Entre Cristóvão Colombo e Anitta há uma distância de cinco séculos, e muitas léguas marítimas. Também não há conexão óbvia entre a princesa Isabel e a escritora inglesa J.K. Rowling. Ainda que por vias tortas, os tempos atuais deram um jeitinho de unir o descobridor da América, a cantora funk, a signatária da Lei Áurea e a criadora de Harry Potter: todos são vítimas da “cultura do cancelamento”. Onipresente nas redes sociais, a expressão está na boca do povo: segundo o Google, as buscas pelo tema cresceram 1 200% nos últimos três meses. Não se engane, porém: “cancelar” qualquer pessoa, anônima ou famosa, é um evento implacável e violento — mesmo que amparado em razões teoricamente justas. Woody Allen foi acusado de abusar da filha? Está cancelado. A atriz Alessandra Negrini se fantasiou de índia no Carnaval, irritando quem condena a “apropriação cultural” de povos e minorias? Canceladíssima. A fúria atinge os vivos, como Anitta (“traidora”) e J.K. (“transfóbica”), mas nem os mortos escapam: nos protestos antirracismo nos Estados Unidos, estátuas de Colombo foram atacadas por simbolizar a opressão contra os índios; no Brasil, a princesa Isabel foi levada ao, digamos, Supremo Tribunal Virtual por ter “roubado” dos negros o protagonismo na Abolição, escrevem João Batista Jr. e Marcelo Marthe em interessante matéria publicada no site da Época desta semana. Continua a seguir.
Nas redes sociais, o ato de cancelar é uma tomada de posição radical diante de uma conduta que se julga censurável — só que essa condenação, além de eventualmente estar baseada em informações falsas, se espalha exponencialmente, naquele comportamento de manada típico das rinhas da internet. Dramaticidade, aliás, é a alma do negócio: uma das táticas do cancelamento é o exposed, que consiste em desmascarar alguém na praça pública on-line. Às vezes, pouco importa se é justo os dedos apontarem para um suposto comportamento hipócrita ou se as críticas são proporcionais. O justiçamento é imediato. Atire primeiro, pergunte depois, essa é a regra. Caso a figura acumule uma alta popularidade digital, o apedrejamento virtual ganha uma dimensão equivalente. “Se você passar um tempo nas redes sociais hoje, terá a sensação de que estamos todos presos em um estado de perpétuo ultraje”, já pontificou a psicóloga social Molly Crockett, da Universidade Yale.
Nenhum caso nacional exemplifica melhor a dinâmica de “quanto maior a altura, maior o tombo” do que o da influencer Gabriela Pugliesi. Ela ficou famosa ao transformar suas redes sociais em uma espécie de reality show do culto à boa forma, com uma profusão de fotos de biquínis e de looks com peças coladas no corpo malhadíssimo. Para esse tipo de, digamos assim, produto, nada pior do que um flagrante de comportamento de risco misturado a altas doses de hedonismo explícito, como ocorreu quando Pugliesi foi gongada por ter dado uma festa durante a pandemia, na qual proclamou: “F***-se a vida”. O impacto do cancelamento na carreira e na renda dela foi imediato. Para tentar resgatar a imagem, Gabriela encerrou sua conta na rede social e abriu mão de trabalhos publicitários lucrativos, voltando ao Instagram nesta semana (leia o quadro na pág. 62).
Barracos íntimos representam outro barril de pólvora bastante comum para iniciar um julgamento mundial, em que todos se sentem autorizados a dar seu veredicto. O astro Johnny Depp acabou sendo cancelado em razão de seu mau comportamento conjugal, vindo à tona na batalha que trava com a ex Amber Heard. Empresas e corporações também não estão imunes ao rolo compressor. O empresário Edgard Corona viu suas redes de academia Bio Ritmo e Smart Fit ser atingidas quando o nome dele foi envolvido no inquérito das redes bolsonaristas de fake news. Não existem provas nem certezas sobre qualquer tipo de mau comportamento do empresário, mas a avalanche de críticas nas redes sociais materializou-se no mundo real na forma de filas de alunos nas portas aguardando a vez para encerrar a matrícula.
