“A guerra no comércio exterior é frequentemente apresentada
como guerra entre países. Não é: é conflito principalmente entre banqueiros e
donos de ativos financeiros, de um lado, e consumidores comuns, do outro -
entre os muito ricos e todos os demais.” A ideia resume bem “Trade Wars Are Class Wars”. Seus autores,
Matthew Klein e Michael Pettis, argumentam que os desdobramentos que estão
sendo vistos no comércio exterior e nas finanças só podem ser compreendidos no
contexto das patologias domésticas das principais economias. O resultado são
graves desequilíbrios internacionais, dívidas insustentáveis e crises
financeiras monstruosas, escreve Martin Wolf no Financial Times, em artigo
reproduzido no Valor de sexta, 10/7. Continua abaixo.
É um enredo que importa a todos. As fundações desse
excelente livro estão na teoria do “subconsumo”, proposta em 1902 pelo analista
britânico John Hobson e retomada nos anos 1930 no trabalho de John Maynard
Keynes. Agora, mais uma vez, volta a ser relevante.
“Por décadas, os custos de captação reais têm ficado abaixo
das previsões de crescimento econômico real de longo prazo e permanecem em
torno de zero”, destacam. Essa combinação de taxas de juros muito baixas com
fraqueza na demanda mundial e baixa inflação é um sintoma cabal de subconsumo
ou, no palavreado moderno, de “excesso de poupança”. A explicação dada por
Klein, comentarista do semanário “Barron’s”, e Pettis, professor da
Universidade de Pequim, é que há um movimento de maior transferência de renda
para as pessoas mais ricas, que não gastam o que ganham. Esse é o quadro geral.
Mas é o relacionamento entre as economias nacionais que produz esse quadro
geral.
O ponto crucial é que não se pode analisar o que vem
acontecendo nas economias isoladamente. Além disso, o balanço geral de bens e
serviços é explicado por poupança, investimento e fluxos de capital, não pela
balança comercial bilateral, como pensa Donald Trump.
Some-se a isso também, como argumentam Klein e Pettis, o
fato de que “desequilíbrios financeiros agora determinam desequilíbrios
comerciais”. Para ajustar-se aos déficits estruturais resultantes, a oferta
doméstica de bens e serviços comercializáveis em países deficitários, como os
EUA, precisa ser espremida. Os efeitos cruéis disso sobre a classe trabalhadora
industrial estão bem exemplificados em outro importante livro recente, “Deaths
of Despair and the Future of Capitalism” (de Anne Case e Angus Deaton).
“Trade Wars Are Class Wars” apresenta essas ideias nos
primeiros capítulos, que discutem a história do comércio exterior, o papel da
liberalização das finanças na criação de fluxos de capital insustentáveis e
como a poupança, os investimentos e os “desequilíbrios” externos interagem. O
cerne do livro, porém, é a análise da história da China, Alemanha e dos EUA nos
últimos 30 anos. O sucesso econômico da China foi resultado de versão extrema do
que os autores chamam de modelo de desenvolvimento da “alta poupança”, somado a
uma exploração das oportunidades comerciais, na qual o Japão foi pioneiro.
Portanto, desde início dos anos 1990 e particularmente depois do ano 2000,
houve declínio acentuado na proporção do consumo doméstico no PIB da China.
“Em 2018, as famílias chinesas ainda consumiam menos de 40%
da produção chinesa - proporção inferior à de qualquer outra grande economia no
mundo”, escrevem. Isso se deve a uma série de mecanismos (alta poupança dos
consumidores, baixas taxas de juros, falta de direitos dos migrantes rurais nas
cidades, tributação regressiva, redes de segurança social frágeis e o fato de
as estatais não pagarem dividendos) criados para transferir renda dos
trabalhadores e dos aposentados para as empresas e o Estado.
A poupança bruta nacional atingiu o pico de quase 50% do
PIB. Até a crise financeira mundial, essa poupança entrava no investimento
doméstico e no superávit em conta corrente. Depois da crise, o declínio no superávit
da conta corrente - a balança comercial de bens e de todos os serviços - foi
neutralizado por novo aumento imenso nos investimentos alimentados por crédito,
que chegaram a quase metade do PIB. O aumento no investimento foi financiado
por enorme onda de crescimento na concessão de créditos.
Hoje, a proporção do consumo das famílias no PIB é pouco
maior, mas ainda é notavelmente baixa para os padrões internacionais. A China
está presa a três opções: investimentos ineficazes alimentados por crédito,
superávits externos enormes ou gigantescas transferências de renda das mãos da
elite para as das pessoas comuns.
Agora vejamos a Alemanha. Desde o fim da onda de expansão
pós-reunificação nos anos 90 e da liberalização do mercado de trabalho nos anos
2000, os lucros das empresas têm sido altos e os investimentos domésticos das
empresas, baixos. Mais notavelmente, o consumo “alemão não cresceu nada entre
2001 e 2005”. Os gastos domésticos ficaram bem abaixo da renda alimentada pelo
comércio exterior. O governo alemão também exibia, até a covid-19, orçamento
bem enxuto. Como resultado, surgiu um superávit em conta corrente gigante e
persistente ou, em outras palavras, um excesso de poupança.
