braços atrás da cabeça e as pernas cruzadas. Ele veste camisa social, gravata, calça e sapatos. Seu rosto é amarelo, mas está coberto com uma máscara de rosto inteiro vermelha, e uma máscara descartável flutua em cima da máscara. Há fumaça branca saindo dos furos para os olhos da máscara. A espreguiçadeira está em cima de um monte de lixo.
A pandemia, com sua corte de mortos, de doentes e de vidas arruinadas, não lhe inspira compaixão: ela é apenas mais uma figura esperada do triunfo da morte. E o presidente comenta: “E daí?”. Talvez sua própria contaminação pelo vírus apenas o confirme em seu gosto pela morte.
No segunda, Leonardo Sakamoto comentou o caso (apresentado no Fantástico de domingo) da mulher que, na Barra da Tijuca, achou intolerável ser tratada como uma simples “cidadã” pela fiscalização da Vigilância Sanitária e respondeu que o marido não era “cidadão, não”, mas engenheiro civil, com uma formação “melhor do que a sua”.
De forma engraçada, isso foi dito a Flávio Graça, superintendente da Vigilância, que é médico veterinário, com mestrado e doutorado. De qualquer forma, desde a Revolução Francesa, “cidadão” é a mais nobre maneira de os membros de uma comunidade se chamarem uns aos outros. Mas, claro, comunidade não era a preocupação da mulher da Barra…
O comportamento dela expõe “séculos de nossa formação”, ou seja, mostra os restos de uma miserável e atrasada estrutura de classes, a qual ainda circula pelos esgotos nauseabundos de nossa história. Ora, para Sakamoto, o bolsonarismo é um esgoto que Bolsonaro tornou orgulhoso de si.
Todos, indivíduos e sociedades, evoluímos e nos transformamos em cima de restos persistentes e malcheirosos, que seguem circulando nos nossos porões e, de vez em quando, regurgitados por um bueiro, inundam uma ou outra sarjeta. Administrar esses restos e seus odores é, para cada cultura e para cada indivíduo, uma questão de saneamento básico (veja-se, recentemente, a regurgitação racista e a trabalheira que está custando devolvê-la ao esgoto).
Agora, o Brasil, como sabemos, tem um problema de saneamento: o esgoto mal precisa regurgitar, ele circula livre pelas nossas ruas —e frequentemente pelas mais luxuosas delas.
Volto ao texto de João Moreira Salles, que termina assim: “Em 2018, 57,7 milhões de brasileiros sufragaram a versão piorada de um regime odioso [a ditadura militar]. Outros 11 milhões anularam ou votaram em branco. No fim das contas, talvez fosse inevitável chegarmos a isso. Bolsonaro não é diferente do país que o elegeu. Não todo o Brasil, nem mesmo a maioria do Brasil (uma esperança), mas um pedaço significativo do Brasil é como Bolsonaro. Violento, racista, misógino, homofóbico, inculto, indiferente. Perverso”.
Só discordo um pouco de João Moreira Salles porque não acho que os restos no nosso esgoto pertençam apenas aos brasileiros que elegeram Bolsonaro. Os restos são de todos nós. Os que elegeram o presidente regurgitaram e continuam regurgitando esses restos pelas ruas e eventualmente se orgulham deles, como a mulher da Barra. Os outros, que votaram contra, são os que conseguem esforçadamente conter seus restos no seu devido lugar: o esgoto. A diferença entre os dois é só essa.
Em outras palavras, a extraordinária mediocridade desse governo não representa 15% ou 30% ou 40% dos brasileiros. Ela (e aqui está sua força) representa o Brasil em algo essencial: seus esgotos históricos.
Alguns se orgulham desses esgotos; para outros, Bolsonaro exemplifica e presentifica o pior, aquela parte de nós da qual nos envergonhamos. Ele é nossa vergonha.
Justamente, mais um texto da semana: a revista Serrote de julho traz “O Vínculo da Vergonha”, um breve ensaio de Carlo Ginzburg, o grande historiador italiano. O texto começa assim: “Há muitos anos, percebi de repente que o país a que pertencemos não é, como quer a retórica mais corrente, o país que amamos, e sim aquele do qual nos envergonhamos. A vergonha pode ser um vínculo mais forte que o amor”.
A vergonha constitui um vínculo justamente porque é vergonha de coisas das quais outros da nossa comunidade se orgulham, e nossa vergonha assinala que as compartilhamos, as reconhecemos como “nossas” —ou como partes de nosso esgoto comum.
Contardo Calligaris é psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de Menina?', com Maria Homem (Papirus)
Grande semana para quem lê jornais e revistas. Começou com o texto de João Moreira Salles, na revista Piauí de julho, sobre a morte e a destruição como os únicos valores do bolsonarismo e do próprio Bolsonaro. O texto é paradoxalmente chocante —choca e, ao mesmo tempo, nada nos é lembrado que já não soubéssemos. Diferente do que acontecia nos fascismos tradicionais, o bolsonarismo não tem um projeto de nação, só uma paixão destrutiva.
