Quando as vítimas da pandemia passaram de 5 mil, no dia 28
de abril de 2020, Jair Bolsonaro foi a um estande de tiro. No dia em que
chegamos aos 10 mil mortos, ele passeou de jet ski no Lago Paranoá. Na
cerimônia em que concedeu a Ordem do Mérito Naval a Abraham Weintraub e Augusto
Aras, o país havia superado os 25 mil óbitos. Dois dias depois ele andou a
cavalo no meio de seus apoiadores. Dali a poucas horas, quase 30 mil
brasileiros já não estariam vivos por causa da doença. O presidente desconfiou
dos hospitais quando os registros contabilizaram 40 mil mortos: “Arranja uma
maneira de entrar e filmar”, comandou. E no fim de semana em que a conta da
nossa tragédia chegou a 50 mil vidas perdidas, ele ajudou Weintraub a enganar a
imigração americana, escreve o editor da revista Piauí em artigo que marcou a
semana, o mês. Continua abaixo.
Variações do parágrafo acima vêm sendo publicadas a toda
hora na imprensa. Seria impossível não reparar no óbvio: em nenhum momento da
tragédia o presidente articulou uma frase de pesar verdadeiro. Não houve nem
esforço de marketing político para demonstrar que se compadecia dos que estavam
sofrendo. O presidente é honesto. Uma das frases mais sinceras da história
política brasileira é a breve: “E daí?” Há muitas outras – “Eu não sou
coveiro”, “Quer que eu faça o quê?”, “É o destino de cada um” –, mas nenhuma
tem a concisão aforística de “E daí?”. Nenhum substantivo, nenhum adjetivo,
nenhum verbo. Os mortos, os doentes, os que perderam pais, mães, filhos e
amigos, os que diariamente vão para a linha de frente salvar vidas – uma
locução adverbial de quatro letras dá conta de tudo que o presidente tem a lhes
dizer.
No início de junho, uma apoiadora de Bolsonaro que o
esperava na saída do Palácio da Alvorada mencionou a catástrofe sanitária e
pediu “uma palavra de conforto nesse momento”. O presidente voltou a ser
honesto. “Pode ter fé e acreditar que a gente vai mudar o Brasil”, respondeu,
infenso à compaixão. A apoiadora insistiu: “E para os enlutados, que são
inúmeros, o que o senhor diria?” Não disse absolutamente nada, ou ao menos nada
que pudesse trazer algum conforto a quem sofria. Lamentava as mortes, mas todos
morrem.
Seria o caso de lembrar que, dessa doença, estamos morrendo
bem mais do que deveríamos. Mais do que chineses, indianos, indonésios,
italianos, tailandeses, espanhóis, japoneses, paraguaios, australianos,
argentinos. Possivelmente morreremos mais do que em qualquer outra parte do
mundo.
E era assim que estávamos, pelo menos até meados de junho:
nenhuma fala sentida à nação; nenhum gesto de solidariedade com as vítimas;
nenhuma cerimônia em memória dos mortos. As bandeiras chegaram a ser hasteadas
a meio pau, mas em menos de duas horas o governo voltou atrás.
Por outro lado, não haveria dificuldade em encontrar
fotografias de Bolsonaro sorrindo, ou mesmo dando risada, nesses meses da nossa
agonia. O luto lhe é estranho. Publicamente, sua reação ao sofrimento alheio
assume apenas duas formas: júbilo ou indiferença. É preciso reparar nisso para
compreendê-lo.
“A indiferença do presidente ao luto coletivo vai de par com
um movimento político que nega nossos laços coletivos, assim como as obrigações
que temos com o outro. Ele lidera uma coalizão que rechaça a ação coletiva e
nega nossas responsabilidades mútuas como membros de uma mesma entidade
política.” Feita em relação a Donald Trump, a observação de autoria do
articulista americano Jamelle Bouie é válida também para o presidente do Brasil.
