Luís Vasconcelos e Felipe Sánchez, de Lisboa, escrevem uma excelente resenha sobre Amália, em reportagem publicada no El País em 23/7, vale a leitura, íntegra a seguir.
Um juiz de semblante impassível ordena ao tribunal que escute “uma das provas que constituem matéria de acusação contra Amália Rodrigues”. Trata-se de uma canção, Erros meus, que a rainha do fado gravara em 1965 com versos de Luís de Camões, o poeta nacional português, e música de Alain Oulman. A artista aguarda com expressão contrariada. “Acredita que esta música exprime a alma nacional?”, interroga o juiz. O cenário é o estúdio de um programa humorístico, mas a farsa se torna tensa. “Nunca tive a pretensão de exprimir a alma nacional. Exprimo a minha. A alma nacional é uma carga muito pesada para mim.”
Cem anos depois do nascimento de uma das melhores cantoras da história, celebrados neste 23 de julho, Amália da Piedade Rebordão Rodrigues (Lisboa, 1920-1999) dá a impressão de ter deixado para trás as vãs discussões ontológicas e de estar acima do bem e do mal. Foi o que disse certa vez o ex-premiê português António Guterres, hoje secretário-geral da ONU, e repetiu o atual presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa: “Amália é a voz de Portugal”.
“Não sei se canto bem o fado ou não, se sou castiça ou não, se sou boa artista ou não...”, dizia Rodrigues numa entrevista de 1967. “O que sei é que há uma sinceridade eu que sempre tive a cantar e na minha maneira de ser. Fui uma pessoa que lhes dei tudo aquilo que eu pude dar.” Vitor Pavão dos Santos, de 83 anos, amigo da fadista e autor de uma biografia canônica (Amália - Uma biografa, Contexto, 1987) concorda com ela. “Acredito que o mais especial de Amália é que sempre se entregava no canto. Não tinha truques. Cantava com uma imensa sinceridade”, salienta durante uma conversa telefônica. “Cada vez que cantava era algo diferente. Sempre criava. As pessoas sentiam essa entrega”, acrescenta.
Não há casa de fado em Lisboa em que não se veja sua imagem montada numa espécie de altar, ou onde o público não escute suas canções com o coração na mão. Há cerca de um ano, um fadista do bairro da Alfama fazia o gesto de se deprimir quando, de um canto escuro da sala, um grupo de alemães perguntava quem era Amália Rodrigues. A resposta foi taxativa: “É a máxima expressão do fado, é a rainha”. Fadistas contemporâneos como Ana Moura, Mariza, Camané e António Zambujo teriam assinado embaixo dessas palavras.
Os portugueses ainda se animam nas festas com o canto à mesa pródiga de Uma casa portuguesa (“A alegria da pobreza / está nesta grande riqueza / de dar e ficar contente”) e continuam pondo o dedo na ferida da sua proverbial melancolia com os fados da artista. Amália foi, além disso, a primeira mulher a entrar no Panteão de seu país, em 2001, dois anos depois de seu falecimento.
Só há uma mancha na imagem da cantora, a mais velha de uma prole de 10 irmãos, criada pela avó em uma família humilde, e que desde muito pequena ganhou a vida vendendo frutas, costurando roupas e trabalhando em uma fábrica de doces, até dar início à sua meteórica carreira, aos 19 anos. Trata-se da polêmica por sua suposta colaboração com a ditadura que governou o país durante quase meio século. Em 1974, ano da Revolução dos Cravos, que devolveu a democracia a Portugal, os ataques contra ela por esta questão aumentaram, e só em meados dos anos oitenta sua imagem começou a se normalizar, embora ainda restem alguns rescaldos.
No ano passado, a Prefeitura de uma cidade de Luxemburgo (país onde vivem 95.000 pessoas de origem portuguesa, ou 15% da população total) recusou uma proposta de batizar uma rua com o nome da artista. A comunidade lusitana não se pôs de acordo sobre se a ainda discutida relação de Rodrigues com o ditador António de Oliveira Salazar —não em vão se diz que o regime descansava sobre os três Fs, de fado, Fátima e família— invalidavam ou não a homenagem.
Mas neste ano uma documentadíssima biografia do jornalista Miguel Carvalho (Amália - Ditadura e revolução) encerrou definitivamente o espinhoso assunto. Apesar da ambígua relação da rainha do fado com o autocrata, em que houve uma tentativa contínua de manipulá-la com fins propagandísticos, ao que ela resistiu —embora nunca tenha criticado o Governo publicamente e tenha inclusive chegado a declarar privadamente sua admiração por Salazar—, o fato é que Amália Rodrigues não só esteve nos arquivos da polícia política como também, além disso, apoiou financeiramente a resistência comunista ao longo de sua carreira. E nunca se valeu disso para se defender das acusações de fascismo.