O cancelamento tornou-se uma ameaça tão concreta que agora faz parte da gestão de carreiras minimizar seu impacto. Para os empresários de artistas, a questão não é mais “se” um astro será atingido, mas “quando”. Ultimamente, as principais agências de gestão de imagem realizam varreduras em posts e fotos já publicados por seus clientes. Se detectam algo com potencial de risco, o conteúdo é deletado na hora. Exemplos do que não pode mais: fotos em cima de elefante em safáris (exploração de animais), ao lado de crianças da África (usar a pobreza para ganhar seguidores), e assim por diante. O mesmo vale para as curtidas de fotos. Ludmilla, hoje lésbica assumida e dona de uma base de fãs LGBT, deu like em um post de Jair Bolsonaro na época da eleição — a funkeira diz ter apertado o emoji de coração “sem querer”. Pronto: foi cancelada momentaneamente.
Artista brasileira de maior poderio no Instagram, com 47,8 milhões de seguidores, Anitta viu sua reputação ser posta em xeque quando o jornalista Leo Dias divulgou uma série de áudios de conversas de WhatsApp que flagravam a cantora falando mal das “amigas” Ludmilla, Ivete Sangalo, Preta Gil e Marina Ruy Barbosa. Hoje com uma promissora carreira no exterior, Anitta ficou em pânico, pois o escândalo poderia mexer com o bolso: ela temia perder a confiança de patrocinadores. Deu então uma amostra dos novos expedientes para se blindar de um cancelamento: entrou com uma ação para impedir Dias de citar o nome dela (ganhou) e assumiu os erros. Craque do marketing, aproveitou a onda para lançar um single. Por fim, fez uma agenda para recobrar a credibilidade, com posts em prol do meio ambiente e lives sobre política.
No âmbito global, nenhum caso recente sintetiza de maneira tão lapidar a erosão provocada pelas campanhas de cancelamento quanto a confusão em que se meteu J.K. Rowling. Além de ser dona da franquia Harry Potter, com mais de 500 milhões de livros vendidos, a escritora construiu a imagem da mulher que venceu pelo talento e canaliza seu sucesso para o proselitismo de ideias “do bem”. Mas tudo foi posto em xeque por uma celeuma iniciada semanas atrás, quando ela tuitou um artigo que dava a entender que o termo “mulher” só poderia ser aplicado ao gênero biológico. Foi atacada como “transfóbica” por milhares de fãs, que se sentiram traídos pela pessoa que enaltece em seus livros valores como o respeito à diferença. Os próprios atores dos filmes de Harry Potter, com Daniel Radcliffe à frente, repudiaram a autora. A balbúrdia ameaça agora a continuidade da franquia Animais Fantásticos e Onde Habitam, que tem envolvimento direto de J.K. Rowling.
Ao mesmo tempo que sua imagem era carbonizada nas redes, a escritora engrossava o cordão de 150 intelectuais, artistas e autores que, há três semanas, lançaram um manifesto contra a cultura do cancelamento. A carta publicada pela revista Harper’s condena o clima de Inquisição moderna que tomou conta do debate público atual, no qual reinam “a intolerância com opiniões divergentes, uma onda de execração pública e ostracismo, e a tendência de dissolver assuntos complexos em certezas morais cegas”. É significativo que a denúncia dos males do cancelamento tenha unido uma gama variada de pensadores: negros e brancos, homens e mulheres, gente de esquerda e de direita. “É hora de dar um basta”, disse a VEJA uma das participantes do abaixo-assinado, a jornalista Anne Applebaum.
É coerente a reação: a cultura do cancelamento rapidamente vem se impondo como uma forma de justiçamento moderno. O perigo contido nas explosões coletivas por vingança é sintetizado no episódio que, não à toa, deu o sentido notório à expressão “caça às bruxas”. Entre 1692 e 1693, a cidadezinha de Salem, na colônia americana de Massachusetts, foi palco de julgamentos movidos pela histeria geral. Embora as denúncias se baseassem em suspeitas tênues e fofocas, dezenove pessoas, em sua maioria mulheres, foram enforcadas sob a acusação de bruxaria. O linchamento pelas vias da violência física e de julgamentos sumários é uma triste tradução da barbárie. Mas não é menos inominável quando a arma passa a ser o uso destrutivo das palavras e argumentos morais, como ocorreu em momentos como a Revolução Cultural, na China dos anos 60 — quando estudantes se converteram em censores de qualquer coisa que fosse contra as verdades do regime. O mesmo fenômeno havia aparecido um pouco antes nos Estados Unidos com o macarthismo, a caça aos comunistas movida pelo senador americano Joseph McCarthy nos anos 50, que também se nutria da histeria para linchar reputações. A cultura do cancelamento é a nova face do fenômeno, agora turbinado pelo alcance das redes. “Obviamente, episódios como a Revolução Cultural envolveram uma violência real que não vemos nos cancelamentos de hoje. Mas o instinto humano de um grupo querer silenciar outro é o de sempre”, diz Anne Applebaum.