O trauma nacional tem a capacidade de unir, escreve Bouie.
Quando choramos juntos os nossos mortos, expomos a fragilidade da nossa
condição e explicitamos nosso destino comum, o que põe em relevo um sentimento
coletivo que é o contrário do egoísmo. Não há mais indivíduo irremediavelmente
só. Todos nos vemos implicados na política, porque não existe solução fora do
contrato social e da vida em comum. Ainda que cada dor seja intransferível,
essa comunhão em torno do sofrimento “proporciona um alicerce para a
solidariedade e a ação coletiva”.
Vimos isso acontecer em países como Espanha, Portugal, Nova
Zelândia, Austrália, Itália e Alemanha, e não espanta que nada parecido tenha
se dado nos Estados Unidos ou no Brasil. Lá como aqui, a noção de uma coletividade
se esfacelou. Trump e Bolsonaro substituíram os norte-americanos e os
brasileiros por meus americanos e meus brasileiros. Convocar os cidadãos a
compartilhar a dor de tantas mortes seria afirmar que todas têm o mesmo valor.
Além disso, ainda que os dois fossem capazes de compaixão, seria desvantajoso
demonstrá-la, pois chamariam nossa atenção para o enorme custo humano gerado
pela incompetência e pelo descaso com que gerenciaram a crise.
Trump, aqui, não interessa. Entrou na história por ser o
modelo de que Bolsonaro se pretende imitador. Gripezinha, vírus chinês,
cloroquina – o presidente brasileiro não foi capaz sequer de inventar as
próprias fábulas. A coisa é trazida de Washington e aqui piora um pouco mais,
como a má tradução de um livro ruim. O que não significa que Bolsonaro seja
apenas uma versão abastardada de Trump. Uma das diferenças entre os dois é que
a ausência de empatia no norte-americano está associada ao solipsismo radical
de seu narcisismo, ao passo que em Bolsonaro ela tem uma origem mais perigosa.
É algo anterior a toda convenção, um impulso que corre por baixo, mais
primitivo, mais perturbador, e que no entanto, quando se manifesta, parece
lógico: a morte o excita.
Mais precisamente: certas formas de morrer o excitam,
enquanto outras o deixam frio. Qualquer antologia das frases que notabilizaram
Bolsonaro terá cheiro de sangue e morte. Estupro, tortura, fuzil, exterminou,
morra, morrido, matando, pavor, Ustra. Essas são algumas palavras-chave que dão
sentido às citações mais conhecidas do presidente. Sem elas, as frases se
desfariam. É o sofrimento do outro que as organiza.
A princípio, pode causar espanto a indiferença de Bolsonaro
pelos mortos da pandemia, por brasileiros que, em boa parte, morreram em
decorrência da forma catastrófica com que ele escolheu enfrentar a crise. Fez
vítimas, portanto. A frieza se torna mais compreensível quando se observa o que
lhe acelera o coração. Bolsonaro não se comove com a natureza, a arte lhe é
estranha, a religião não passa de um adereço político, a ciência o ofende. Até
o luxo parece deixá-lo indiferente. A violência, não. É quando fala nela que
parece mais vivo e potente.
Tome-se uma imagem de 2018, captada durante um comício da
campanha presidencial. Bolsonaro pega um tripé à sua frente, ergue-o a meia
altura, aponta para o alto e simula os disparos com os quais promete “fuzilar a
petralhada”. Durante dois segundos – precisamente a duração dos coices da
simulação, dos avanços e recuos violentos da arma fálica – sua expressão muda
por completo. O rosto se crispa num ricto de êxtase. É obsceno e incomodamente
familiar: é a cena de um filme pornográfico.
Essa volúpia distingue os seguidores de Bolsonaro de outros
grupos da direita mais extremada, a exemplo do Movimento Brasil Livre (MBL). É
um traço que separa seus seguidores de políticos como Kim Kataguiri ou Janaina
Paschoal.
