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Bode na sala ou salame fatiado, reforma tributária de Guedes cria confusão

Como era previsível, a primeira fatia do salame tributário oferecida pelo governo federal não caiu bem. Paulo Guedes propôs trocar o PIS/Cofins por uma Contribuição Social sobre Bens e Serviços (CBS). Se fosse alteração isolada, causaria a confusão habitual de rediscussões de impostos, de quem paga mais ou menos, motivo que emperra a mudança desse imposto desde 2014. O plano Guedes causa mais tumulto porque, se a ideia é fazer reforma “ampla”, não dá para discutir PIS/Cofins sem tratar do peso de outros impostos sobre as empresas, escreve Vinicius Torres Freire em sua coluna semanal na Folha, publicada na quarta, 22/7. Continua a seguir.

Há quem diga que a CBS com alíquota alta é um bode na sala, a ser trocado por uma CPMF. O bode de Guedes, no entanto, já mastiga o sofá e faz sujeira sobre o tapete.
Antes de prosseguir, convém lembrar que:
quem recolhe o imposto não é quem o paga. Quanto mais um bem ou serviço for de difícil substituição, mais fácil repassar o aumento de tributação para o consumidor (pense-se no caso de comida, água, luz). Se existe substituto ou a opção de não consumir, é possível que a empresa tenha de engolir parte do aumento do custo ou, caso o repasse, perca mais faturamento;
não é possível calcular aumento de carga tributária com base apenas na alíquota do imposto. Mudanças em tributos mudam comportamentos. Podem tornar empresas inviáveis, permitir o surgimento de outros negócios e incentivam as firmas a criar um modo de se livrarem do tributo. Um projeto tributário não faz sentido sem simular essas transformações.
O PIS/Cofins é um imposto grande, cerca de 18% da receita federal bruta de 2019. Apenas Imposto de Renda, com 28,4%, e contribuições previdenciárias em geral, 27%, têm peso maior. O ruinoso ICMS, estadual, porém, arrecada quase o dobro do PIS/Cofins.
Parece razoável acreditar que a CBS vai aumentar os impostos de construção civil, escolas, saúde ou teles. Pode ser tolerável, a depender do que vai ser feito de outros impostos e do ganho geral da (suposta) simplificação e uniformização tributária. Como não temos ideia do quadro mais geral, fica difícil discutir alíquotas e a conveniência de redistribuição da carga. Esse é um resumo do problema que é a reforma Guedes-Bolsonaro, que além do mais suscita outras ideias de jerico.
Gente do centrão e da oposição de esquerda quer que os bancos paguem mais CBS. Pode ser que a alíquota deva ser calibrada, mas partir do princípio de que bancos têm de pagar mais é má ideia. As consequências mais prováveis desse aumento devem ser o encarecimento dos empréstimos e a diminuição do acesso ao crédito. Se a questão é a iniquidade, trata-se de tributar os rendimentos dos acionistas dos bancos e dos detentores de capital em geral, os mais ricos em particular.
Sim, um objetivo de uma reforma inteligente é uniformizar o quanto possível o peso dos impostos sobre empresas e finança, de modo a evitar distorções ineficientes. A decisão de investir aqui ou ali devem ser pautadas por rentabilidade, não por privilégios fiscais. Um imposto especialmente baixo pode manter vivos negócios de outro modo inviáveis, o que é um uso ineficiente de recursos. Tudo isso é muito elementar.
Mas não estamos discutindo nada disso: alíquotas efetivas e seus efeitos econômicos, justiça e eficiência tributárias, o quadro geral dos impostos. É grande risco de a reforma tributária entrar no pântano caótico que é o padrão de governo Jair Bolsonaro. Tudo porque Guedes tem a ideia fixa da CPMF e mexer com estados e cidades.
Vinicius Torres Freire é jornalista, foi secretário de Redação da Folha. É mestre em administração pública pela Universidade Harvard (EUA).



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