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Trump incita divisão na véspera do 4 de julho e denuncia o novo fascismo da extrema esquerda

Amanda Mars escreve, de Washington, excelente matéria sobre o 4 de julho nos EUA, vale a leitura, íntegra a seguir.

Donald Trump lançou na véspera deste 4 de julho um discurso furioso em que acusou a “extrema esquerda norte-americana” de ter se transformado no “novo fascismo”, que tentaria acabar com a liberdade e os valores dos Estados Unidos. Num momento crítico para a nação, com a pior pandemia em um século, uma grave crise econômica e grandes mobilizações contra o racismo, o presidente incentivou a polarização durante um ato multitudinário no Monte Rushmore (Dakota do Sul), o famoso parque nacional que abriga as efígies de presidentes esculpidas nas rochas das Colinas Negras. O evento na noite de sexta já havia começado envenenado e duplamente polêmico, pois o local significa uma afronta para os nativos americanos e sua realização, um risco em meio à pandemia. Quando Trump segurou o microfone, veio a enxurrada.
“Em nossas escolas, nossas redações e até em nossos conselhos de administração, há um novo fascismo de extrema esquerda que pede lealdade absoluta. Se você não fala o idioma deles, não pratica seus rituais, não recita seus mantras e não segue seus mandamentos, será censurado, perseguido e castigado”, disse o republicano ante um público fiel, que o interrompia às vezes com o grito “USA”. Trump atacou as “turbas raivosas que tentam derrubar as estátuas dos fundadores”, em referência às últimas mobilizações contra as estátuas e monumentos que homenageiam as figuras do passado supremacista ou colonial. Em seguida, alertou contra a “revolução cultural da esquerda criada para derrocar a revolução norte-americana”
O presidente chegou às celebrações do Dia da Independência após um junho horribilis. Ao crescimento dos casos de coronavírus somou-se a explosão social contra o racismo e sua queda nas pesquisas. Nos protestos contra alguns monumentos nacionais, no entanto, encontrou uma corda de salvamento enquanto crescem as críticas à sua gestão. Nesta sexta-feira, em meio a um grave aumento do coronavírus e com quase 130.000 mortos nas costas, Trump quase não mencionou a pandemia e concentrou a maior parte do discurso na simbologia nacional. E o fez no melhor palco possível, esse Monte Rushmore que está gravado na cultura popular de meio mundo, mas cuja história é, como a de muitas obras colossais, uma história de dor.
Para construí-lo, o Governo dos EUA tomou as terras da tribo sioux, cuja soberania sobre elas era reconhecida desde um tratado de 1868. As obras, entalhadas entre 1927 e 1841, significaram também uma profanação para os indígenas, que consideravam o lugar sagrado. As esculturas representam os pais da pátria para o norte-americano médio, mas também um passado que muitos descendentes dos marginalizados não gostam de celebrar. George Washington (presidente de 1789 a 1797) e Thomas Jefferson (1801-1809) foram proprietários de escravos. Abraham Lincoln (1861-1865) aboliu essa aberração, mas ordenou a execução de 38 índios sioux —a maior da história do país— durante a guerra de Dakota (1862). E de Theodore Roosevelt (1901-1909) recorda-se esta frase: “Não irei tão longe a ponto de dizer que os únicos índios bons são os índios mortos, mas 9 de cada 10 são, e não deveria investigar demais sobre o décimo”.
A tradicional rejeição dos nativos americanos ao monumento ganhou força nas últimas mobilizações. “Este monumento nunca será profanado. Estes heróis nunca serão desfigurados. Seu legado nunca, nunca será destruído”, afirmou Trump durante o discurso.
Horas antes, uma centena de manifestantes, em sua maioria nativos americanos, bloqueou uma das estradas que levam ao parque em sinal de protesto, segundo a Associated Press. A celebração havia despertado críticas por contrariar as recomendações mais básicas dos próprios assessores científicos da Casa Branca para frear os contágios da covid-19. Foi multitudinário, não se manteve a distância de segurança necessária e não se exigiu o uso de máscaras. A julgar pelas imagens da TV, estas brilharam por sua ausência, assim como no comício que o presidente realizou em Tulsa (Oklahoma) há duas semanas.
O republicano continua entrincheirado na negação ante a pandemia, apesar das evidências de aumento do surto: o número de novos contágios diários bate recordes há dois dias no país, onde cerca de 130.000 pessoas já morreram. Inclusive Estados tão alinhados com Trump na minimização da doença, como Texas, mudaram de ponto de vista. Na quinta-feira, o governador do Texas tornou obrigatório o uso de máscaras na maior parte do território. O presidente, por sua vez, insiste na mensagem de que o vírus “simplesmente desaparecerá” e evitou os pedidos de prudência ou de contenção na reabertura do país. “Acredito que vai dar certo, acho que em algum momento [o vírus] vai desaparecer, espero”, disse ele na quarta-feira à Fox. Em duas semanas, os contágios aumentaram 90% nos EUA, chegando a 2,7 milhões.
No ato desta sexta-feira, Trump quase não tocou na crise e insistiu na fortaleza norte-americana. “Diremos a verdade tal como é, sem pedir desculpas: os Estados Unidos da América são o país mais justo e excepcional que já existiu sobre a Terra”, afirmou. Após o discurso, houve fogos de artifício. Trump passará este 4 de julho em Washington, onde pronunciará outro discurso, como fez ano passado. Também se espera pirotecnia, nos sentidos literal e figurado.



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