No dia 31 de maio, o primeiro domingo de manifestações em
defesa da democracia, o deputado federal Daniel Silveira, do PSL do Rio de
Janeiro, foi para a Avenida Atlântica ficar ao lado dos policiais. Protegido
pela tropa, gritava para o outro lado da rua: “Vem um só aqui, seus filhos da
puta. Eu quero um de vocês só.” Mais tarde, gravou um vídeo em que advertia:
“Vocês vão pegar um polícia zangado no meio da multidão, vão tomar um no meio
da caixa do peito e vão chamar a gente de truculento. Eu tô torcendo pra isso.
Quem sabe não seja eu o sortudo. Vocês me peguem na rua num dia muito ruim e eu
descarregue [sic] a minha arma em cima de um filho da puta comunista que tentar
me agredir.”
Não existe bolsonarista sem pulsão de morte. Rodrigo Amorim,
o então candidato a deputado estadual que partiu a placa de Marielle Franco no
alto de um palanque, é bolsonarista por causa da placa, não por causa de suas
teses sobre a organização do Estado. Ou por outra: a violência contra a placa é
propriamente a sua ideia, exibida em público como programa político. A seu
lado, Wilson Witzel, candidato ao governo estadual, mostrou as credenciais
bolsonaristas ao comemorar o gesto; pouco tempo depois, já eleito, reiterou a
filiação ao festejar na ponte Rio-Niterói a morte de um bandido. Desde que
rompeu com o presidente, o governador não tem dado sinais de se excitar com a
dor dos outros. O que significa que era apenas um oportunista, não um bolsonarista
raiz.
O repertório da truculência é bastante limitado. Diz uma
coisa só, repetidamente e sempre no volume máximo. Daí a monotonia acachapante
dos bolsonaristas. A ameaça e o perigo não são interessantes, são apenas
assustadores.
A fala do deputado Daniel Silveira no vídeo aos
manifestantes é pedagógica. Com um punhado de frases mal articuladas – e isso
também importa –, aprende-se quase tudo sobre o movimento do qual ele é um
representante exemplar. O elemento mais característico é a transformação do
oponente em inimigo, mecanismo clássico de toda militância antidemocrática, tão
banalizado que já nem merece muita atenção. Mais digno de nota é o aspecto da
degradação da linguagem. Creio que tem valor funcional, servindo como índice da
degradação das normas.
A reunião ministerial de 22 de abril, por exemplo,
impressiona igualmente pelo conteúdo e pela forma. Tão importante quanto o que
foi dito é como se disse. As concordâncias capengas, as regências erradas, os
neologismos cafajestes e a profusão de palavrões são indícios poderosos de que
alguma coisa está sendo arrasada. Chame-se de civilidade, de respeito às
liturgias democráticas ou simplesmente de compostura, o fato é que a linguagem
empregada ali, como lixo, conspurca o entorno – e o entorno é a própria República.
A maioria dos que tomam a palavra é branca e de classe
média, brasileiros que tiveram acesso à educação formal. Quem diria. Quantos
ali não fizeram graça com algum plural claudicante na fala de quem, antes
deles, chegou ao poder vindo de um Brasil mais injusto? Era uma prática comum
entre certa gente orgulhosa de seus preconceitos de classe.
Bolsonaristas tratam o idioma como tratam o meio ambiente, o
que não é fortuito. O ex-ministro Abraham Weintraub e Ricardo Salles, nesse
sentido, são almas gêmeas, dois tarefeiros diligentes que executam a missão de
destruir valores civilizatórios caros aos inimigos: o letramento; a cultura; a
floresta e todas as suas criaturas. Mas eles vão além: a cada “insitaria a
violência”, a cada “haviam emendas parlamentares”, a cada imagem da floresta em
chamas a militância se alvoroça, se assanha.
