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Helio Gurovitz: o vento sopra contra os monopólios digitais

A aprovação, pelo Senado, de um novo projeto de lei cuja pretensão é deter a disseminação de notícias falsas pôs em debate a regulação dos meios digitais no Brasil. Ao mesmo tempo, o Facebook enfrenta nos Estados Unidos um boicote histórico de mais de 800 anunciantes, incluindo gigantes como Unilever, Starbucks, Ford, Coca-Cola e Adidas. É possível até debater a eficácia do boicote ou o conteúdo da nova lei brasileira. É indiscutível, contudo, que o vento hoje sopra contra os monopólios digitais, Facebook, Google e Amazon. O melhor a que podem almejar, aqui e lá fora, é a manutenção do statu quo — algo não apenas longe de garantido, mas a cada dia menos provável. Entre os vários protagonistas dessa virada de ânimos, destaca-se o investidor do Vale do Silício Roger McNamee. Mentor de Mark Zuckerberg no início do Facebook, ele manteve uma visão idílica dos riscos representados pelos monopólios digitais até o plebiscito do Brexit e a eleição de Donald Trump, em 2016. De lá para cá, converteu-se num dos críticos mais eloquentes e eficazes de Zuckerberg, escreve o colunista da revista Época, em artigo publicado na edição desta semana da revista.

“Não percebi que a ambição de Zuck não tinha limite. Não me dei conta de que seu foco no software como solução para todo problema o cegaria para o custo humano do sucesso descomunal do Facebook”, escreve McNamee em Zucked, relato pessoal instigante de sua conversão de aliado em inimigo de Zuckerberg. No livro, ele explica como as mesmas características responsáveis pelo sucesso da empresa também a tornaram perigosa. “Quando usuários prestam atenção, o Facebook chama isso de ‘engajamento’, mas o objetivo é a mudança de comportamento que torna os anúncios mais valiosos”, afirma. “Os incentivos econômicos levam a empresa a se alinhar — com frequência de modo inconsciente — com extremistas e autoritários, em detrimento da democracia no mundo todo.” Não é coincidência, portanto, que Zuckerberg tenha se aproximado tanto de Trump recentemente, nem que tenha adotado uma atitude benevolente em relação a políticos.
Como investidor, McNamee não tem nada contra o sucesso financeiro, nem contra um produto que atinja bilhões de pessoas. Ao contrário. “A Coca-Cola serve 1,9 bilhão de bebidas por dia em 200 países”, diz. “Mas a Coca-Cola não influencia eleições, nem incentiva o discurso de ódio que leva à violência.” A atitude do Facebook, a cada momento que vieram a público violações de privacidade ou de manipulação política, sempre foi a mesma: primeiro negar e, apenas diante de fatos incontornáveis, desculpar-se. Depois, promover mudanças perfunctórias que, na prática, pouco efeito têm. Nas palavras da pesquisadora Zeynep Tufekci, Zuckerberg vive, desde os bancos de Harvard, uma “turnê de catorze anos de pedidos de desculpas”. Os usuários não abandonam plataformas como Facebook, Instagram ou WhatsApp porque são úteis e convenientes. Não imaginam que podem ser “vítimas de manipulação, violação de dados ou interferência eleitoral”. É por isso que McNamee não vê outra solução que não seja a regulação mais dura, possivelmente nos moldes da que vem sendo adotada na União Europeia.
Como alguém com décadas de experiência avaliando startups digitais, ele não se deixa intimidar pela aparente complexidade técnica que cerca o tema, em geral apenas um pretexto alegado pelos monopólios para que tudo fique como está. “Uma vez que você supere os chavões, a tecnologia não é particularmente complicada em comparação com outras indústrias reguladas pelo Congresso, como saúde ou finanças.” Nem se furta a apontar a questão essencial que deveria nortear toda regulação:
A mesma lógica vale para YouTube, Twitter e tantos outros que se apresentam como meros intermediários de informação. “Chegará o dia em que o mundo reconhecerá que o valor que os usuários recebem da revolução dominada pelas redes sociais escondeu um desastre absoluto para a democracia, a saúde pública, a privacidade e a economia.”
ZUCKED — WAKING UP TO THE FACEBOOK CATASTROPHE
Roger McNamee, Penguin
2020 | 400 páginas | US$ 18


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