Empresas iniciantes da área da saúde ganham impulso inédito com a pandemia, atraem investimentos e lançam novos serviços e produtos escreve Sérgio Matsuura na edição desta semana da revista Época. Íntegra a seguir.
A imposição da quarentena em decorrência da pandemia de coronavírus foi dura para a gastroenterologista Silvia Calichman. As restrições estabelecidas pela prefeitura de São Paulo e o medo de contaminação fizeram os pacientes desaparecer de seu consultório. A solução veio da tecnologia, com a ajuda de plataformas de teleatendimento lançadas recentemente e que permitiram a ela e a seus pacientes continuarem tratamentos na segurança de suas casas. Esse é um dos exemplos de ferramentas e serviços para o setor médico-hospitalar que surgiram nos últimos meses, um movimento já grande o suficiente para ser chamado de uma onda de health techs, startups voltadas para o segmento da saúde.
Esse movimento pode ser traduzido em números. Pelas contas da consultoria Distrito, as health techs brasileiras receberam até junho deste ano o equivalente a US$ 66,5 milhões em 25 aportes. O valor representa cerca de dois terços de tudo que foi registrado ao longo de todo o ano passado — US$ 94,5 milhões, em 45 contratos. “Está acontecendo um ‘boom’. Muitas dessas startups tiveram suas soluções requisitadas e serviços relacionados com diagnóstico, logística e telemedicina foram catapultados pela crise”, avaliou Amure Pinho, presidente da Associação Brasileira de Startups.
Como costuma acontecer, os investidores foram rápidos. Em fevereiro, os aportes somaram US$ 5,2 milhões. Em março, mês que marcou o início das medidas de isolamento no país, esse valor saltou para US$ 15,5 milhões e se manteve em um patamar alto de lá para cá. “A pandemia certamente acelerou o processo de desenvolvimento e exploração de soluções para a área da saúde, algo que já vinha ocorrendo”, afirmou Gustavo Gierun, cofundador da Distrito. “O mercado de saúde no Brasil é enorme. Acreditamos que este é apenas o começo do movimento”, completou.
Renato Valente, sócio da gestora de fundos Iporanga Ventures, ainda não investiu no setor, mas avalia oportunidades. Em sua opinião, a pandemia forçou órgãos reguladores a abrir as portas para a inovação e, por isso, o número de startups de saúde deverá se multiplicar daqui para a frente. “A indústria de saúde é muito conservadora, tanto do lado dos médicos, dos hospitais e até dos pacientes. Quando se abre uma brecha, como o que aconteceu agora, tem muita gente capacitada pronta para inovar.”
A expansão da telemedicina já era uma demanda antiga dos planos de saúde, especialmente para os casos de menor complexidade. O tema estava em debate no país desde 2002, quando o Conselho Federal de Medicina editou resolução abrindo espaço para o uso de tecnologias para o atendimento médico remoto, mas limitado a orientações e à chamada “teleinterconsulta”, para troca de opiniões entre médicos. Em meados de março, o Ministério da Saúde, na gestão de Luiz Henrique Mandetta, liberou o uso da telemedicina no país, inclusive para consultas, diagnóstico e prescrição de medicamentos “em caráter de excepcionalidade e enquanto durar a batalha de combate ao contágio da Covid-19”. Em seguida, o Congresso aprovou uma nova lei.
A Conexa Saúde, startup que explora o ramo da telemedicina, foi uma das que atraíram a atenção de investidores. No mês passado, ela recebeu aporte de R$ 40 milhões em uma segunda rodada de investimentos, que poderá aumentar para R$ 140 milhões nos próximos três anos. Fundada em 2017, a empresa já oferecia a telemedicina, nos moldes que eram permitidos, a clientes corporativos. Com a nova resolução, acelerou o desenvolvimento de uma plataforma aberta para médicos lidarem diretamente com os pacientes. “Somando os clientes corporativos e o atendimento direto aos pacientes, fizemos mais de meio milhão de consultas em dois meses”, contou Guilherme Weigert, presidente da startup. “Hoje, a gente faz em média 15 mil consultas por dia. Antes da pandemia eram 2 mil”.