Não à toa, o aforismo mais memorável do corpus de Olavo de
Carvalho, ideólogo de todos eles, é “Enfia isso no cu”. Existe um componente
erótico nessa ruína. “Vem um só aqui, seus filhos da puta. Eu quero um de vocês
só”, implora Daniel Silveira. Isso é a linguagem do gozo. Silveira quer
ejacular, e não duvido de que chegará ao paroxismo quando alguém “tomar um no
meio da caixa do peito”.
Esse é o componente verdadeiramente monstruoso. Se parece
quase inevitável que a violência venha, não é apenas por ela se constituir como
instrumento de tomada de poder, mas por ser desejável e prazerosa. “Para mim,
para o senhor e para os nossos pares, a paz é hoje uma desgraça”, disse um
líder fascista na Itália de Mussolini. Para bolsonaristas, é pior do que isso:
a paz é assexuada. Quando Silveira finalmente estiver liberado para bater,
avançará para dentro do inimigo e, amparado pelo poder, por sua arma e pelos
policiais, ficará maravilhado com a facilidade com que espanca. A amoralidade é
libertadora.
Nos últimos doze meses, foram registradas 72 mil novas armas
no país. Cada companheiro de Daniel Silveira que comprou a sua poderá adquirir
550 munições por mês. Segundo O Globo, só em maio foram vendidos mais de 2 mil
cartuchos por hora. “Eu quero todo mundo armado”, exigiu Bolsonaro em 22 de
abril. No ano passado, ensinou aos caminhoneiros que “se tiver arma de fogo, é
para usar”. Ao Exército, determinou a revogação de portarias sobre rastreamento
e identificação de armas e munições. No início de junho, prometeu isentar
policiais e membros das Forças Armadas do imposto de importação de armas.
Graças ao presidente (e também ao ex-ministro da Justiça Sergio Moro), hoje
somos versados em conceitos jurídicos como “excludente de ilicitude”.
Bolsonaro sempre sorri quando transforma as mãos em arma.
Aquelas pistolas imaginárias, símbolo de sua campanha, estão ali para mostrar o
que lhe dá prazer. A violência é o componente essencial. O que provoca regozijo
é o corpo baleado no chão, o traficante executado, o homossexual espancado, a
moça trans agredida, o esquerdista desacordado, o indígena ferido. Já as
vítimas da pandemia morrem sem espetáculo, numa agonia que não é pública. Sendo
invisíveis, suscitam no presidente apenas desinteresse, enfado, “o puro tédio
da morte”, como escreveu Nelson Rodrigues sobre a reação de alguns ao horror da
gripe espanhola.
Bolsonarismo implicaria um conjunto coerente de ideias e uma
visão de mundo articulada, elementos que faltam à pregação política de
Bolsonaro. Chega a ser desconcertante, mas conceitualmente o presidente é uma
degradação do regime militar que ele gostaria de reimpor aos brasileiros. Os
generais que tomaram o poder em 1964 tinham uma proposta para o país. À sua
maneira, queriam modernizá-lo para superar o subdesenvolvimento e sabiam o que
pôr no lugar do que estavam destruindo.
Bolsonaro investe mais em atos de destruição, não em visões
de futuro. No campo propositivo, todas as suas ideias são tomadas de
empréstimo. O liberalismo econômico foi o cavalo que passou selado num momento
em que as elites econômicas desembarcavam da sociedade com o petismo. O
lavajatismo serviu para fisgar o velho udenismo das classes médias locais. Os
pobres estavam com os evangélicos, e Bolsonaro logo se fez batizar no Rio
Jordão. Esse é o liberalismo de um nostálgico do intervencionismo da ditadura;
o moralismo de quem declara afinidade com milicianos que vivem de extorsão e arreglos
com o crime; o conservadorismo cristão do homem de 52 anos que no terceiro
casamento esposa a moça de 25.