O que dificulta a percepção negativa sobre o cancelamento é um paradoxo intrínseco a essas manifestações. Seu método — a demolição das reputações em um frenesi massivo, sem direito a defesa — merece repúdio. Em muitas ocasiões, pessoas e empresas são atacadas de forma leviana e até com fake news. Mas, às vezes, o público reclama, xinga e deleta em nome de causas legítimas. Muitos cancelamentos vêm com o selo de movimentos como MeToo, que combate os abusos sexuais contra as mulheres, e Black Lives Matter, em evidência nos protestos antirracistas pelo mundo. Para Filipe Campello, doutor em filosofia pela Universidade de Frankfurt e coordenador do Núcleo de Estudos em Filosofia Política e Ética da Universidade Federal de Pernambuco, o cancelamento funciona como uma válvula de escape. “É compreensível que indivíduos que se sintam injustiçados tentem dar voz a essas demandas. É como alguém que se cansa de tentar falar sem ser ouvido e então tem de gritar”, afirma. A questão é que nem sempre quem grita tem razão. “A solução encontrada para expressar esse sentimento revanchista acaba por recair nas mesmas práticas que pretende criticar. A consequência disso é que regredimos a uma forma de punição social baseada no moralismo e em fazer justiça com as próprias mãos”, completa Campello. Nas democracias liberais, cabe à Justiça estabelecer um tipo de balizamento capaz de permitir o pluralismo. A cultura do cancelamento substitui as regras jurídicas, fundamentais numa sociedade como a nossa, por um tribunal persecutório. “Este é o grande risco posto pela cultura do cancelamento: numa sociedade que se pretende aberta e democrática, quem possui a régua moral?”, diz Campello.
O massacre nas redes sociais não tem ideologia — é uma tática adotada por todo o espectro político, e capaz de atingir o mesmo alvo pelos dois lados: exemplo notório é o ex-juiz Sergio Moro, que já era odiado pelos petistas e entrou na mira dos bolsonaristas após denunciar o presidente. Mas nas chamadas guerras culturais que marcam a atual polarização há nuances típicas. As milícias da extrema direita, por exemplo, buscam cancelar artistas que são seus desafetos colando neles a pecha de que “mamam” na Lei Rouanet e, com frequência, adotam a ferramenta das fake news para fustigar opositores (prática que rendeu o inquérito em curso no STF para desmascarar e punir o chamado “gabinete do ódio” criado por apoiadores do presidente). A esquerda tem também culpa nesse cartório, com a diferença de que costuma promover seus linchamentos em nome de causas — não raro, de forma exagerada. Esses ataques em prol do “bem” nasceram nas lutas identitárias dos liberais americanos. O mesmo pau que fere J.K. por sua “transfobia” é o que bate no cientista Steven Pinker por seu “machismo” e “racismo”, ou na atriz Carolina Kasting por uma declaração “gordofóbica”. O conceito de “apropriação cultural”, segundo o qual é crime de lesa-¬pátria valer-se de elementos de povos oprimidos e minorias, também derruba muita gente. Que o diga Alessandra Negrini, bombardeada pela simples decisão de usar um cocar indígena em seu lazer carnavalesco. Eis o ponto a que chegamos: editoras americanas hoje contam com o sensitivity reader — “leitor de sensibilidades” —, profissional que analisa obras a ser lançadas em busca de trechos que possam ferir suscetibilidades. Por trás da boa intenção, esconde-se algo pernicioso: a autocensura.
O linchamento de reputações em suposta defesa de causas nobres não é novo, claro: nos anos 70, o cantor Wilson Simonal foi do auge ao ostracismo pela suspeita, nunca comprovada, de que era dedo-duro da repressão militar. Hoje, os juízes-canceladores querem aplicar sua régua a personagens e eventos de outras épocas, sem considerar que são fruto de outros contextos históricos. Ou seja: criou-se a condenação retroativa, sem prescrição possível dos pecados. O clássico …E o Vento Levou, de 1939, sofre boicote por racismo, e vultos do passado tornaram-se réus. O pintor Paul Gauguin e sua obra foram atingidos pela acusação de sexismo e até pedofilia. Colombo é detonado nas redes e estátuas suas foram atacadas por simbolizar o colonialismo. Um monumento do ex-¬presidente americano Andrew Jackson (1767-1845), sulista e racista, sofreu vandalismo recente nos Estados Unidos. No Brasil, a cancelada da vez é a princesa Isabel — os mais exaltados já sugeriram que uma estátua dela no Rio fosse jogada no mar. “É óbvio que houve atuação dos próprios negros por sua libertação, mas daí a tirar os méritos da princesa só porque era branca é estupidez”, diz o historiador Paulo Rezzutti. A campanha expõe a essência do fenômeno: o que se busca são bodes expiatórios. “Ao deletar pessoas, eliminamos a causa do incômodo, deixando de tratar o assunto a sério. É muito raso só destruir”, afirma Rez¬zut¬ti. Em meio a tanto barulho, sofrimento e muitas injustiças, fica uma sugestão: cancelar a cultura do cancelamento.