Até 2008, o excesso de poupança da Alemanha e de países
menores (como a Holanda) foram contrabalanceados por surtos insustentáveis de
gastos e crédito em países como Grécia, Irlanda e, acima de tudo, Espanha. A
crise financeira mundial acabou com isso. Desde então, toda a região do euro
passou a um estado de superávit em conta corrente que foi mundialmente
desestabilizador, em tentativa nociva de transformar o bloco, a segunda maior
economia do mundo, em uma Alemanha tamanho-família, em meio a um excesso global
de poupança.
Que vantagens os alemães conseguiram com seu enorme excesso
de poupança? Consideravelmente poucas. “Os alemães, que foram ávidos
exportadores de capital financeiro nos últimos 20 anos, são quase
exclusivamente ruins em investir no exterior”, escrevem os autores.
“Desde o início de 1999, o setor privado alemão,
coletivamente, gastou pouco mais de €5,1 trilhões comprando ativos em outros
países. Ao longo do mesmo período, contudo, o total desses ativos cresceu
apenas € 4,8 trilhões.”
Por quase 20 anos, compras insensatas de hipotecas subprime
americanas e de títulos de dívida do governo grego resultaram em perda de valor
de 7%. Essa é uma forma infrutífera de frugalidade. Para que alguns países
tenham excesso de poupança, outros precisam estar na ponta oposta.
Ocasionalmente, os fluxos de capital geraram grandes déficits em países
emergentes ou em países de alta renda mais frágeis, como a Espanha. Mas o país
com déficit mais alto e mais persistente é os EUA. A oferta e demanda mundiais
são balanceadas lá, principalmente pelo Federal Reserve (Fed, banco central dos
EUA), que na prática é o banco central do mundo.
Isso não é tarefa fácil, particularmente porque os EUA,
também, tiveram maior transferência de renda para os que são grandes
poupadores. Com o déficit em conta corrente em grande medida possibilitado pela
demanda externa por ativos seguros dos EUA, há contraparte na forma de excesso
de demanda doméstica que vem de duas fontes: bolhas financeiras e déficit
federal.
Houve a bolha do mercado acionário dos anos 1990 e,
novamente, a bolha imobiliária dos anos 2000; o déficit federal emergiu depois
de as duas bolhas estourarem e, mais recentemente, com Trump. A bolha
imobiliária foi particularmente fascinante, não apenas por seu fim desastroso,
mas pela forma como Wall Street gerou, por alquimia, esses ativos seguros em
dólar que o mundo tanto queria: a conversão de financiamentos imobiliários de
má qualidade em ativos classificados com rating “AAA”.
Como destacam Klein e Pettis: “A pouca disposição do resto
do mundo em gastar - que, por sua vez, se deve às guerras de classe em
economias superavitárias importantes e ao desejo de autosseguro depois da crise
asiática - foi a causa subjacente tanto da bolha das dívidas dos EUA quanto da
desindustrialização dos EUA”.
Mais notavelmente: “Bancos centrais estrangeiros e outros
gestores de reservas gastaram cerca de US$ 4,1 trilhões em ativos em dólar
entre o início de 1998 e meados de 2008”.
Na prática, o excesso de poupança de vários países
impulsionou gigantesca entrada líquida de capital nos EUA, que resultou em
déficit comercial imenso e na perda de empregos industriais no coração dos EUA.
Foi a conta de capital que importou. A balança comercial foi subproduto. O
papel dos EUA como fornecedor dos ativos mais seguros e líquidos do mundo é
vital. Estamos tentando operar uma economia global com dinheiro nacional. Há
muito se sabe que isso é problemático. Não deixou de ser depois da mudança para
as taxas de câmbio flutuantes. Se estrangeiros quiserem ter ativos líquidos
americanos em amplos volumes, os EUA precisam ter altos déficits externos, a
menos que o setor privado queira se carregar com volume correspondente de
ativos estrangeiros de maior risco.
Qualquer política econômica começa a partir de análise
clara. Os desequilíbrios que causaram a crise da região do euro, o crescimento
explosivo do endividamento nos EUA e na periferia da Europa e na China
pós-crise financeira remontam a dois erros básicos: a transferência de renda da
maior parte da população para as elites mais ricas e o papel global singular do
dólar.
A solução óbvia para o primeiro erro é distribuir a renda a
pessoas que a gastem sem precisar incorrer mais em dívidas. Na região do euro,
isso provavelmente exigiria a criação de autoridade fiscal central, com
capacidade para redistribuir os recursos. Na Alemanha, isso exigiria aumento
nos gastos do governo em bem-estar social e em investimentos. Na China, isso
exigiria a reforma dos direitos de propriedade, a ampliação dos direitos dos
migrantes em áreas urbanas, melhor rede de segurança social, a capacidade de organização
dos trabalhadores e mudança na tributação dos mais ricos.
Quanto ao papel do dólar, devemos nos lembrar que o próprio
Keynes recomendou a criação de uma moeda global em Bretton Woods, em 1944. Isso
pode nunca acontecer. Mas está claro que ter uma economia integrada globalmente
com uma moeda nacional cria problemas insolúveis.
Não deveríamos nos surpreender quando eles emergem uma e
outra vez. Na verdade, não deveríamos nem nos surpreender se eles acabarem
destruindo a economia mundial aberta.
Se não reconhecermos e reagirmos a esses problemas, podemos
nos ver atolados persistentemente em um mundo de desequilíbrios e guerras de
comércio exterior. Não é um bom lugar onde se estar. Deveríamos fugir disso.
(Tradução de Sabino Ahumada)
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