O cientista político Marcos Nobre alerta para o risco de
tomar Bolsonaro por um político limitado; negar ao presidente a capacidade de
levar a cabo seu projeto de poder é uma reconfortante e perigosa ilusão. A
preocupação é compreensível, e não creio que seja incompatível com esta
afirmação: projetar uma visão de mundo acabada exige recursos intelectuais e de
imaginação dos quais Bolsonaro dá provas sucessivas de não dispor. Contudo, se
a construção não está ao seu alcance, a destruição, sim. É o seu talento
luminoso. Em menos de dois anos, Bolsonaro degradou a cultura, a educação, a
política ambiental, a Polícia Federal, o Ibama, o Itamaraty, a Funai, a
Procuradoria-Geral da República, o Iphan, a Funarte, a Ancine, a Casa de Rui
Barbosa, a Fundação Cultural Palmares, a Biblioteca Nacional, a Cinemateca
Brasileira, o Ministério da Saúde, as Forças Armadas. Não é obra de engenharia.
É demolição. “O Brasil não é um terreno aberto onde nós pretendemos construir
coisas para o nosso povo”, afirmou ele em Washington, na presença de
representantes do conservadorismo e da extrema direita norte-americana. “Nós
temos é que desconstruir muita coisa, desfazer muita coisa. Depois, podemos
começar a fazer.” A parte do refazimento não será com ele. Os capatazes virão
depois. Os militares supõem tê-los em seus quadros.
A saúde da nossa vida cívica, sempre frágil, agora se esvai:
“A audácia irracional é considerada lealdade corajosa […]; a moderação passa a
ser uma máscara para a fraqueza covarde […]. O homem irascível sempre merece
confiança, e seu oposto se torna suspeito. O conspirador bem-sucedido é
inteligente, e ainda mais aquele que o descobre, mas quem não aprova esses
procedimentos é tido como traidor do partido e um covarde diante dos
adversários. […] Vingar-se de uma ofensa é mais apreciado que não haver sido ofendido
[…] e aqueles capazes de levar a bom termo um plano odioso sob o manto de
palavras enganosas são considerados os melhores.” A última frase poderia ser um
comentário a Ricardo Salles e sua boiada, mas não. O texto é mais antigo. É de
autoria do historiador grego Tucídides, nascido no século V a.C., e descreve
uma guerra civil. É assim que uma sociedade se entredevora.
Em A Ordem do Dia, um breve romance de época lançado em
2017, o francês Éric Vuillard narra como um país capitula ante a violência e a
demagogia. “O sol é um astro frio”, diz a primeira frase do livro, uma
afirmação meteorológica – é fevereiro em Berlim – e política – o ano é 1933.
Dali a alguns parágrafos, 24 industriais da Alemanha se alinharão ao regime,
embora considerem seus líderes vulgares e medíocres. Cinco anos depois, a
Áustria se encolherá e, de concessão em concessão, perderá sua alma – morre de
vez ao ser anexada ao Reich. O narrador escreve: “[Mas nada aqui tem] a
magnificência do terror. Só o aspecto pegajoso dos conchavos e da impostura.
Nenhuma exaltação violenta, nada de falas terríveis e desumanas. Apenas a
ameaça brutal, a propaganda, repetitiva e vulgar.”
Se o paralelo histórico não procede, a descrição do
rebaixamento geral nos fala de perto. Também aqui é tudo rasteiro: o
presidente, seus filhos, os ministros, os seguidores, o que dizem, o que
propõem. Existe apenas entropia.
A pura negatividade não chega a ser uma ideologia. É
sobretudo um modo de existir. Dos muitos canteiros de obra onde trabalham as
turmas bolsonaristas de demolição, nenhum é mais espetacular do que a Amazônia.
Ali se destrói sem pôr nada no lugar, em troca de nada – é o verdadeiro
manifesto político do movimento. Que ninguém se engane: é falsa a ideia de que
o desmatamento dá lugar à produção. Hoje, quem destrói a Amazônia é
essencialmente um especulador imobiliário. Rouba terra pública à espera de que
valorize. Na lógica do ladrão, ele será anistiado pelo governo e ficará rico. O
país, não.
