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Conti: como não era um Ivan Ilitch, Sérgio Ricardo teve vida reta, limpa, ímpar

São tantos os mortos pela peste que eles se tornam cifras, abstrações: 635 mil no mundo, 85 mil só no Brasil. Impalpáveis, os números obscurecem a percepção de que cada pessoa que se foi era única. E que cada uma delas passou pela agonia solitária e definitiva. Um pavoroso relato do que é morrer acaba de sair, a nova edição de “A Morte de Ivan Ilitch”, de Tolstói, traduzida por Lucas Simone para a Antofágica. Como é um livro que percorre a feia frieza do fim, uma versão com ilustrações de gelar a espinha é cabível. Ainda mais agora, escreve Mario Sergio Conti em sua coluna semanal na Folha, publicada aos sábados. Continua a seguir.

A novela começa com a notícia da morte de Ivan Ilitch chegando à repartição judicial onde trabalhava. Era benquisto ali, mas a interrupção de sua vida provoca duas reações entre os colegas. Primeiro alívio: antes ele do que eu. Depois cobiça: quem herdará o seu posto e o belo salário?
Seguem-se as velas, gemidos, incenso, lágrimas e soluços do velório. A viúva tem pena de si mesma, chora devido ao sofrimento que o marido agônico lhe impingiu. O padecimento final de Ivan Ilitch lhe importa menos. O que ela quer saber é o valor da sua pensão.
Tolstói abre a segunda parte: “A história pretérita da vida de Ivan Ilitch era a mais simples e comum e também a mais terrível”. Passa da descrição para a narrativa íntima, combinando o comum à burocracia russa da segunda metade do século 19 com as dores únicas de um indivíduo rumo à morte.
O arrivista Ivan queria ser igual a todos. Casa-se com uma boa moça, e de posses. Ela se revela uma megera e ele se refugia no trabalho. É um servidor exemplar de uma engrenagem sem propósito, a não ser manter a si mesma. Seu único refúgio é jogar cartas —um equivalente aos games de hoje.
Até que lhe surge uma dor no lado. O médico o atende com um ar superior, com as maneiras que ele mesmo emprega na repartição. Os remédios não adiantam, sente “a velha e conhecida dor, surda e pungente, persistente, silenciosa e séria”. A dor suga sua vida inapelavelmente.
Lido na adolescência, “A Morte de Ivan Ilitch” deu a impressão que alguma redenção era possível —sobretudo pelo conforto que é oferecido ao moribundo pelo seu servo, Guerássim, e pelo seu filho.
Relido na pandemia, o entendimento é outro. Ivan Ilicht não consegue imaginar outra maneira de ter vivido, não pode nem se arrepender. Está condenado ao ressentimento, à raiva de si mesmo e de todos. Morre como viveu, só.
Mansur. Era assim que João Gilberto chamava Sérgio Ricardo, cujo sobrenome de solteira de sua mãe era Mansur. Teve Covid-19 e se curou, mas complicações cardíacas o mataram na quinta-feira, aos 88 anos.
“É um encontro de paulistas”, comemorava João Gilberto na sala de seu apartamento no Leblon. “Mas eu sou mais paulista que vocês”, acrescentava o baiano. Mansur era de Marília e morava há décadas no Vidigal, na favela que virou bairro popular.
Eles se conheceram nos primórdios da bossa nova, nas boates cariocas onde tocavam, e ficaram amigos pela vida toda. Na época, contou Sérgio Ricardo numa madrugada, João Gilberto lhe deu um livro de um autor que conhecia de ouvir falar, Marx: “Li, gostei, virei comunista por causa do João”.
Rimos alto quando o aliciador subversivo completou: “Essa é uma reunião clandestina de comunistas de São Paulo, iremos liderar a revolução no Rio”. Não tinha como dar errado. Foi por pouco.
Por que João Gilberto amava Sérgio Ricardo? “Pela sensibilidade. Quisera eu ter a sensibilidade do Mansur para a música, para a beleza, para a vida.” E mais: “É um cavalheiro”. Mansur era aveludado, espontâneo, terno, tinha os modos de um aristocrata popular, se é que isso existe.
A noite toda um cantava canções menos conhecidas da bossa nova; o outro pegava o violão e vinha com velhos sambas. Mansur nunca cantou as suas músicas eletrizantes da trilha sonora de “Deus e o Diabo na Terra do Sol”. Pena.
Pena também que João Gilberto não tenha gravado nada dele, apesar de saber suas canções de cor e tocá-las em shows. Pena ainda que a arte de Sérgio Ricardo não tenha sido mais valorizada, ou ouvida com a atenção devida: “A saudade é um trem de ferro sem passageira”.
Mansur não ligava para a glória e o dinheiro. Viveu como quis com seu pouco. Como não era um Ivan Ilitch, sua vida foi reta, limpa, ímpar. A vida de todos nós ele a pôs nos versos de “Esse Nosso Olhar”, que João Gilberto tantas vezes cantou em madrugadas sem fim, mas que, hélas, também morreram: “O mundo inteiro/ ficou pequeno/ em nossas mãos/ virou veneno”.
Mario Sergio Conti é jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".



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