Outras empresas seguiram pelo mesmo caminho. O BoaConsulta, que oferecia uma plataforma para agendamento e gestão, viu as marcações de consultas despencarem 70% em abril. Numa espécie de contra-ataque, um projeto de uma plataforma de telemedicina foi acelerado e lançado em seguida. O mesmo movimento aconteceu na Dandelin, que com um modelo de economia compartilhada oferece teleconsultas por mensalidade fixa de R$ 100. “O segmento de health techs foi pego de surpresa, por um problema urgente, e teve de acelerar. Algo que aconteceria em cinco, dez anos aconteceu em meses. No ecossistema de startups, vimos ondas de fintechs, de mobilidade urbana, mas nunca as health techs tiveram tanto apelo quanto agora”, disse Adriano Fontana, fundador e presidente do BoaConsulta. “Por conservadorismo, também pela exigência de segurança por tratar da vida de pessoas, essa indústria se move de forma mais lenta. A pandemia veio para quebrar certos paradigmas.”
A telemedicina é o serviço mais visível das health techs, mas não o único. Empresas que atuam diretamente no combate à Covid-19 também ganharam destaque. A Varstation, por exemplo, gestada dentro do Hospital Albert Einstein, em São Paulo, desenvolveu o primeiro teste genético para detecção do coronavírus em larga escala, com custo menor e precisão equivalente à do método RT-PCR, o padrão ouro no diagnóstico. A Radsquare e a Hoobox, ambas incubadas no Einstein, criaram uma ferramenta que detecta pessoas com febre em imagens de câmeras de vídeo. O sistema foi instalado em todas as entradas do hospital. Já a Portal Telemedicina desenvolveu um sistema de inteligência artificial, em parceria com o Google, capaz de diagnosticar a doença analisando imagens de raios X ou tomografias do tórax.
Para Marcone Siqueira, cofundador da filial brasileira da empresa de inovação britânica The Bakery, as health techs “são a bola da vez”, e quando ele diz isso não está pensando apenas em startups voltadas especificamente ao tema do coronavírus. Siqueira acredita que a pandemia mudou o comportamento das pessoas em relação à saúde, que agora estaria mais focado na prevenção. “Isso abre espaço para startups que lidem com saúde mental, bem-estar do corpo e até da qualidade do sono”, disse.
O direcionamento imposto pela Covid-19 no ambiente de startups deu origem a vencedores, mas também deixou uma sombra sobre vários segmentos. “Nem todas as empresas de saúde se beneficiaram com a pandemia”, ponderou Cláudio Terra, diretor de Inovação e Transformação Digital da Sociedade Beneficente Israelita Brasileira Albert Einstein, que trabalha com mais de 60 startups na área. Empresas de serviços para hospitais não relacionados com a Covid-19 e várias dedicadas à biotecnologia perderam um pouco do brilho — pelo menos, momentaneamente.
Com diferentes ênfases, o movimento de fortalecimento de parte das startups da área da saúde aconteceu em outras grandes economias. No ano passado, o governo britânico lançou, com pompa, um órgão para acelerar a digitalização do Serviço Nacional de Saúde, conhecido pela sigla em inglês NHS. O objetivo era unificar iniciativas que aconteciam de forma independente em várias esferas do sistema. Nos primeiros meses, o NHSX, sigla com a qual foi batizada a nova iniciativa, teve um desempenho considerado lento. Com o estouro da pandemia neste ano, o NHSX engatou uma nova marcha, e os projetos ganharam em velocidade. Em março, o governo lançou um fundo de 500 mil libras para financiar soluções para a crise sanitária, o que também ajudou.
Como aconteceu no Brasil, algumas empresas britânicas adaptaram serviços e produtos já existentes. Esse foi o caso da GoodSAM, uma plataforma que atrai voluntários para a área da saúde. Antes da pandemia, o foco eram doenças cardiovasculares. Agora a GoodSAM é uma das mais ativas na mobilização contra a Covid-19. Outras empresas viram um aumento de interesse repentino por seus produtos. O Hospify, uma plataforma de comunicação criada com o objetivo de substituir o WhatsApp no meio médico, tem atraído milhares de novos usuários a cada semana.
