Entendo perfeitamente que, num dia de ira, a gente fique a fim de demolir uma estátua. Ou seja, no dia em que, numa enésima violência racista, um policial esmaga e sufoca um negro, a gente pode jogar num rio um bronze que representa um antigo mercante de escravos ou pode cobrir de tinta vermelha a cara de outro bronze representando aquele rei da Bélgica que fez do Congo sua colônia pessoal. Agora, uma vez passado o dia de ira, será que queremos aperfeiçoar a tarefa e demolir ou remover todas as estátuas que prestariam homenagem a personagens de nosso passado que, por alguma razão (legítima), não queremos mais homenagear, questiona Contardo Calligaris em sua sempre excelente coluna na Folha. Texto publicado quarta, 23/7, continua a seguir.
Para mim, é difícil responder a essa pergunta porque, de fato, durante toda a minha infância, nunca pensei que, apesar de seus pedestais, as estátuas estivessem presentes entre nós para homenagear quem quer que fosse. Explico.
Nasci e cresci na Itália, e as estátuas sempre foram para mim uma presença familiar. Em particular, desde pequeno, frequentei Turim, que talvez seja uma das cidades do mundo mais ricas em estátuas e monumentos.
Talvez eu tivesse uma curiosidade constante de saber quem eram as figuras míticas ou históricas assim representadas, ou talvez isso fosse o efeito da paixão pedagógica dos meus pais, que sempre explicavam quem era quem cada vez que passássemos perto de uma estátua. Mas o fato é que eu amava aprender as histórias dessas presenças imóveis entre nós e nunca pensei que a razão dessas presenças fosse a celebração de um mérito ou um reconhecimento especial.
Para mim, as estátuas eram que nem os mortos que jaziam no chão das igrejas mais antigas (antes da invenção dos cemitérios modernos), ou seja, eram a presença normal entre nós de antepassados —do bom ou do mau.
Essa minha visão era peculiar? Talvez. Certamente, ela era induzida pela irreverência do meu pai, que nunca santificava ninguém, nem (e talvez ainda menos) santos, mártires e supostos heróis. Ele tinha a cultura e o humor necessários para matizar qualquer mérito, glória e façanha com o cinza ou o preto de um desmerecimento, quando não a suspeita de alguma infâmia.
Parafraseando o provérbio, de perto ninguém é de uma cor só. E o que importa é que as eventuais infâmias, idiotices, covardices e maluquices do passado fazem parte de nossa história —tanto quanto, se não mais do que os méritos, as coragens etc.
Em suma, nunca acreditei na ideia de que um monumento público seja uma celebração que acarreta necessariamente um juízo de valor positivo.
Três ou quatro anos atrás, por um projeto de livro (que talvez ainda veja a luz), fiz uma viagem. Entre outros lugares que queria visitar estava a Hofbräuhaus, uma imensa cervejaria de Munique, onde, em fevereiro de 1920, Hitler fez um dos seus primeiros comícios, lançando o programa que, um mês depois, serviria para fundar o partido nazista.
Era minha segunda visita, a primeira depois de ter completado, no começo dos anos 1990, minha tese sobre (ou deveria dizer “contra”) o grupo (o comportamento gregário, como acontecia classicamente nas cervejarias da Bavária) como origem do mal.
Nunca me passaria pela cabeça desejar a destruição definitiva da Hofbräuhaus; ao contrário, comi brätwurst mit kartoffeln e, claro, mandei ver na cerveja. Penso e sempre pensei que a Hofbräuhaus poderia ser um lugar de peregrinação, em toda a sua complexidade, para a gente se lembrar de seus eventuais malefícios.
Sabe por que podemos visitar hoje o palácio e as coleções do museu do Louvre? Porque, nos dias da Revolução Francesa, o projeto de destruir esses supostos símbolos do poder e do abuso real não prevaleceu. Foi por um fio: alguém convenceu a Convenção Nacional de que o privilégio dos reis podia se transformar em patrimônio público e popular.
Resumindo, nosso problema não é que haja hoje uma estátua do Anhanguera na frente do parque Trianon. Ela não precisa ser um elogio abstrato ao que foram a ganância, a coragem e a crueldade dos bandeirantes, escravizadores de índios.
Deixemos todo nosso passado conviver com a gente, bonito ou não.
