Pular para o conteúdo principal

De Zola ao clã Bolsonaro, os artigos e ações contra os gabinetes do ódio

Publicado em janeiro de 1898 na primeira página do L’Aurore, “J’Accuse” é um dos artigos de jornal mais influentes da história da imprensa. A carta aberta do escritor Émile Zola ao presidente Félix Faure é tida por um monumento de coragem moral e desassombro político. A repercussão na época foi bem outra. No dia seguinte à sua publicação, milhares de pessoas tomaram as ruas das maiores cidades francesas. Multidões acossaram judeus, depredaram suas lojas e atacaram sinagogas. “Morte aos traidores!”, gritavam, escreve Mario Sergio Conti em sua sempre imperdível coluna na Folha de São Paulo. Continua abaixo.

O artigo saiu três dias depois do comandante Ferdinand Esterhazy, o verdadeiro culpado da traição atribuída ao capitão Alfred Dreyfus, judeu, ser inocentado pelo Conselho de Guerra. Encarregados de coibir os pogroms, os policiais confraternizaram com os antissemitas.
Quem leu “Proust Among the Nations”, o livro de Jacqueline Rose sobre o caso Dreyfus, lembrou-se dele quando das arruaças de rua promovidas por Bolsonaro, seus generais, milícias e PMs. Com a diferença que a violência política na França foi física. No Brasil, ela é mais verbal —por ora. O que liga lá e cá é o ódio.
Uma semana depois do artigo no L’Aurore, que vendeu 300 mil exemplares, estudantes e aspirantes a artista circularam um abaixo-assinado. Solidarizavam-se com Zola, que foi processado, e pediam a revisão do julgamento de Esterhazy.
Centenas de escritores, pintores e músicos aderiram ao manifesto. Ele fez com que a palavra intelectual adquirisse o seu sentido moderno. Entre os que colheram assinaturas estava um grã-fino de 26 anos que não sabia bem o que fazer da vida, Marcel Proust.
Ele foi a diversas sessões do julgamento de Zola. Levava sanduíches para não ter que sair para comer e perder um lance importante. Existencialmente, sua adesão à causa de Dreyfus foi difícil. Sua mãe era judia e o pai, católico. Pela tradição, era judeu, mas fora batizado.
Seu pai e seu irmão achavam que Dreyfus era culpado. Já o bigodudinho Marcel militou para provar a inocência do oficial condenado. Sua mãe, simpática ao capitão, punha panos quentes na cizânia familiar.
Proust não se mobilizou pela inocência do capitão porque fosse judeu. Agnóstico, acreditava no dever moral de se bater pela justiça. O caso Dreyfus foi capital para o seu entendimento da França. Por isso ele ocupa tantas páginas —inesquecíveis— em “À Procura do Tempo Perdido”.
Proust constatou que o país estava dividido e o ódio se espraiara. A ponto de, numa carta, perguntar a um amigo: “E quanto a nós, temos também o direito de odiar?”.
Gabinete do Ódio é uma expressão precisa: combina burocratismo frio com agressividade perversa e desabrida. É essa a história do clã Bolsonaro, que por décadas parasitou o Estado. Ele entreteceu rachadinhas e milícias para compor uma rede bandida que espalha mentiras. O “se dar bem” se mesclou ao irracionalismo ideológico.
A raiz da ideologia do clã é a mesma do antissemitismo: cria bodes expiatórios fantasmagóricos e se move para massacrá-los. A operação é presidida pela indiferença ao sofrimento imposto aos outros indiferença que, em “Tempo Perdido”, Proust diz ser “a mais terrível e duradoura forma de crueldade”.
Dreyfus não foi o protagonista de um erro judiciário; foi vítima de uma armação urdida pelo comando do Exército. A energia que a pôs em marcha foi a da crueldade do Gabinete do Ódio antissemita, disseminado na sociedade francesa.
Assim como Zola, o capitão foi inocentado. Readmitido no Exército, lutou na Primeira Guerra Mundial e ganhou a Legião de Honra. Salvou-se graças a um punhado de heróis: Zola, o coronel Picquard, que desmontou a fraude, e, com os meios que tinham, Proust e seus amigos.
A história continuou e se complicou. O caso Dreyfus convenceu Theodor Herzl, vivendo em Paris, que a emancipação dos judeus era impossível —teriam que criar um país para se protegerem do antissemitismo. Começou a agitação sionista.
Veio a Segunda Guerra e a catástrofe do genocídio judaico. A viúva de Dreyfus, Lucie, teve que mudar de nome aos 73 anos e viver escondida. Matilde, sua neta que ajudava a Cruz Vermelha, foi capturada pelo governo francês e entregue aos nazistas, morrendo em Auschwitz. A criação de Israel, diz Jacqueline Rose, levou à catástrofe de outro povo, o palestino.
O que se fizer contra Gabinete do Ódio do clã Bolsonaro terá consequências duradouras e inesperadas. Mas a sua queda será decisiva para que a justiça e a verdade obtenham uma vitória.
Mario Sergio Conti é jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".



Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Abaixo o cancelamento

A internet virou o novo tribunal da inquisição — e isso é péssimo Só se fala na rapper Karol Conká, que saiu do BBB, da Rede Globo, com a maior votação da história do programa. Rejeição de 99,17% não é pouca coisa. A questão de seu comportamento ter sido odioso aos olhos do público não é o principal para mim. Sou o primeiro a reconhecer que errei muitas vezes. Tive atitudes pavorosas com amigos e relacionamentos, das quais me arrependo até hoje. Se alguma das vezes em que derrapei como ser humano tivesse ido parar na internet, o que aconteceria? Talvez tivesse de aprender russo ou mandarim para recomeçar a carreira em paragens distantes. Todos nós já fizemos algo de que não nos orgulhamos, falamos bobagem, brincadeiras de mau gosto etc… Recentemente, o ator Armie Hammer, de Me Chame pelo Seu Nome, sofreu acusações de abuso contra mulheres. Finalmente, através do print de uma conversa, acabou sendo responsabilizado também por canibalismo. Pavoroso. Tudo isso foi parar na internet. Ergue...

Rogério Andrade, o rei do bicho

No dia 23 de novembro do ano passado, o pai de Rodrigo Silva das Neves, cabo da Polícia Militar do Rio de Janeiro, foi ao batalhão da PM de Bangu, na Zona Oeste carioca, fazer um pedido. O homem, um subtenente bombeiro reformado, queria que os policiais do quartel parassem de bater na porta de sua casa à procura do filho — cuja prisão fora decretada na semana anterior, sob a acusação de ser um dos responsáveis pelo assassinato cinematográfico do bicheiro Fernando Iggnácio, executado com tiros de fuzil à luz do dia num heliporto da Barra da Tijuca. Quando soube que estava sendo procurado, o PM fugiu, virou desertor. Como morava numa das maiores favelas da região, a Vila Aliança, o pai de Neves estava preocupado com “ameaças e cobranças” de traficantes que dominam o local por causa da presença frequente de policiais. Antes de sair, no entanto, o bombeiro confidenciou aos agentes do Serviço Reservado do quartel que, “de fato, seu filho trabalhava como segurança do contraventor Rogério And...

No pior clube

O livro O Crepúsculo da Democracia, da escritora e jornalista norte-americana Anne Applebaum, começa numa festa de Réveillon. O local: Chobielin, na zona rural da Polônia. A data: a virada de 1999 para o ano 2000. O prato principal: ensopado de carne com beterrabas assadas, preparado por Applebaum e sua sogra. A escritora, que já recebeu o maior prêmio do jornalismo nos Estados Unidos, o Pulitzer, é casada com um político polonês, Radosław Sikorski – na época, ele ocupava o cargo de ministro do Interior em seu país. Os convidados: escritores, jornalistas, diplomatas e políticos. Segundo Applebaum, eles se definiam, em sua maioria, como “liberais” – “pró-Europa, pró-estado de direito, pró-mercado” – oscilando entre a centro-direita e a centro-esquerda. Como costuma ocorrer nas festas de Réveillon, todos estavam meio altos e muito otimistas em relação ao futuro. Todos, é claro, eram defensores da democracia – o regime que, no limiar do século XXI, parecia ser o destino inevitável de toda...