Ilustração de homem em uma espreguiçadeira com os braços atrás da cabeça e as pernas cruzadas. Ele veste camisa social, gravata, calça e sapatos. Seu rosto é amarelo, mas está coberto com uma máscara de rosto inteiro vermelha, e uma máscara descartável flutua em cima da máscara. Há fumaça branca saindo dos furos para os olhos da máscara. A espreguiçadeira está em cima de um monte de lixo.
A pandemia, com sua corte de mortos, de doentes e de vidas arruinadas, não lhe inspira compaixão: ela é apenas mais uma figura esperada do triunfo da morte. E o presidente comenta: “E daí?”. Talvez sua própria contaminação pelo vírus apenas o confirme em seu gosto pela morte.
No segunda, Leonardo Sakamoto comentou o caso (apresentado no Fantástico de domingo) da mulher que, na Barra da Tijuca, achou intolerável ser tratada como uma simples “cidadã” pela fiscalização da Vigilância Sanitária e respondeu que o marido não era “cidadão, não”, mas engenheiro civil, com uma formação “melhor do que a sua”.
De forma engraçada, isso foi dito a Flávio Graça, superintendente da Vigilância, que é médico veterinário, com mestrado e doutorado. De qualquer forma, desde a Revolução Francesa, “cidadão” é a mais nobre maneira de os membros de uma comunidade se chamarem uns aos outros. Mas, claro, comunidade não era a preocupação da mulher da Barra…
O comportamento dela expõe “séculos de nossa formação”, ou seja, mostra os restos de uma miserável e atrasada estrutura de classes, a qual ainda circula pelos esgotos nauseabundos de nossa história. Ora, para Sakamoto, o bolsonarismo é um esgoto que Bolsonaro tornou orgulhoso de si.
Todos, indivíduos e sociedades, evoluímos e nos transformamos em cima de restos persistentes e malcheirosos, que seguem circulando nos nossos porões e, de vez em quando, regurgitados por um bueiro, inundam uma ou outra sarjeta. Administrar esses restos e seus odores é, para cada cultura e para cada indivíduo, uma questão de saneamento básico (veja-se, recentemente, a regurgitação racista e a trabalheira que está custando devolvê-la ao esgoto).
Agora, o Brasil, como sabemos, tem um problema de saneamento: o esgoto mal precisa regurgitar, ele circula livre pelas nossas ruas —e frequentemente pelas mais luxuosas delas.
Volto ao texto de João Moreira Salles, que termina assim: “Em 2018, 57,7 milhões de brasileiros sufragaram a versão piorada de um regime odioso [a ditadura militar]. Outros 11 milhões anularam ou votaram em branco. No fim das contas, talvez fosse inevitável chegarmos a isso. Bolsonaro não é diferente do país que o elegeu. Não todo o Brasil, nem mesmo a maioria do Brasil (uma esperança), mas um pedaço significativo do Brasil é como Bolsonaro. Violento, racista, misógino, homofóbico, inculto, indiferente. Perverso”.
Só discordo um pouco de João Moreira Salles porque não acho que os restos no nosso esgoto pertençam apenas aos brasileiros que elegeram Bolsonaro. Os restos são de todos nós. Os que elegeram o presidente regurgitaram e continuam regurgitando esses restos pelas ruas e eventualmente se orgulham deles, como a mulher da Barra. Os outros, que votaram contra, são os que conseguem esforçadamente conter seus restos no seu devido lugar: o esgoto. A diferença entre os dois é só essa.
Em outras palavras, a extraordinária mediocridade desse governo não representa 15% ou 30% ou 40% dos brasileiros. Ela (e aqui está sua força) representa o Brasil em algo essencial: seus esgotos históricos.
Alguns se orgulham desses esgotos; para outros, Bolsonaro exemplifica e presentifica o pior, aquela parte de nós da qual nos envergonhamos. Ele é nossa vergonha.
Justamente, mais um texto da semana: a revista Serrote de julho traz “O Vínculo da Vergonha”, um breve ensaio de Carlo Ginzburg, o grande historiador italiano. O texto começa assim: “Há muitos anos, percebi de repente que o país a que pertencemos não é, como quer a retórica mais corrente, o país que amamos, e sim aquele do qual nos envergonhamos. A vergonha pode ser um vínculo mais forte que o amor”.
A vergonha constitui um vínculo justamente porque é vergonha de coisas das quais outros da nossa comunidade se orgulham, e nossa vergonha assinala que as compartilhamos, as reconhecemos como “nossas” —ou como partes de nosso esgoto comum.
Contardo Calligaris é psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de Menina?', com Maria Homem (Papirus)
Comentários
Postar um comentário
O Entrelinhas não censura comentaristas, mas não publica ofensas pessoais e comentários com uso de expressões chulas. Os comentários serão moderados, mas são sempre muito bem vindos.