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Combate aos algoritmos do ódio

No primeiro dia dos protestos contra a morte de George Floyd, afro-americano assassinado em 25 de maio por um policial branco em Mineápolis, o post mais visto no Facebook nos EUA dizia que crimes racistas eram um mito. Plataformas digitais apoiaram o Black Lives Matter, movimento contra a violência a pessoas negras, mas não evitaram o uso de suas redes por provocadores para atacar a organização com discursos de ódio e “fake news”. Enquanto os protestos se espalhavam pelos EUA, posts, fotos e vídeos anunciavam que o Antifa - grupo antifacista - estava estocando tijolos para atacar cidades americanas, escreve Helena Celestino no Valor, em matéria publicada na sexta, 10/7. Continua abaixo.

Segundo o “New York Times”, os rumores levaram as populações de 41 lugares do país ao pânico. A polícia foi acionada muitas vezes, mas eram chamadas falsas e nenhum manifestante armado de tijolos apareceu. Essas e outras 12 narrativas de incitamento à violência foram vistas por 26 milhões de pessoas, segundo a Avaaz, comunidade de mobilização on-line. Entre outras mentiras, dizia-se que Floyd estava vivo e que os protestos eram incentivados pelo megainvestidor George Soros para estimular o ódio aos brancos.
O argumento de que o desemprego é un fenômeno mundial, apesar de verdadeiro, não o quadro em que o mercado de trabalho
As acusações de que plataformas são usadas para manipulação da opinião pública, frequentes desde a eleição de Donald Trump, em 2016, e de Jair Bolsonaro, em 2018, ganharam força com o aumento da tensão causada pela mistura de crise política com a pandemia de covid-19 e desdobraram-se em ações no espaço físico.
Sob pressão da campanha “Stop Hate for Profit” (Pare de Odiar pelo Lucro), um terço das grandes empresas retirou publicidade do Facebook e, em alguns casos, também do Twitter, YouTube, Instagram etc. O boicote expandiu-se para a Europa e o Brasil, onde nos primeiros dias de julho, 16 empresas já tinham bloqueado os anúncios na rede de Mark Zuckerberg.
“Dificilmente a campanha vai abalar um negócio do tamanho do Facebook. Nosso objetivo é sensibilizar atores do mercado publicitário - público, agências, anunciantes e o próprio Facebook - para a importância de uma política efetiva de combate ao discurso social nas redes”, informa o Sleeping Giant, grupo cívico reunido em torno da ideia de que é o momento de as redes repensarem o seu papel numa democracia.
Segundo o sociólogo Todd Gitlin, professor da Universidade Columbia e autor de livros sobre mídia e movimentos sociais, as pessoas já estão monitorando a ação das redes e prometem tomar atitudes. “A extrema-direita transformou as redes sociais em uma arma para espalhar a propaganda e o ódio. Na lei americana, os executivos dessas plataformas não podem ser responsabilizados pelo que divulgam porque as empresas não são consideradas grupos de mídia, mas de tecnologia. Até Trump já falou em mudar a lei”, diz.
Em um encontro entre o presidente americano e Zuckerberg na Casa Branca há alguns meses, diz o professor, Trump teria reclamado que Facebook e Instagram eram tendenciosos contra a direita, cobrança que cresceu com as regras de uso criadas pelas plataformas para tentar diminuir as campanhas de desinformação.
Como no Brasil, dizem especialistas, esses grupos invocam a liberdade de expressão para “legalizar” “fake news” e discursos de ódio. Por isso, a comunidade de 170 mil apoiadores de Trump foi excluída da rede social Reddit, e o próprio presidente, expulso do Twitch (da Amazon) por causa de ataques racistas e incentivos à violência. Em novembro, um ano antes das eleições presidenciais, todos os eleitores registrados já tinham recebido uma informação falsa.
No Brasil, o Supremo Tribunal Federal (STF) acaba de aumentar por mais seis meses as investigações sobre “fake news” que já atingiram empresários próximos de Bolsonaro, blogueiros e grupos que atacam as instituições. “Brasil e EUA são parecidos nesse aspecto. Nos dois a estratégia de propaganda é muito pesada e suja”, diz Pablo Ortellado, professor da USP e coordenador do Monitor do Debate Digital. Para ele, defender o direito à liberdade de expressão, nesse caso, é um refúgio das campanhas de difamação muito agressivas, base de política nos governos Trump e Bolsonaro.
“A gente vê uma máquina de propaganda muito apaixonada e muito vulnerável. Ela depende de um público inflamável que passa compulsivamente adiante a mensagem. É uma máquina de desinformação, explorando, deformando, tirando do contexto as informações, usadas como um instrumento de propaganda”, diz Ortellado.
Aqui e lá, há uma preparação para repetir em novembro a estratégia das últimas eleições, segundo João Guilherme Bastos dos Santos, pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital (Inct. DD), que colaborou com a CPI das Fake News e com trabalhos junto ao Ministério de Ciência e Tecnologia.