“Amália estava, como se diz, com Deus e com o Diabo. Embora não houvesse da parte dela um compromisso ideológico com os comunistas (era claramente conservadora e católica), para ela era muito importante a defesa da dignidade humana”, explica o biógrafo Miguel Carvalho
“Amália estava, como se diz, com Deus e com o Diabo”, observa Carvalho em uma videoconferência. “Embora não houvesse da parte dela um compromisso ideológico com os comunistas —era claramente conservadora e católica—, para Amália era muito importante a defesa da dignidade humana”.
A cantora se criou desde os nove anos no bairro operário de Alcântara, um dos focos da resistência antissalazarista, e durante sua infância foi testemunha da perseguição aos inimigos da ditadura, seus vizinhos, inclusive alguns com os quais manteria amizade por toda a vida, como detalha a pesquisa de Carvalho. Embora a humilde família Rebordão Rodrigues fosse admiradora de Salazar e pertencesse a um setor da sociedade portuguesa que o via como o salvador do país contra o caos que sobreveio depois da proclamação da República, Amália nunca se fez de surda ao clamor dos oprimidos. Pertencia ao mundo deles. Daí sua ambiguidade.
“Sua casa em Lisboa era um centro de conspiração”, afirma Carvalho. Além disso, a artista interpretou canções com letras de poetas perseguidos, que por sua vez também foram censuradas. “Há um fado em particular, Abandono, com letra do poeta David Mourão-Ferreira, que tem um claro conteúdo político. É conhecido como o Fado do Peniche, pelo nome da cadeia onde esteve preso, entre outros, Álvaro Cunhal, histórico secretário-geral do Partido Comunista. Ela sempre negou em público que a canção tivesse conotações políticas, mas reservadamente admitiu”, explica Carvalho. A letra elimina qualquer dúvida: “Por teu livre pensamento / Foram-te longe encerrar / Tão longe que o meu lamento / Não te consegue alcançar / E apenas ouves o vento”.
O encanto de suas interpretações deslumbrou admiradores de todos os cantos do planeta. “Fiquei impressionado quando a escutei pela primeira vez”, recorda David Byrne, ex-vocalista dos Talking Heads, no documentário A arte de Amália (2000). “Era como se aqueles fados falassem sobre a tristeza do universo, não só sobre uma pena pessoal ou sobre alguma tragédia na vida da intérprete ou do autor da canção. O que ela expressava era a tristeza da existência.”
Também o escritor argentino Jorge Luis Borges, bisneto de um português, afligia-se com sua música. Conta Adolfo Bioy Casares que o autor de Ficções disse após escutá-la certo dia, em 1965: “Cada vez que a gente gosta de uma coisa, acredita que a beleza fica esgotada. Mas tinha razão [o poeta espanhol Rafael] Cansinos ao pedir a Deus que não houvesse tanta beleza”.
Um juiz de semblante impassível ordena ao tribunal que escute “uma das provas que constituem matéria de acusação contra Amália Rodrigues”. Trata-se de uma canção, Erros meus, que a rainha do fado gravara em 1965 com versos de Luís de Camões, o poeta nacional português, e música de Alain Oulman. A artista aguarda com expressão contrariada. “Acredita que esta música exprime a alma nacional?”, interroga o juiz. O cenário é o estúdio de um programa humorístico, mas a farsa se torna tensa. “Nunca tive a pretensão de exprimir a alma nacional. Exprimo a minha. A alma nacional é uma carga muito pesada para mim.”
Cem anos depois do nascimento de uma das melhores cantoras da história, celebrados neste 23 de julho, Amália da Piedade Rebordão Rodrigues (Lisboa, 1920-1999) dá a impressão de ter deixado para trás as vãs discussões ontológicas e de estar acima do bem e do mal. Foi o que disse certa vez o ex-premiê português António Guterres, hoje secretário-geral da ONU, e repetiu o atual presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa: “Amália é a voz de Portugal”.
“Não sei se canto bem o fado ou não, se sou castiça ou não, se sou boa artista ou não...”, dizia Rodrigues numa entrevista de 1967. “O que sei é que há uma sinceridade eu que sempre tive a cantar e na minha maneira de ser. Fui uma pessoa que lhes dei tudo aquilo que eu pude dar.” Vitor Pavão dos Santos, de 83 anos, amigo da fadista e autor de uma biografia canônica (Amália - Uma biografa, Contexto, 1987) concorda com ela. “Acredito que o mais especial de Amália é que sempre se entregava no canto. Não tinha truques. Cantava com uma imensa sinceridade”, salienta durante uma conversa telefônica. “Cada vez que cantava era algo diferente. Sempre criava. As pessoas sentiam essa entrega”, acrescenta.
Não há casa de fado em Lisboa em que não se veja sua imagem montada numa espécie de altar, ou onde o público não escute suas canções com o coração na mão. Há cerca de um ano, um fadista do bairro da Alfama fazia o gesto de se deprimir quando, de um canto escuro da sala, um grupo de alemães perguntava quem era Amália Rodrigues. A resposta foi taxativa: “É a máxima expressão do fado, é a rainha”. Fadistas contemporâneos como Ana Moura, Mariza, Camané e António Zambujo teriam assinado embaixo dessas palavras.