Em vez de nos perguntarmos quais estátuas mereceriam a “honra” de existir entre nós, que tal cuidar para que cada estátua e cada monumento tenham a legenda simples, mas contraditória que eles sempre merecem? Seria fácil. Que tal um pequeno poste com um arquivo digital fácil de ser atualizado?
Contardo Calligaris é psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de Menina?', com Maria Homem (Papirus)
Para mim, é difícil responder a essa pergunta porque, de fato, durante toda a minha infância, nunca pensei que, apesar de seus pedestais, as estátuas estivessem presentes entre nós para homenagear quem quer que fosse. Explico.
Nasci e cresci na Itália, e as estátuas sempre foram para mim uma presença familiar. Em particular, desde pequeno, frequentei Turim, que talvez seja uma das cidades do mundo mais ricas em estátuas e monumentos.
Talvez eu tivesse uma curiosidade constante de saber quem eram as figuras míticas ou históricas assim representadas, ou talvez isso fosse o efeito da paixão pedagógica dos meus pais, que sempre explicavam quem era quem cada vez que passássemos perto de uma estátua. Mas o fato é que eu amava aprender as histórias dessas presenças imóveis entre nós e nunca pensei que a razão dessas presenças fosse a celebração de um mérito ou um reconhecimento especial.
Para mim, as estátuas eram que nem os mortos que jaziam no chão das igrejas mais antigas (antes da invenção dos cemitérios modernos), ou seja, eram a presença normal entre nós de antepassados —do bom ou do mau.
Essa minha visão era peculiar? Talvez. Certamente, ela era induzida pela irreverência do meu pai, que nunca santificava ninguém, nem (e talvez ainda menos) santos, mártires e supostos heróis. Ele tinha a cultura e o humor necessários para matizar qualquer mérito, glória e façanha com o cinza ou o preto de um desmerecimento, quando não a suspeita de alguma infâmia.
Parafraseando o provérbio, de perto ninguém é de uma cor só. E o que importa é que as eventuais infâmias, idiotices, covardices e maluquices do passado fazem parte de nossa história —tanto quanto, se não mais do que os méritos, as coragens etc.
Em suma, nunca acreditei na ideia de que um monumento público seja uma celebração que acarreta necessariamente um juízo de valor positivo.
Três ou quatro anos atrás, por um projeto de livro (que talvez ainda veja a luz), fiz uma viagem. Entre outros lugares que queria visitar estava a Hofbräuhaus, uma imensa cervejaria de Munique, onde, em fevereiro de 1920, Hitler fez um dos seus primeiros comícios, lançando o programa que, um mês depois, serviria para fundar o partido nazista.
Era minha segunda visita, a primeira depois de ter completado, no começo dos anos 1990, minha tese sobre (ou deveria dizer “contra”) o grupo (o comportamento gregário, como acontecia classicamente nas cervejarias da Bavária) como origem do mal.
Nunca me passaria pela cabeça desejar a destruição definitiva da Hofbräuhaus; ao contrário, comi brätwurst mit kartoffeln e, claro, mandei ver na cerveja. Penso e sempre pensei que a Hofbräuhaus poderia ser um lugar de peregrinação, em toda a sua complexidade, para a gente se lembrar de seus eventuais malefícios.
Sabe por que podemos visitar hoje o palácio e as coleções do museu do Louvre? Porque, nos dias da Revolução Francesa, o projeto de destruir esses supostos símbolos do poder e do abuso real não prevaleceu. Foi por um fio: alguém convenceu a Convenção Nacional de que o privilégio dos reis podia se transformar em patrimônio público e popular.
Resumindo, nosso problema não é que haja hoje uma estátua do Anhanguera na frente do parque Trianon. Ela não precisa ser um elogio abstrato ao que foram a ganância, a coragem e a crueldade dos bandeirantes, escravizadores de índios.
Deixemos todo nosso passado conviver com a gente, bonito ou não.
Em vez de nos perguntarmos quais estátuas mereceriam a “honra” de existir entre nós, que tal cuidar para que cada estátua e cada monumento tenham a legenda simples, mas contraditória que eles sempre merecem? Seria fácil. Que tal um pequeno poste com um arquivo digital fácil de ser atualizado?
Contardo Calligaris é psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de Menina?', com Maria Homem (Papirus)
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