Pular para o conteúdo principal

Reinaldo Azevedo: governo militar não funciona, com ou sem eleição

A representação à PGR de Fernando Azevedo e Silva, da Defesa, contra o ministro Gilmar Mendes, do STF, apelando à Lei de Segurança Nacional e ao Código Penal Militar, tem o odor inequívoco de república bananeira. É o general que sobrevoou a Praça dos Três Poderes num helicóptero de combate quando, em solo, fascistoides pregavam o fechamento do Congresso e do Supremo, escreve o colunista na FSP, em artigo publicado sexta, 17/7.

Os militares decidiram sair dos quartéis para colonizar o governo. A janela se abriu com a eleição de Jair Bolsonaro à esteira da razia provocada pelos desmandos da Lava Jato. O resultado é um desastre de proporções amazônicas. A institucionalidade trincada nos conduziu à terra dos mortos --desmatada e queimada. Já fiz neste espaço, no dia 10 de maio, uma exortação: voltem para os quartéis, soldados! Agora outro convite: chega de autoengano, colegas analistas!
Muitos de nós cometeram o erro de imaginar que os militares graúdos da reserva e da ativa estão com Bolsonaro para conter sua criatividade destruidora. Os fatos desmentem a esperança, que, nesse governo, deve sempre ficar de fora.
Luiz Eduardo Ramos, o general (!) da coordenação política que só agora pede passagem para a reserva, afirmou em entrevista que especular sobre golpe é "ultrajante". Mas fez uma advertência: convém não "esticar a corda". E o que seria esticá-la? Respondeu: "Um julgamento casuístico".
Em nota, presidente, vice e ministro da Defesa alertaram: "As FFAA do Brasil não cumprem ordens absurdas" e "não aceitam (...) a tomada de poder (...) por conta de julgamentos políticos". Nos dois casos, os fardados se colocam como juízes dos juízes. Isso é ultrajante.
Acabou a tutela! A democracia não é uma concessão que militares fazem a civis. A força armada existe para nos proteger, não para nos ameaçar.
Mendes teve a serena ousadia de chamar pelo nome, ainda que num exercício hiperbólico, aquilo a que se assiste no país, segundo o que define o Estatuto de Roma, que orienta os julgamentos do Tribunal Penal Internacional: genocídio.
E o Exército "se associa", verbo empregado pelo ministro, à tragédia porque à frente da Saúde está um general da ativa --Eduardo Pazuello-- cuja incompetência se conta em cadáveres: quase 80 mil.
Para os muitos exigentes em matéria de genocídio: o morticínio em massa tem cor e classe majoritárias: preta e pobre.
E lá veio a voz surda da ameaça em notas e cochichos, a exemplo do malfadado tuíte de 3 de abril de 2018, quando o então comandante do Exército, Eduardo Villas Bôas, ameaçou o STF caso concedesse o habeas corpus a Lula, o que, por 6 a 5, não aconteceu, contrariando a Constituição. Os militares ganharam balda. Conseguiram, por exemplo, um dos planos de aposentadoria mais generosos do mundo mesmo nesta terra devastada, do genocídio cordial sem hipérbole.
Mendes, na verdade, defendeu a honra do Exército, que não é propriedade dessa geração do oficialato. Como instituição permanente e regular, pertence ao povo. É preciso, se for o caso, preservá-lo do erro de alguns generais que confundem sua pantomima pessoal com a história da Força.
Não haverá golpe, não é mesmo, senhores? A tragédia da Covid-19 e a crise ambiental, que tem a Amazônia como epicentro, são, antes de tudo, desastres da gestão militar. Tornam o país pária no mundo. Golpe em nome do quê? Condecorem Mendes, que não acusou o Exército de praticar genocídio. Ele cobrou que a Força não se associe ao desastre.
Só para lembrar: Mark Milley, chefe do Estado Maior das Forças Armadas dos Estados Unidos e da máquina de guerra mais poderosa da Terra, teve a humildade de se desculpar com o povo americano por ter sido flagrado numa foto ao lado de Donald Trump, em situação política incômoda.
Quem pode se impor militarmente ao mundo se desculpa com seu povo por um ato errado. Quem é ignorado por este mesmo mundo se impõe militarmente a seu próprio povo.
Descolonizem o governo, senhores! Voltem para os quartéis e peçam desculpas aos brasileiros e às respectivas tropas. Como se nota, governo militar não funciona. Com ou sem eleição.
Reinaldo Azevedo é  jornalista, autor de “O País dos Petralhas”.



Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

No pior clube

O livro O Crepúsculo da Democracia, da escritora e jornalista norte-americana Anne Applebaum, começa numa festa de Réveillon. O local: Chobielin, na zona rural da Polônia. A data: a virada de 1999 para o ano 2000. O prato principal: ensopado de carne com beterrabas assadas, preparado por Applebaum e sua sogra. A escritora, que já recebeu o maior prêmio do jornalismo nos Estados Unidos, o Pulitzer, é casada com um político polonês, Radosław Sikorski – na época, ele ocupava o cargo de ministro do Interior em seu país. Os convidados: escritores, jornalistas, diplomatas e políticos. Segundo Applebaum, eles se definiam, em sua maioria, como “liberais” – “pró-Europa, pró-estado de direito, pró-mercado” – oscilando entre a centro-direita e a centro-esquerda. Como costuma ocorrer nas festas de Réveillon, todos estavam meio altos e muito otimistas em relação ao futuro. Todos, é claro, eram defensores da democracia – o regime que, no limiar do século XXI, parecia ser o destino inevitável de toda

Abaixo o cancelamento

A internet virou o novo tribunal da inquisição — e isso é péssimo Só se fala na rapper Karol Conká, que saiu do BBB, da Rede Globo, com a maior votação da história do programa. Rejeição de 99,17% não é pouca coisa. A questão de seu comportamento ter sido odioso aos olhos do público não é o principal para mim. Sou o primeiro a reconhecer que errei muitas vezes. Tive atitudes pavorosas com amigos e relacionamentos, das quais me arrependo até hoje. Se alguma das vezes em que derrapei como ser humano tivesse ido parar na internet, o que aconteceria? Talvez tivesse de aprender russo ou mandarim para recomeçar a carreira em paragens distantes. Todos nós já fizemos algo de que não nos orgulhamos, falamos bobagem, brincadeiras de mau gosto etc… Recentemente, o ator Armie Hammer, de Me Chame pelo Seu Nome, sofreu acusações de abuso contra mulheres. Finalmente, através do print de uma conversa, acabou sendo responsabilizado também por canibalismo. Pavoroso. Tudo isso foi parar na internet. Ergue

OCDE e o erro do governo na gestão das expectativas

O assunto do dia nas redes é a tal negativa dos Estados Unidos para a entrada do Brasil na OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico). Enquanto os oposicionistas aproveitam para tripudiar, os governistas tentam colocar panos quentes na questão, alegando que não houve propriamente um veto à presença do Brasil no clube dos grandes, a Série A das nações. Quem trabalha com comunicação corporativa frequentemente escuta a frase "é preciso gerenciar a expectativa dos clientes". O problema todo é que o governo do presidente Bolsonaro vendeu como grande vitória a entrada com apoio de Trump - que não era líquida e certa - do país na OCDE. Ou seja, gerenciou mal a expectativa do cliente, no caso, a opinião pública brasileira. Não deixa de ser irônico que a Argentina esteja entrando na frente, logo o país vizinho cujo próximo governo provavelmente não será dos mais alinhados a Trump. A questão toda é que o Brasil não "perdeu", como o pobre Fla-Flu que impe