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Compositor Ennio Morricone morre aos 91 anos

Daniel Verdú fez a biografia de Morricone, um gênio da música, para o El País em artigo publicado dia 6/7. Sempre uma leitura que vale... Íntegra a seguir.

A trilha sonora do século XX na Itália ficou escrita para sempre quando ele recebeu a encomenda para compor a música de Novecento, a epopeia de Bernardo Bertolucci sobre as duas Itálias. Mas Ennio Morricone (Roma, 1928 – 2020), sem se propor a isso, já tinha construído naquela época o retrato sonoro de uma paisagem cinematográfica ao qual o mundo pôde regressar milhares de vezes, mesmo depois que o filme terminava e as luzes da sala se acendiam. Na madrugada desta segunda-feira, o compositor terminou de viver aos 91 anos. Acabava de receber o Prêmio Princesa de Astúrias, pouco depois de anunciar sua retirada dos palcos. Mas, até sofrer um acidente doméstico, continuava trabalhando em sua casa com vista para a Piazza Venezia, em Roma, avançando naquela arte que, como sempre disse, o havia salvado da guerra. Em uma conversa com este jornal há apenas um ano, se interrogava sobre a natureza do além. Também sobre isto o maestro poderá encontrar algumas respostas.
Morricone podia ser uma dor de cabeça para um entrevistador ou uma visita não suficientemente anunciada. As prevenções de seu entorno costumavam ser sempre infinitas, e o histórico de reportagens fracassadas com ele era longuíssimo. O maestro tinha um caráter de mil demônios. O mesmo que o fez mandar Quentin Tarantino ao inferno quando considerou que ele usava seus temas de forma caprichosa em filmes como Bastardos inglórios e Django livre. Mas, como com esse cineasta, com quem se reconciliou e assinou a apoteótica música de Os oito odiados ― aquele arranque da diligência avançando através da neve funciona graças a uma música transformada em personagem principal ―, acabaria sendo depois muito mais amável e próximo do que seu entorno costumava alertar aos jornalistas antes da entrevista.
Uma das advertências habituais, entretanto, convém ter em conta também agora. Precoce compositor e estudante atento de pentagramas no conservatório romano da Santa Cecília, discípulo de compositor contemporâneo Goffredo Petrassi, de quem aprendeu a “música absoluta”, Morricone não compunha trilhas sonoras, e sim música para cinema. A música absoluta, como ele mesmo resolveu chamá-la, representa um elemento em si mesma. Autônoma de relatos pré-fabricados ou insólitas solicitações do ouvinte. “Funciona se for boa, e pronto. Pode-se unir a qualquer realidade, mas não significa a própria realidade, e sim um imaginário à parte. Possui uma função complementar a cada filme e pode justificar a obra como um todo, mas de maneira independente. Representa essa abstração do que não se diz e não se vê no filme. E assim deve funcionar”, dizia, aludindo a um certo ideal wagneriano (Gesamtkunstwerk, ou obra de arte total).
Mas hoje, gostasse o maestro ou não, é impossível separar sua música das imagens. Voltar uma e outra vez ao deserto de Tabernas (sul da Espanha) onde Sergio Leone rodou Três homens em conflito (1966) e Por um punhado de dólares (1964). Ou à vertigem do carrinho de bebê subindo pesadamente as escadarias da estação central de Nova York antes do tiroteio final de Os intocáveis (1987). Também através da monumental epopeia sobre a Itália do século XX que Bertolucci rodou com Novecento, um enorme retrato de um país sempre partido em dois, entre o sul e o norte, também entre os violentos rescaldos do fascismo e o vigor comunista mais vibrante da Europa Ocidental. Ou a celebrada trilha sonora de Cinema paradiso, filme que agora reestreia nos cinemas espanhóis.
Morricone, que teria gostado de trabalhar com Pedro Almodóvar além da Ata-me!, que fizeram juntos em 1989, não aceitava encomendas concretas. Seu trabalho não era cozinhar pizzas ao gosto do freguês. Mandava passear quem lhe pedia melodias conhecidas, arremedos sonoros de grandes compositores ou, como tinha feito Tarantino, transformava o que ele escrevera em um mero bloco de acompanhamento. Desenvolveu logo no início uma técnica muito depurada para evitar discussões ou debates estéreis sobre suas partituras: mandava sua obra justamente quando o filme estava acabando de ser produzido. “Às vezes apenas um mês antes da estreia. O diretor não tinha nem sequer a opção de rejeitá-la. Muitos precisavam se acostumar, às vezes minhas obras eram um golpe inesperado”, contou há alguns meses a este jornal. Com os anos, a técnica deixou de ser necessária, porque alguns diretores, como Sergio Leone, chegaram a rodar filmes como Por um punhado de dólares a partir da música já escrita.
Os compassos políticos de Morricone sempre se expressaram de forma sutil. Apoiou Matteo Renzi quando este empreendeu um processo de reformas para modernizar o país. Elogiou Barack Obama quando quis fazer dos Estados Unidos um país mais justo através de um sistema universal de saúde. E criticou Trump, à sua maneira, quando soube que um de seus grandes amigos da alma e companheiros de viagem o tinha apoiado: “Respeito a opinião de Clint Eastwood, mas com Trump não estou de acordo”.
A relação com os EUA sempre se consumou à distância. Alguns acreditam que a academia do Oscar não o perdoou jamais pela decisão de nunca trocar sua amada Roma pelos bulevares e autopistas de Los Angeles, como fizeram tantos colegas de profissão que abraçaram quase anualmente as estatuetas douradas. Afinal, não a obteve pela imponente música de A missão (1986), nem tampouco por Era uma vez na América (1984), embora muitos dissessem que foi porque entregou fora de prazo. Morricone ganhou seu primeiro Oscar há três anos, pela música de Os oito odiados, de Quentin Tarantino. Em 2007, tinha recebido o prêmio honorário da Academia de Cinema. Aos 87 anos, subiu ao palco ovacionado, recebeu a estatueta e agradeceu a esposa, Maria, por suportar sua “ausência”. Hoje a sensação é mais aguda e se espalhará por todo o mundo à medida que passem as horas. Sua música, outra vez, continuará soando quando os títulos do crédito sumirem.



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