Pular para o conteúdo principal

Época: os bastidores do filme que fez as pazes do cinema nacional com o público

Não havia um dia que em que Matheus Nachtergaele saísse de casa – antes da quarentena chegar – que não fosse interpelado na rua por conta de seu personagem de “O Auto da Compadecida”. “É um sorriso que eu sei que é para o João Grilo”, explica, durante conversa por telefone com a Época, enquanto terminava de preparar o almoço em sua casa, no Rio de Janeiro. “Todos os dias eu lembro do João Grilo, todos os dias eu penso no Selton, no Guel, no Ariano. É um fato que me acompanha”. O filme, com direção de Guel Arraes e nomes como Selton Mello, Fernanda Montenegro, Denise Fraga e Marco Nanini, estreou nos cinemas em setembro de 2000 com a segunda maior bilheteria nacional na época. Vinte anos após sua estreia, ele foi exibido nesta quinta-feira (e com reprise neste sábado), no Canal Brasil, seguido de debate com a apresentadora Andreia Horte e a atriz Virgínia Cavendish, que interpreta a Rosinha no longa. A homenagem será o episódio de estreia da quinta temporada do programa “O País do Cinema”, que já levou mais de 110 filmes e 234 convidados entre realizadores, produtores e atores, escreve Denise Meira do Amaral no site da revista Época. Continua a seguir.
“O ‘Auto’ é um filme que definitivamente fez as pazes do público com o cinema nacional. Foi fruto do amor que nós estávamos renovando por nós mesmos naquele momento.  Foi a coroação desse enamoramento e que perdurou por bastante tempo, até as coisas obscuras virem à tona”, diz Matheus. Ele lembra a rotina pesada de ensaios e de gravação, além de uma pasta com uma bibliografia extensa de textos que o Guel Arraesenviou a ele.
“Eu estudava muito, não só Ariano Suassuna (autor da peça original), mas também sobre o arlequim, desde a sua origem. Ensaiamos um mês. Tudo foi muito decupado. A Globo investiu pouco dinheiro e foi filmado em película, só com uma câmera. Minhas lembranças são do elenco e da equipe absolutamente dedicados.Era uma honra, mas também uma grande responsabilidade e com pouco tempo de descanso. Começávamos o dia às cinco da manhã e na hora de dormir tinha que decorar o dia seguinte”.
Matheus conta que durante as filmagens em Cabaceiras, na Paraíba, um homem da mesma estatura e parecido com seu personagem passou a acompanhá-lo diariamente. “Ele se chamava Uivo Ferreira e grudou em mim. Era a personificação do meu personagem. Tinha tudo o que tinha planejado para o João Grilo: rápido, safado, criativo, inteligente. Ele me entretinha coma histórias do local, e em troca, jantava de graça comigo”.
Mexendo em suas gavetas durante a entrevista, Matheus encontrou um álbum recheado de fotos de bastidores da época. E enviou algumas selfies, como essa dele com Uivo.
“Acredito que esse filme é muito aclamado porque o brasileiro se vê representado. São estruturas muito claras e constantes na nossa sociedade: tem o jogo de interesse dos políticos, a hipocrisia do clero, o racismo, o pobre que não tem patrão e que se vira como dá”, diz Andreia Horta, que está à frente do “O País do Cinema” pela terceira temporada,após substituir Fabíula Nascimento nas duas primeiras edições.
A apresentadora, que também é atriz e tem feito sucesso nas redes durante essa quarentena participando de lives sobre cinema e poesias, é uma defensora ferrenha do cinema nacional.
“O programa é um retrato de quanto o cinema brasileiro produziu e produz. Estamos enfrentando a maior crise do cinema nacional dos últimos 30 anos, desde o plano Collor. Já são um ano e meio de uma erosão da máquina pública, de um desmonte, de fata de recursos públicos e pior, de uma falta de planejamento, de perspectiva. Ninguém sabe o que vai ser ou como vai se organizar, não se fala sobre o assunto”.
Andreia ainda relembra que há uma enorme quantidade de profissionais do meio que estão desempregados, gerando uma crise de proporções gigantescas após o início da quarentena e das paralisações das filmagens e produções audiovisuais. “Falar sobre os filmes é sim uma maneira de resistir, mas é também uma luz acesa sobre a produção constante e vibrante do cinema nacional”, defende Andreia.
“O mais importante para mim é poder celebrar e debater o cinema brasileiro num momento de imensa crise de produção, com um ano e meio sem nenhum recurso público direto, nenhum plano ou perspectiva e paralisação do Fundo Setorial. Isso sem falar na pandemia, nas salas fechadas. Chegamos a cinco anos seguidos discutindo nossos filmes de todos os tempos”, diz Marcello Maia, diretor de “O País do Cinema” e dono de uma das produtoras mais cults do Rio de Janeiro, a República Pureza Filmes, tendo produzido filmes como “Piedade”, “Domingo”, “Um Beijo no Asfalto”, “Três Verões”, “A Erva do Rato” e “Amarelo Manga”.
Para Matheus, as pessoas estão refletindo mais durante o isolamento social e percebendo uma tristeza com o que o Brasil fez com si próprio. “Mais do que nunca, nós, artistas, vamos ser depositório do desejo de liberdade e do elogio da cultura brasileira. A quarentena vai criar novas formas de expressão. Ela vai fazer com que os filmes após a pandemia e após a perseguição com a cultura acabar sejam muito mais consequentes e felizes. Afinal, estamos com muitas saudades de nos encontrar para filmar”.
Pela primeira vez, o “O País do Cinema” vai exibir os filmes antes do debate. O programa pode ser visto também no Canal Brasil Play. No dia seguinte à exibição no canal linear, o programa pode ser assistido no Canal Brasil Play ou ouvido, em formato de Podcast, em plataformas como Spotify e Apple Podcast.
O País do Cinema
Estreia: quinta, dia 02/07, à meia-noite.
Reprise: sábado, às 13h e quarta, às 7h
Classificação: 14 anos