Do ponto de vista econômico, ecológico, geopolítico, moral,
não se justifica. Na lógica bolsonarista, é missão cumprida. Claro, há
interesses em jogo e gente que se beneficia do desmatamento, mas não são
inimigos poderosos. O Estado não teria dificuldade em reprimi-los se quisesse,
como, aliás, já fez no passado. Que não queira – e mais: que esteja
efetivamente incentivando o desmate ao demonizar quem tenta coibi-lo –
representa um contrassenso em relação aos interesses não só do país, mas também
do agronegócio, base sólida de apoio a Bolsonaro. O setor hoje se vê ameaçado
pela perspectiva de um boicote internacional a seus produtos. Se nem a
necessidade de zelar pelos negócios refreia o ímpeto governamental de facilitar
a derrubada metódica da floresta, pode-se inferir, então, o que de fato move o
governo. Mais do que interesses, são paixões. A destruição não é efeito
colateral. É propósito.
O cartão-postal da visão de mundo bolsonarista é o garimpo,
no qual todas as dimensões da existência estão aviltadas: saúde, meio ambiente,
relações de trabalho, norma jurídica. Não por acaso, nas raras vezes em que
esboçou uma perspectiva de futuro para a Amazônia, Bolsonaro lhe atribuiu um
papel central. Ao Globo, declarou que pretendia criar “pequenas Serras Peladas”
Brasil afora. Em abril, o governo afastou dois chefes de fiscalização do Ibama
que comandaram uma operação no Pará contra garimpeiros que tinham invadido
terras indígenas.
A terra devastada que o garimpo deixa para trás é a
materialização da estética bolsonarista e do que seus adeptos apreciam:
destruição, ruína, bruteza. Os garimpeiros que escalavram a ribanceira dos rios
seguram as mangueiras de pressão da mesma forma que Bolsonaro empunha sua
metralhadora, a meia altura e com as duas mãos, produzindo os mesmos arrancos e
recuos. A violência é semelhante. Não duvido de que para o presidente ambos os
gestos estejam encharcados de erotismo.
Na capa da piauí de maio deste ano, Bolsonaro beijava a
Morte. Era uma alegoria e um diagnóstico.
A força negativa característica de toda ação bolsonarista
faria pensar numa variante tropical do niilismo, mas a hipótese ofende a
filosofia e uma venerável tradição da história das ideias. Bolsonaristas estão
para o niilismo assim como o bispo Edir Macedo está para São Tomás de Aquino,
Olavo de Carvalho para Hegel ou, me permitam mais essa, Ernesto Araújo para
Bismarck. No campo bolsonarista não se trata nunca de esgrima, é sempre
porrada. Tudo se põe à altura do ralo porque a baixeza é parte da agenda. Todos
nós somos diminuídos.
Num ensaio de 2019, a pensadora húngara Agnes Heller fez uma
distinção interessante a propósito da deriva autoritária em seu país: “As
ideologias podem ser positivas. Com esse adjetivo, não faço juízo de valor […].
Ideologias positivas são simplesmente as que prometem algo para o futuro: mudanças
radicais, sociedade sem classes, planeta despoluído, domínio do mundo, Estado
de bem-estar social, a felicidade de todos. As ideologias positivas – as
benignas como as perigosas – têm seus próprios intelectuais ideólogos; podem
ser apoiadas por cientistas, poetas, filósofos, por uma espécie de elite
cultural. Já as ideologias das tiranias modernas são negativas – operam contra
ou em oposição a algo, não trabalham para alcançar nada; não contam com o apoio
da cultura intelectual.”