A imposição da quarentena em decorrência da pandemia de coronavírus foi dura para a gastroenterologista Silvia Calichman. As restrições estabelecidas pela prefeitura de São Paulo e o medo de contaminação fizeram os pacientes desaparecer de seu consultório. A solução veio da tecnologia, com a ajuda de plataformas de teleatendimento lançadas recentemente e que permitiram a ela e a seus pacientes continuarem tratamentos na segurança de suas casas. Esse é um dos exemplos de ferramentas e serviços para o setor médico-hospitalar que surgiram nos últimos meses, um movimento já grande o suficiente para ser chamado de uma onda de health techs, startups voltadas para o segmento da saúde.
Esse movimento pode ser traduzido em números. Pelas contas da consultoria Distrito, as health techs brasileiras receberam até junho deste ano o equivalente a US$ 66,5 milhões em 25 aportes. O valor representa cerca de dois terços de tudo que foi registrado ao longo de todo o ano passado — US$ 94,5 milhões, em 45 contratos. “Está acontecendo um ‘boom’. Muitas dessas startups tiveram suas soluções requisitadas e serviços relacionados com diagnóstico, logística e telemedicina foram catapultados pela crise”, avaliou Amure Pinho, presidente da Associação Brasileira de Startups.
Como costuma acontecer, os investidores foram rápidos. Em fevereiro, os aportes somaram US$ 5,2 milhões. Em março, mês que marcou o início das medidas de isolamento no país, esse valor saltou para US$ 15,5 milhões e se manteve em um patamar alto de lá para cá. “A pandemia certamente acelerou o processo de desenvolvimento e exploração de soluções para a área da saúde, algo que já vinha ocorrendo”, afirmou Gustavo Gierun, cofundador da Distrito. “O mercado de saúde no Brasil é enorme. Acreditamos que este é apenas o começo do movimento”, completou.
Renato Valente, sócio da gestora de fundos Iporanga Ventures, ainda não investiu no setor, mas avalia oportunidades. Em sua opinião, a pandemia forçou órgãos reguladores a abrir as portas para a inovação e, por isso, o número de startups de saúde deverá se multiplicar daqui para a frente. “A indústria de saúde é muito conservadora, tanto do lado dos médicos, dos hospitais e até dos pacientes. Quando se abre uma brecha, como o que aconteceu agora, tem muita gente capacitada pronta para inovar.”
A expansão da telemedicina já era uma demanda antiga dos planos de saúde, especialmente para os casos de menor complexidade. O tema estava em debate no país desde 2002, quando o Conselho Federal de Medicina editou resolução abrindo espaço para o uso de tecnologias para o atendimento médico remoto, mas limitado a orientações e à chamada “teleinterconsulta”, para troca de opiniões entre médicos. Em meados de março, o Ministério da Saúde, na gestão de Luiz Henrique Mandetta, liberou o uso da telemedicina no país, inclusive para consultas, diagnóstico e prescrição de medicamentos “em caráter de excepcionalidade e enquanto durar a batalha de combate ao contágio da Covid-19”. Em seguida, o Congresso aprovou uma nova lei.
A Conexa Saúde, startup que explora o ramo da telemedicina, foi uma das que atraíram a atenção de investidores. No mês passado, ela recebeu aporte de R$ 40 milhões em uma segunda rodada de investimentos, que poderá aumentar para R$ 140 milhões nos próximos três anos. Fundada em 2017, a empresa já oferecia a telemedicina, nos moldes que eram permitidos, a clientes corporativos. Com a nova resolução, acelerou o desenvolvimento de uma plataforma aberta para médicos lidarem diretamente com os pacientes. “Somando os clientes corporativos e o atendimento direto aos pacientes, fizemos mais de meio milhão de consultas em dois meses”, contou Guilherme Weigert, presidente da startup. “Hoje, a gente faz em média 15 mil consultas por dia. Antes da pandemia eram 2 mil”.