Os portugueses ainda se animam nas festas com o canto à mesa pródiga de Uma casa portuguesa (“A alegria da pobreza / está nesta grande riqueza / de dar e ficar contente”) e continuam pondo o dedo na ferida da sua proverbial melancolia com os fados da artista. Amália foi, além disso, a primeira mulher a entrar no Panteão de seu país, em 2001, dois anos depois de seu falecimento.
Só há uma mancha na imagem da cantora, a mais velha de uma prole de 10 irmãos, criada pela avó em uma família humilde, e que desde muito pequena ganhou a vida vendendo frutas, costurando roupas e trabalhando em uma fábrica de doces, até dar início à sua meteórica carreira, aos 19 anos. Trata-se da polêmica por sua suposta colaboração com a ditadura que governou o país durante quase meio século. Em 1974, ano da Revolução dos Cravos, que devolveu a democracia a Portugal, os ataques contra ela por esta questão aumentaram, e só em meados dos anos oitenta sua imagem começou a se normalizar, embora ainda restem alguns rescaldos.
No ano passado, a Prefeitura de uma cidade de Luxemburgo (país onde vivem 95.000 pessoas de origem portuguesa, ou 15% da população total) recusou uma proposta de batizar uma rua com o nome da artista. A comunidade lusitana não se pôs de acordo sobre se a ainda discutida relação de Rodrigues com o ditador António de Oliveira Salazar —não em vão se diz que o regime descansava sobre os três Fs, de fado, Fátima e família— invalidavam ou não a homenagem.
Mas neste ano uma documentadíssima biografia do jornalista Miguel Carvalho (Amália - Ditadura e revolução) encerrou definitivamente o espinhoso assunto. Apesar da ambígua relação da rainha do fado com o autocrata, em que houve uma tentativa contínua de manipulá-la com fins propagandísticos, ao que ela resistiu —embora nunca tenha criticado o Governo publicamente e tenha inclusive chegado a declarar privadamente sua admiração por Salazar—, o fato é que Amália Rodrigues não só esteve nos arquivos da polícia política como também, além disso, apoiou financeiramente a resistência comunista ao longo de sua carreira. E nunca se valeu disso para se defender das acusações de fascismo.
“Amália estava, como se diz, com Deus e com o Diabo. Embora não houvesse da parte dela um compromisso ideológico com os comunistas (era claramente conservadora e católica), para ela era muito importante a defesa da dignidade humana”, explica o biógrafo Miguel Carvalho
“Amália estava, como se diz, com Deus e com o Diabo”, observa Carvalho em uma videoconferência. “Embora não houvesse da parte dela um compromisso ideológico com os comunistas —era claramente conservadora e católica—, para Amália era muito importante a defesa da dignidade humana”.
A cantora se criou desde os nove anos no bairro operário de Alcântara, um dos focos da resistência antissalazarista, e durante sua infância foi testemunha da perseguição aos inimigos da ditadura, seus vizinhos, inclusive alguns com os quais manteria amizade por toda a vida, como detalha a pesquisa de Carvalho. Embora a humilde família Rebordão Rodrigues fosse admiradora de Salazar e pertencesse a um setor da sociedade portuguesa que o via como o salvador do país contra o caos que sobreveio depois da proclamação da República, Amália nunca se fez de surda ao clamor dos oprimidos. Pertencia ao mundo deles. Daí sua ambiguidade.
“Sua casa em Lisboa era um centro de conspiração”, afirma Carvalho. Além disso, a artista interpretou canções com letras de poetas perseguidos, que por sua vez também foram censuradas. “Há um fado em particular, Abandono, com letra do poeta David Mourão-Ferreira, que tem um claro conteúdo político. É conhecido como o Fado do Peniche, pelo nome da cadeia onde esteve preso, entre outros, Álvaro Cunhal, histórico secretário-geral do Partido Comunista. Ela sempre negou em público que a canção tivesse conotações políticas, mas reservadamente admitiu”, explica Carvalho. A letra elimina qualquer dúvida: “Por teu livre pensamento / Foram-te longe encerrar / Tão longe que o meu lamento / Não te consegue alcançar / E apenas ouves o vento”.
O encanto de suas interpretações deslumbrou admiradores de todos os cantos do planeta. “Fiquei impressionado quando a escutei pela primeira vez”, recorda David Byrne, ex-vocalista dos Talking Heads, no documentário A arte de Amália (2000). “Era como se aqueles fados falassem sobre a tristeza do universo, não só sobre uma pena pessoal ou sobre alguma tragédia na vida da intérprete ou do autor da canção. O que ela expressava era a tristeza da existência.”
Também o escritor argentino Jorge Luis Borges, bisneto de um português, afligia-se com sua música. Conta Adolfo Bioy Casares que o autor de Ficções disse após escutá-la certo dia, em 1965: “Cada vez que a gente gosta de uma coisa, acredita que a beleza fica esgotada. Mas tinha razão [o poeta espanhol Rafael] Cansinos ao pedir a Deus que não houvesse tanta beleza”.
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