Curiosamente, a observação vale mais para o Brasil do que
para a Hungria. Sim, Viktor Orbán consolidou seu poder manipulando habilmente o
ódio a inimigos compartilhados – imigrantes, cabalas judaicas fantasiosas,
social-democracia liberal, União Europeia. Contudo, onde o exemplo de Heller
parece tropeçar é no fato de que a ideologia orbanista não se contenta em
subtrair. Ao país, Orbán oferece o projeto de uma nação definida por sua
etnicidade específica e fundada nos princípios do Sangue e do Solo. Essa utopia
reacionária de matriz biologista, antiliberal e nacionalista é um constructo
poderoso, de longa tradição naquela parte do mundo. Orbán é seu ideólogo mais
talentoso e competente, dois adjetivos que, no terreno das ideias, ficariam tão
à vontade na companhia de Jair Bolsonaro quanto Ricardo Salles numa convenção
do Greenpeace.
A atual crise da democracia é liderada por autocratas
capazes de projetar sonhos alternativos de nação. É Xi Jinping na China, à
frente de um bem-sucedido capitalismo de Estado sem direitos políticos. Ou
Jarosław Kaczyński e Andrzej Duda na Polônia, atualizando um nacionalismo
católico que nem o comunismo pôde extinguir. Ou Recep Tayyip Erdoğan, minando o
secularismo republicano da Turquia moderna com sua nostalgia do Império
Otomano. Na Índia, Narendra Modi põe sua eficiência administrativa a serviço do
nacionalismo hindu. E, por fim, o pioneiro Vladimir Putin, primus inter pares,
projetando para os russos o espetáculo da força, narcótico para a humilhação de
um país que perdeu o posto de superpotência global.
Esses são os autocratas que inspiram teses acadêmicas e
livros sobre como as democracias morrem. Só eles têm relevância geopolítica.
São homens de ferro que exercem uma liderança imperial e costumam ser
competentes na administração do Estado. Não por acaso, muitos se destacaram no
enfrentamento da crise sanitária. Bolsonaro raramente é visto em companhia
deles nos parágrafos da imprensa internacional. Ele é a versão degradada que
abre o parágrafo seguinte, o autoritário exótico, papel que no passado foi do ugandês
Idi Amin Dada e que mais recentemente se tornou apanágio de ditadores da Coreia
do Norte e de tiranos centro-asiáticos que renomeiam o calendário para dar o
nome da própria mãe ao mês de abril.
A única figura a que Bolsonaro geralmente é comparado –
Donald Trump – marca presença como o membro mais caricato da coorte de líderes
autoritários em cena. Há quem chame o capitão reformado de “Trump tropical”,
epíteto que certamente o envaidece. Que seja cego à profunda indiferença do
norte-americano por ele e pelo Brasil, que tenha a ilusão de ocupar um lugar
especial no coração de seu modelo, isso é apenas mais um indicador da
inclinação servil de seu temperamento diante de poderes maiores que o seu.
Toda vez que Trump esteve nas cordas por causa do modo
desastroso como combateu (ele também) a pandemia, não perdeu a oportunidade de
se reerguer à custa da desdita do Brasil. Da primeira vez, sem dar uma pista ao
amigo, anunciou que decidira proibir brasileiros de entrar nos Estados Unidos.
Da segunda, antecipou a data da proibição. Da terceira, afirmou que se tivesse
adotado estratégia semelhante à brasileira talvez 2 milhões de norte-americanos
estivessem mortos. A incompetência de Bolsonaro tem serventia para Trump. Serve
ao menos para que ele tenha alguém com quem se comparar favoravelmente.
Ser atirado assim na fogueira não afrouxa o entusiasmo
pelego de Bolsonaro: “É meu amigo, é meu irmão. Falei com ele essa semana.
Tivemos uma conversa maravilhosa. Um abraço, Trump” – foi essa a sua resposta
quando lhe pediram um comentário sobre os 2 milhões de pessoas que Trump livrou
da morte ao ter o bom senso de não nos imitar.
