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Cláudio Couto: a agenda negativa da antipolítica

Vale a leitura do artigo do cientista político Cláudio Couto no Valor, publicado sexta, 10/7. Íntegra abaixo.

O cientista político Leonardo Avritzer, professor da UFMG, acaba de publicar, pela editora Todavia, um livro eletrônico voltado a discutir a conjuntura política brasileira. Intitula-se “Política e antipolítica: a crise do governo Bolsonaro”. Na página 28 ele define o termo que dá nome à obra: “A antipolítica é a reação à ideia de que instituições e representantes eleitos devem discutir, negociar e processar respostas a temas em debate no país. A antipolítica constitui uma negação de atributos como a negociação ou a coalizão. Ela se estabeleceu no Brasil a partir da suposta luta anticorrupção”.
Sua análise é precisa. O rechaço à corrupção - algo indispensável numa sociedade civilizada - não constitui, por si só, uma agenda política. Ou, ao menos, uma agenda positiva. Por isso mesmo, a antipolítica pode também ser chamada de política negativa.
O grande sociólogo Max Weber usou essa expressão ao tratar de um parlamento que hostilizava governantes sem apresentar proposições exequíveis; ou seja, denominou como política negativa a atuação de quem não assumia a responsabilidade por dirigir o Estado, influenciar no governo. Retomei a ideia há sete anos, num texto publicado no Estadão (“Política negativa”, politica.esta dao.com.br/ noticias/geral,politica-negativa- imp-,1555767). Nele, analisei a então candidata Marina Silva e sua negação do presidencialismo de coalizão, da necessidade de negociações e da formação de alianças - o que apelidava de “velha política”.
Marina, porém, foi a versão benévola daquilo que o atual presidente encarna de forma perversa. Já desde antes de 2018 e mesmo após a posse, Bolsonaro nega não só o presidencialismo de coalizão e as negociações partidárias (“Nós não vamos negociar nada! Chega de patifaria!”), mas as próprias instituições do Estado Democrático de Direito, como o Congresso, a corte suprema, a autonomia dos governos subnacionais e a legitimidade da oposição e da imprensa crítica - acusadas de antipatrióticas.
Tal postura contribuiu decisivamente para a eleição de Bolsonaro, escorada no antipetismo, no discurso anticorrupção e na imagem de antiestablishment - apesar dos sete mandatos e meio nas costas e da introdução na política profissional de todos os filhos adultos. Muitos eleitores que votaram em Bolsonaro em 2018 optaram mais por uma antiagenda do que por uma agenda positiva; a falta desta última lhes preocupou menos do que a possibilidade de eleger seu opositor no segundo turno: “Tudo, menos o PT!”.
O fato é que Bolsonaro foi um candidato sem propostas claras, com um programa de governo vago, permeado por platitudes e, principalmente, negações. Até por isso a ausência aos debates lhe beneficiou eleitoralmente, pois não tinha muito o que propor, mas apenas negar. Basta ler o programa: menos ministérios, menos gastos, menos estatais, menos impostos, menos direitos trabalhistas, menos regras, menos funcionários, não às cotas, escola sem partido, não ao “Mais Médicos”, fim das demarcações, redução da maioridade penal, liberação do porte de armas, imunidade a agentes de segurança que matarem, fim das audiências de custódia, da progressão de penas e das saídas temporárias. As poucas afirmações do programa diziam respeito à influência fardada no governo: escolas militarizadas, um militar no MEC (aguardemos...), Forças Armadas na segurança pública.
É inegável que Bolsonaro entregou o que prometeu. Para além das benesses corporativas aos fardados, da ampliação de sua participação no governo e da criação de escolas militares, seu mandato tem se pautado, no que consegue, pelo prefixo negativo des-: desmatamento, desregulamentação, desorganização, desmonte e desinstitucionalização da administração pública.
É notória a desestruturação de políticas educacionais (Enem, Fundeb), sanitárias (veja-se o caos em meio à pandemia), científicas, culturais, da produção de dados públicos, de direitos humanos e de relações exteriores.
É o que se nota, em especial, na área ambiental - agora com consequências econômicas e jurídicas, como o Valor noticiou nesta semana. A política ambiental, destroçada pelo ministro Ricardo Salles, é fruto de um longo acúmulo, iniciado no governo Sarney, impulsionado no governo Collor e solidificado ao longo das gestões seguintes, de Itamar, PSDB e PT.
Instituições de governo e políticas públicas são obras incrementais, cuja construção leva décadas e passa por diferentes governos, de distintas orientações partidárias e ideológicas, sofrendo transformações, mas não pura e simples destruição (novamente o des-).
Isso também vale para a área de saúde, já sem ministro titular há dois meses. O SUS, antes mesmo da Constituição de 1988, foi precedido pelo Suds na Nova República, que aprimorou o funcionamento do Inamps, criado durante a ditadura de 1964. Sim, o regime militar, sempre enaltecido por Bolsonaro, iniciou a construção de políticas e instituições que ele agora desfaz.
Também a educação, que requer muita melhoria, vem tendo progressos inegáveis ao longo dos últimos anos. O desgoverno promovido pelos dois últimos ministros travou um lento, porém contínuo, processo de aprimoramento, ocupando-se antes de uma guerra cultural contra os espantalhos de Paulo Freire e do marxismo cultural (sic) do que de produzir políticas alternativas eficazes.
Escolhas eleitorais também se baseiam na negação, ou seja, na rejeição de alternativas indesejáveis. Porém, é de se esperar que as escolhas representem não só antiagendas, mas uma agenda positiva. O caráter anormal do movimento político representado pelo bolsonarismo se expressa em seu teor precipuamente destrutivo. É um governo que se afirma ao destruir; seu propósito é esse. Essa - e não uma pretensa imunidade à corrupção - é o que o distingue de todos os governos que lhe precederam. E o caminho para isso, não nos enganemos, foi pavimentado pela antipolítica do samba de uma nota só da Operação Lava-Jato: a luta contra a corrupção. É preciso mais do que isso.
Cláudio Gonçalves Couto é cientista político, professor da FGV-SP e colunista convidado do “Valor”. César Felício volta a escrever no fim de julho


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