Nas redes sociais, o ato de cancelar é uma tomada de posição radical diante de uma conduta que se julga censurável — só que essa condenação, além de eventualmente estar baseada em informações falsas, se espalha exponencialmente, naquele comportamento de manada típico das rinhas da internet. Dramaticidade, aliás, é a alma do negócio: uma das táticas do cancelamento é o exposed, que consiste em desmascarar alguém na praça pública on-line. Às vezes, pouco importa se é justo os dedos apontarem para um suposto comportamento hipócrita ou se as críticas são proporcionais. O justiçamento é imediato. Atire primeiro, pergunte depois, essa é a regra. Caso a figura acumule uma alta popularidade digital, o apedrejamento virtual ganha uma dimensão equivalente. “Se você passar um tempo nas redes sociais hoje, terá a sensação de que estamos todos presos em um estado de perpétuo ultraje”, já pontificou a psicóloga social Molly Crockett, da Universidade Yale.
Nenhum caso nacional exemplifica melhor a dinâmica de “quanto maior a altura, maior o tombo” do que o da influencer Gabriela Pugliesi. Ela ficou famosa ao transformar suas redes sociais em uma espécie de reality show do culto à boa forma, com uma profusão de fotos de biquínis e de looks com peças coladas no corpo malhadíssimo. Para esse tipo de, digamos assim, produto, nada pior do que um flagrante de comportamento de risco misturado a altas doses de hedonismo explícito, como ocorreu quando Pugliesi foi gongada por ter dado uma festa durante a pandemia, na qual proclamou: “F***-se a vida”. O impacto do cancelamento na carreira e na renda dela foi imediato. Para tentar resgatar a imagem, Gabriela encerrou sua conta na rede social e abriu mão de trabalhos publicitários lucrativos, voltando ao Instagram nesta semana (leia o quadro na pág. 62).
Barracos íntimos representam outro barril de pólvora bastante comum para iniciar um julgamento mundial, em que todos se sentem autorizados a dar seu veredicto. O astro Johnny Depp acabou sendo cancelado em razão de seu mau comportamento conjugal, vindo à tona na batalha que trava com a ex Amber Heard. Empresas e corporações também não estão imunes ao rolo compressor. O empresário Edgard Corona viu suas redes de academia Bio Ritmo e Smart Fit ser atingidas quando o nome dele foi envolvido no inquérito das redes bolsonaristas de fake news. Não existem provas nem certezas sobre qualquer tipo de mau comportamento do empresário, mas a avalanche de críticas nas redes sociais materializou-se no mundo real na forma de filas de alunos nas portas aguardando a vez para encerrar a matrícula.
O cancelamento tornou-se uma ameaça tão concreta que agora faz parte da gestão de carreiras minimizar seu impacto. Para os empresários de artistas, a questão não é mais “se” um astro será atingido, mas “quando”. Ultimamente, as principais agências de gestão de imagem realizam varreduras em posts e fotos já publicados por seus clientes. Se detectam algo com potencial de risco, o conteúdo é deletado na hora. Exemplos do que não pode mais: fotos em cima de elefante em safáris (exploração de animais), ao lado de crianças da África (usar a pobreza para ganhar seguidores), e assim por diante. O mesmo vale para as curtidas de fotos. Ludmilla, hoje lésbica assumida e dona de uma base de fãs LGBT, deu like em um post de Jair Bolsonaro na época da eleição — a funkeira diz ter apertado o emoji de coração “sem querer”. Pronto: foi cancelada momentaneamente.