Tudo isso pode parecer uma queixa estranha: nosso autocrata
é pior que o deles. Não seria motivo de comemoração? De fato, como bem mostraram
Daniela Campello e Cesar Zucco na edição anterior desta revista, Bolsonaro tem
errado sistematicamente. Seu mais grave equívoco político foi não ter lido
corretamente a pandemia. No fim das contas, sorte nossa, talvez, que ele tenha
sido testado em condições tão desfavoráveis. Suas carências, agora expostas a
toda a nação, podem ser um obstáculo à construção de um projeto duradouro de
poder. Em todo caso – noves fora a ferida narcísica provocada pela sensação
(perversa) de não conseguirmos produzir nem déspotas com alguma dimensão
histórica –, o verdadeiro temor é outro. Embora um Reich de Mil Anos não esteja
ao alcance de Bolsonaro, o caos de uma semana, um mês, um ano, está. Refiro-me
a uma anarquia miliciana e policial, a um espetáculo estarrecedor de violência
e fúria: “Eu quero um de vocês só.” Ou dois. Ou dez. Ou mil.
Obtusidade não significa falta de estratégia. Bolsonaro sabe
o que quer. Ou melhor, sabe do que gosta. Seus seguidores também. Querem aquilo
de que gostam.
Um velho general da aristocracia prussiana, um homem direito
que, no século passado, resistiu a colaborar com regimes de força, classificava
os militares em quatro tipos: “Há oficiais inteligentes, aplicados, burros e
preguiçosos. Em geral, essas qualidades vêm aos pares. Há os inteligentes e
aplicados, que devem ir para o Estado-Maior. Depois vêm os burros e
preguiçosos; esses são 90% de qualquer Exército e são próprios para tarefas de
rotina. Os inteligentes preguiçosos dispõem do que é preciso para tarefas mais
altas de liderança, pois têm clareza mental e firmeza dos nervos na hora de
decisões difíceis. Mas é preciso tomar cuidado com os burros e aplicados; não
podem receber nenhuma responsabilidade, pois só sabem causar desgraça.”
Temo que a desgraça já esteja contratada. Será motivada por
aquela forma específica de desinteligência descrita por Tucídides,
caracterizada por insensatez, irreflexão e inclemência. Pelo estado de
aviltamento em que pequenos se tornam grandes e grandes perdem força. Temo o
momento em que, nas próximas semanas, daqui a uns meses, no ano que vem ou
pouco antes da eleição de 2022, ao lermos o alerta que terá surgido em uma das
nossas telas, sussurraremos: “Começou.”
Em 1981 o escritor italiano Claudio Magris visitou a
Polônia. As greves do Solidariedade punham em xeque o regime tutelado pelos
soviéticos. Em meio a “viventes mais ameaçados de morte” do que ele, Magris
refletiu: “Na Polônia se sente a tragédia, não o pesadelo; e a tragédia implica
uma dimensão humana de grandeza e de força, um senso íntegro e pleno da vida
que foi agredida ou destruída, a intuição de um destino e de um significado. A
queda trágica não apequena o indivíduo; ela o derruba do carro de combate como
a um guerreiro homérico golpeado na batalha, não o dilacera e não o dissolve no
nada, como acontece a quem foi tragado pelos meandros irreais do pesadelo.”
É isso. Em 1964, o poder foi tomado à força. Em 2018, 57,7
milhões de brasileiros sufragaram a versão piorada de um regime odioso. Outros
11 milhões anularam ou votaram em branco. No fim das contas, talvez fosse
inevitável chegarmos a isso. Bolsonaro não é diferente do país que o elegeu.
Não todo o Brasil, nem mesmo a maioria do Brasil (uma esperança), mas um pedaço
significativo do Brasil é como Bolsonaro. Violento, racista, misógino,
homofóbico, inculto, indiferente. Perverso.
E foi assim que terminamos não na tragédia, mas no pesadelo.
JOÃO MOREIRA SALLES é documentarista, é editor fundador da
piauí. Dirigiu Santiago, Entreatos e Nelson Freire, entre outros
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