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Um pai

Bruno Covas, prefeito de São Paulo, morreu vivendo. Morreu criando novas lembranças. Morreu não deixando o câncer levar a sua vontade de resistir.  Mesmo em estado grave, mesmo em tratamento oncológico, juntou todas as suas forças para assistir ao jogo do seu time Santos, na final da Libertadores, no Maracanã, ao lado do filho.  Foi aquela loucura por carinho a alguém, superando o desgaste da viagem e o suor frio dos remédios.  Na época, ele acabou criticado nas redes sociais por ter se exposto. Afinal, o que é o futebol perto da morte?  Nada, mas não era somente futebol, mas o amor ao seu adolescente Tomás, de 15 anos, cultivado pela torcida em comum. Não vibravam unicamente pelos jogadores, e sim pela amizade invencível entre eles, escreve Fabrício Carpinejar em texto publicado nas redes sociais. Linda homenagem, vale muito a leitura, continua a seguir.  Nos noventa minutos, Bruno Covas defendia o seu legado, a sua memória antes do adeus definitivo, para que s...

Dica da Semana: Tarso de Castro, 75k de músculos e fúria, livro

Tom Cardoso faz justiça a um grande jornalista  Se vivo estivesse, o gaúcho Tarso de Castro certamente estaria indignado com o que se passa no Brasil e no mundo. Irreverente, gênio, mulherengo, brizolista entusiasmado e sobretudo um libertário, Tarso não suportaria esses tempos de ascensão de valores conservadores. O colunista que assina esta dica decidiu ser jornalista muito cedo, aos 12 anos de idade, justamente pela admiração que nutria por Tarso, então colunista da Folha de S. Paulo. Lia diariamente tudo que ele escrevia, nem sempre entendia algumas tiradas e ironias, mas acompanhou a trajetória até sua morte precoce, em 1991, aos 49 anos, de cirrose hepática, decorrente, claro, do alcoolismo que nunca admitiu tratar. O livro de Tom Cardoso recupera este personagem fundamental na história do jornalismo brasileiro, senão pela obra completa, mas pelo fato de ter fundado, em 1969, o jornal Pasquim, que veio a se transformar no baluarte da resistência à ditadura militar no perío...

Dica da semana: Nine Perfect Strangers, série

Joia no Prime traz drama perturbador que consagra Nicole Kidman  Dizer que o tempo não passou para Nicole Kidman seria tão leviano quanto irresponsável. E isso é bom. No charme (ainda fatal) de seus 54 anos, a australiana mostra que tem muita lenha para queimar e escancara o quanto as décadas de experiência lhe fizeram bem, principalmente para composição de personagens mais complexas e maduras. Nada de gatinhas vulneráveis. Ancorando a nova série Nine Perfect Strangers, disponível na Amazon Prime Video, a eterna suicide blonde de Hollywood – ok, vamos dividir o posto com Sharon Stone – empresta toda sua aura de diva para dar vida à mística Masha, uma espécie de guru dos novos tempos que desenvolveu uma técnica terapêutica polêmica, pouco acessível e para lá de exclusiva. Em um lúdico e misterioso retiro, a “Tranquillum House”, a exotérica propõe uma nova abordagem de tratamento para condições mentais e psicossociais manifestadas de diferentes formas em cada um dos nove estranhos, “...