Artista brasileira de maior poderio no Instagram, com 47,8 milhões de seguidores, Anitta viu sua reputação ser posta em xeque quando o jornalista Leo Dias divulgou uma série de áudios de conversas de WhatsApp que flagravam a cantora falando mal das “amigas” Ludmilla, Ivete Sangalo, Preta Gil e Marina Ruy Barbosa. Hoje com uma promissora carreira no exterior, Anitta ficou em pânico, pois o escândalo poderia mexer com o bolso: ela temia perder a confiança de patrocinadores. Deu então uma amostra dos novos expedientes para se blindar de um cancelamento: entrou com uma ação para impedir Dias de citar o nome dela (ganhou) e assumiu os erros. Craque do marketing, aproveitou a onda para lançar um single. Por fim, fez uma agenda para recobrar a credibilidade, com posts em prol do meio ambiente e lives sobre política.
No âmbito global, nenhum caso recente sintetiza de maneira tão lapidar a erosão provocada pelas campanhas de cancelamento quanto a confusão em que se meteu J.K. Rowling. Além de ser dona da franquia Harry Potter, com mais de 500 milhões de livros vendidos, a escritora construiu a imagem da mulher que venceu pelo talento e canaliza seu sucesso para o proselitismo de ideias “do bem”. Mas tudo foi posto em xeque por uma celeuma iniciada semanas atrás, quando ela tuitou um artigo que dava a entender que o termo “mulher” só poderia ser aplicado ao gênero biológico. Foi atacada como “transfóbica” por milhares de fãs, que se sentiram traídos pela pessoa que enaltece em seus livros valores como o respeito à diferença. Os próprios atores dos filmes de Harry Potter, com Daniel Radcliffe à frente, repudiaram a autora. A balbúrdia ameaça agora a continuidade da franquia Animais Fantásticos e Onde Habitam, que tem envolvimento direto de J.K. Rowling.
Ao mesmo tempo que sua imagem era carbonizada nas redes, a escritora engrossava o cordão de 150 intelectuais, artistas e autores que, há três semanas, lançaram um manifesto contra a cultura do cancelamento. A carta publicada pela revista Harper’s condena o clima de Inquisição moderna que tomou conta do debate público atual, no qual reinam “a intolerância com opiniões divergentes, uma onda de execração pública e ostracismo, e a tendência de dissolver assuntos complexos em certezas morais cegas”. É significativo que a denúncia dos males do cancelamento tenha unido uma gama variada de pensadores: negros e brancos, homens e mulheres, gente de esquerda e de direita. “É hora de dar um basta”, disse a VEJA uma das participantes do abaixo-assinado, a jornalista Anne Applebaum.
É coerente a reação: a cultura do cancelamento rapidamente vem se impondo como uma forma de justiçamento moderno. O perigo contido nas explosões coletivas por vingança é sintetizado no episódio que, não à toa, deu o sentido notório à expressão “caça às bruxas”. Entre 1692 e 1693, a cidadezinha de Salem, na colônia americana de Massachusetts, foi palco de julgamentos movidos pela histeria geral. Embora as denúncias se baseassem em suspeitas tênues e fofocas, dezenove pessoas, em sua maioria mulheres, foram enforcadas sob a acusação de bruxaria. O linchamento pelas vias da violência física e de julgamentos sumários é uma triste tradução da barbárie. Mas não é menos inominável quando a arma passa a ser o uso destrutivo das palavras e argumentos morais, como ocorreu em momentos como a Revolução Cultural, na China dos anos 60 — quando estudantes se converteram em censores de qualquer coisa que fosse contra as verdades do regime. O mesmo fenômeno havia aparecido um pouco antes nos Estados Unidos com o macarthismo, a caça aos comunistas movida pelo senador americano Joseph McCarthy nos anos 50, que também se nutria da histeria para linchar reputações. A cultura do cancelamento é a nova face do fenômeno, agora turbinado pelo alcance das redes. “Obviamente, episódios como a Revolução Cultural envolveram uma violência real que não vemos nos cancelamentos de hoje. Mas o instinto humano de um grupo querer silenciar outro é o de sempre”, diz Anne Applebaum.