Outras empresas seguiram pelo mesmo caminho. O BoaConsulta, que oferecia uma plataforma para agendamento e gestão, viu as marcações de consultas despencarem 70% em abril. Numa espécie de contra-ataque, um projeto de uma plataforma de telemedicina foi acelerado e lançado em seguida. O mesmo movimento aconteceu na Dandelin, que com um modelo de economia compartilhada oferece teleconsultas por mensalidade fixa de R$ 100. “O segmento de health techs foi pego de surpresa, por um problema urgente, e teve de acelerar. Algo que aconteceria em cinco, dez anos aconteceu em meses. No ecossistema de startups, vimos ondas de fintechs, de mobilidade urbana, mas nunca as health techs tiveram tanto apelo quanto agora”, disse Adriano Fontana, fundador e presidente do BoaConsulta. “Por conservadorismo, também pela exigência de segurança por tratar da vida de pessoas, essa indústria se move de forma mais lenta. A pandemia veio para quebrar certos paradigmas.”
A telemedicina é o serviço mais visível das health techs, mas não o único. Empresas que atuam diretamente no combate à Covid-19 também ganharam destaque. A Varstation, por exemplo, gestada dentro do Hospital Albert Einstein, em São Paulo, desenvolveu o primeiro teste genético para detecção do coronavírus em larga escala, com custo menor e precisão equivalente à do método RT-PCR, o padrão ouro no diagnóstico. A Radsquare e a Hoobox, ambas incubadas no Einstein, criaram uma ferramenta que detecta pessoas com febre em imagens de câmeras de vídeo. O sistema foi instalado em todas as entradas do hospital. Já a Portal Telemedicina desenvolveu um sistema de inteligência artificial, em parceria com o Google, capaz de diagnosticar a doença analisando imagens de raios X ou tomografias do tórax.
Para Marcone Siqueira, cofundador da filial brasileira da empresa de inovação britânica The Bakery, as health techs “são a bola da vez”, e quando ele diz isso não está pensando apenas em startups voltadas especificamente ao tema do coronavírus. Siqueira acredita que a pandemia mudou o comportamento das pessoas em relação à saúde, que agora estaria mais focado na prevenção. “Isso abre espaço para startups que lidem com saúde mental, bem-estar do corpo e até da qualidade do sono”, disse.
O direcionamento imposto pela Covid-19 no ambiente de startups deu origem a vencedores, mas também deixou uma sombra sobre vários segmentos. “Nem todas as empresas de saúde se beneficiaram com a pandemia”, ponderou Cláudio Terra, diretor de Inovação e Transformação Digital da Sociedade Beneficente Israelita Brasileira Albert Einstein, que trabalha com mais de 60 startups na área. Empresas de serviços para hospitais não relacionados com a Covid-19 e várias dedicadas à biotecnologia perderam um pouco do brilho — pelo menos, momentaneamente.
Com diferentes ênfases, o movimento de fortalecimento de parte das startups da área da saúde aconteceu em outras grandes economias. No ano passado, o governo britânico lançou, com pompa, um órgão para acelerar a digitalização do Serviço Nacional de Saúde, conhecido pela sigla em inglês NHS. O objetivo era unificar iniciativas que aconteciam de forma independente em várias esferas do sistema. Nos primeiros meses, o NHSX, sigla com a qual foi batizada a nova iniciativa, teve um desempenho considerado lento. Com o estouro da pandemia neste ano, o NHSX engatou uma nova marcha, e os projetos ganharam em velocidade. Em março, o governo lançou um fundo de 500 mil libras para financiar soluções para a crise sanitária, o que também ajudou.
Como aconteceu no Brasil, algumas empresas britânicas adaptaram serviços e produtos já existentes. Esse foi o caso da GoodSAM, uma plataforma que atrai voluntários para a área da saúde. Antes da pandemia, o foco eram doenças cardiovasculares. Agora a GoodSAM é uma das mais ativas na mobilização contra a Covid-19. Outras empresas viram um aumento de interesse repentino por seus produtos. O Hospify, uma plataforma de comunicação criada com o objetivo de substituir o WhatsApp no meio médico, tem atraído milhares de novos usuários a cada semana.
Comentários
Postar um comentário
O Entrelinhas não censura comentaristas, mas não publica ofensas pessoais e comentários com uso de expressões chulas. Os comentários serão moderados, mas são sempre muito bem vindos.