O que dificulta a percepção negativa sobre o cancelamento é um paradoxo intrínseco a essas manifestações. Seu método — a demolição das reputações em um frenesi massivo, sem direito a defesa — merece repúdio. Em muitas ocasiões, pessoas e empresas são atacadas de forma leviana e até com fake news. Mas, às vezes, o público reclama, xinga e deleta em nome de causas legítimas. Muitos cancelamentos vêm com o selo de movimentos como MeToo, que combate os abusos sexuais contra as mulheres, e Black Lives Matter, em evidência nos protestos antirracistas pelo mundo. Para Filipe Campello, doutor em filosofia pela Universidade de Frankfurt e coordenador do Núcleo de Estudos em Filosofia Política e Ética da Universidade Federal de Pernambuco, o cancelamento funciona como uma válvula de escape. “É compreensível que indivíduos que se sintam injustiçados tentem dar voz a essas demandas. É como alguém que se cansa de tentar falar sem ser ouvido e então tem de gritar”, afirma. A questão é que nem sempre quem grita tem razão. “A solução encontrada para expressar esse sentimento revanchista acaba por recair nas mesmas práticas que pretende criticar. A consequência disso é que regredimos a uma forma de punição social baseada no moralismo e em fazer justiça com as próprias mãos”, completa Campello. Nas democracias liberais, cabe à Justiça estabelecer um tipo de balizamento capaz de permitir o pluralismo. A cultura do cancelamento substitui as regras jurídicas, fundamentais numa sociedade como a nossa, por um tribunal persecutório. “Este é o grande risco posto pela cultura do cancelamento: numa sociedade que se pretende aberta e democrática, quem possui a régua moral?”, diz Campello.
O massacre nas redes sociais não tem ideologia — é uma tática adotada por todo o espectro político, e capaz de atingir o mesmo alvo pelos dois lados: exemplo notório é o ex-juiz Sergio Moro, que já era odiado pelos petistas e entrou na mira dos bolsonaristas após denunciar o presidente. Mas nas chamadas guerras culturais que marcam a atual polarização há nuances típicas. As milícias da extrema direita, por exemplo, buscam cancelar artistas que são seus desafetos colando neles a pecha de que “mamam” na Lei Rouanet e, com frequência, adotam a ferramenta das fake news para fustigar opositores (prática que rendeu o inquérito em curso no STF para desmascarar e punir o chamado “gabinete do ódio” criado por apoiadores do presidente). A esquerda tem também culpa nesse cartório, com a diferença de que costuma promover seus linchamentos em nome de causas — não raro, de forma exagerada. Esses ataques em prol do “bem” nasceram nas lutas identitárias dos liberais americanos. O mesmo pau que fere J.K. por sua “transfobia” é o que bate no cientista Steven Pinker por seu “machismo” e “racismo”, ou na atriz Carolina Kasting por uma declaração “gordofóbica”. O conceito de “apropriação cultural”, segundo o qual é crime de lesa-¬pátria valer-se de elementos de povos oprimidos e minorias, também derruba muita gente. Que o diga Alessandra Negrini, bombardeada pela simples decisão de usar um cocar indígena em seu lazer carnavalesco. Eis o ponto a que chegamos: editoras americanas hoje contam com o sensitivity reader — “leitor de sensibilidades” —, profissional que analisa obras a ser lançadas em busca de trechos que possam ferir suscetibilidades. Por trás da boa intenção, esconde-se algo pernicioso: a autocensura.
O linchamento de reputações em suposta defesa de causas nobres não é novo, claro: nos anos 70, o cantor Wilson Simonal foi do auge ao ostracismo pela suspeita, nunca comprovada, de que era dedo-duro da repressão militar. Hoje, os juízes-canceladores querem aplicar sua régua a personagens e eventos de outras épocas, sem considerar que são fruto de outros contextos históricos. Ou seja: criou-se a condenação retroativa, sem prescrição possível dos pecados. O clássico …E o Vento Levou, de 1939, sofre boicote por racismo, e vultos do passado tornaram-se réus. O pintor Paul Gauguin e sua obra foram atingidos pela acusação de sexismo e até pedofilia. Colombo é detonado nas redes e estátuas suas foram atacadas por simbolizar o colonialismo. Um monumento do ex-¬presidente americano Andrew Jackson (1767-1845), sulista e racista, sofreu vandalismo recente nos Estados Unidos. No Brasil, a cancelada da vez é a princesa Isabel — os mais exaltados já sugeriram que uma estátua dela no Rio fosse jogada no mar. “É óbvio que houve atuação dos próprios negros por sua libertação, mas daí a tirar os méritos da princesa só porque era branca é estupidez”, diz o historiador Paulo Rezzutti. A campanha expõe a essência do fenômeno: o que se busca são bodes expiatórios. “Ao deletar pessoas, eliminamos a causa do incômodo, deixando de tratar o assunto a sério. É muito raso só destruir”, afirma Rez¬zut¬ti. Em meio a tanto barulho, sofrimento e muitas injustiças, fica uma sugestão: cancelar a cultura do cancelamento.
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