Segundo ele, grupos de WhatsApp já estão montados e interconectados a grupos tão diferentes como a turma da academia e os evangélicos: a ideia é mantê-los funcionando e vender os dados quando a campanha esquentar.
As empresas de disparo massivo de posts, diz Santos, estão na fase de obter dados e segmentá-los em faixas de renda, nível educacional e preferência política para também ser bem remuneradas ao passá-los a marqueteiros ou candidatos. Trata-se de um mercado que está se preparando para fazer da manipulação da informação uma arma de guerra eleitoral.
“Já foram citados na CPMI vários sites envolvidos com campanhas de desinformação recebendo recursos do governo, o que pressupõe produção sistemática de mensagens, participação de robôs ou de milícias virtuais para ajudar a viralizar o post. Só na terceira etapa entra o cidadão comum, que, convencido pelo que leu ou viu, vai repassar para grupos de amigos, família, colegas indecisos e não necessariamente interessados em política. Isso é propaganda, e não liberdade de expressão”, avalia Santos.
O cenário não é o desenrolar de uma tragédia grega onde o destino de todos já está traçado. “Estamos numa situação difícil”, diz Ortellado. Ele dá o exemplo de Qassem Soleimani, chefe de uma unidade especial da Guarda Revolucionária do Irã, que foi abatido por um drone dos EUA. Como a organização era considerada terrorista pelo Departamento de Estado, elogios ou apoios ao iraniano foram cortados pelo Facebook. “De certa maneira, o controle dessas plataformas impacta o debate público, elas estão regulando a esfera pública. Esta é uma questão que deveria preocupar a todos”, diz.
Também preocupante é a ação das “fake news” na pandemia. Pelos canais do YouTube, segundo Ortellado, 15 milhões de pessoas receberam notícias falsas, muitas mandadas com o mesmo erro de português por robôs. Eram médicos falsos vendendo elixires, religiosos com teorias da conspiração etc. O presidente Bolsonaro teve um vídeo retirado do Facebook porque anunciava como comprovados os benefícios da cloroquina contra a covid-19.
“A maioria da população gostaria de receber correção das ‘fake news’ e querem rotulação de robô. Isso é fácil e não tira a liberdade de expressão de ninguém”, diz Laura Moraes, coordenadora de pesquisas da Avaaz. As duas medidas constam do projeto contra a desinformação aprovado no Senado brasileiro. “Foi a contento. Mantivemos o principal: a rastreabilidade e o fim do anonimato, em casos que a Justiça autorizar. Vamos controlar as ‘fake news’ sem abalar a liberdade de expressão”, diz o senador Angelo Coronel (PSD-BA), relator de projeto de lei que visa combater notícias falsas nas redes sociais.
Foi considerado avanço por Ortellado e pela Avaaz, mas a má notícia é que, até agora, nenhum país conseguiu controlar as notícias falsas e os discursos de ódio, seja adotando leis rigorosas, seja deixando rolar, sob o argumento de que qualquer controle é ameaça à liberdade de expressão.
“O lado asiático pendeu para a adoção de leis. Testadas na vida real, três coisas aconteceram: prisões, censura de liberdades em vários graus e a autocensura”, diz Cristina Tardáguila, dona da Agência Lupa e diretora-adjunta da International Fact-Checking Network, que coleta dados sobre os rumos dos países no combate à desinformação. Em Cingapura, o governo diz às plataformas o que é falso, numa espécie de censura estatal. Na Tailândia, criou-se uma espécie de “war room” (sala de guerra) com telões, 30 jornalistas que acompanham a “trending” do Twitter e relatórios de todas as checagens. Na Europa, estuda-se uma legislação única para os 27 países. “E a desinformação só cresce.”
A Secretaria Especial de Comunicação Social da Presidência disse, em nota, que “procura sempre realizar investimentos na comunicação digital para atingir os públicos-alvo de cada campanha. No entanto, como órgão do governo federal, não cabe à Secretaria de Comunicação apoiar uma campanha, decidida exclusivamente por anunciantes. O que a Secom faz, regularmente, é se pautar pelo respeito à ética, pelo zelo na aplicação do recurso público e pela cobrança permanente do Google, Twitter e do Facebook do correto direcionamento da publicidade institucional”.
Diante das pressões, o Facebook anunciou que retirou 250 organizações supremacistas brancas, e investimentos permitem à rede encontrar 90% dos discursos de ódio, disse a rede em comunicado. O Twitter Brasil foi na mesma linha: “Temos desenvolvido políticas e funcionalidades no intuito de proteger a conversa pública e, como sempre, estamos comprometidos em amplificar vozes dos grupos sub-representados ou marginalizados”. O YouTube diz que retirou do ar canais de supremacistas brancos.
“É só simbólico”, diz Santos, do Inct. DD. Os algoritmos foram calibrados para nos provocar emoção e indignação, uma maneira de nos deixar mais tempo nas redes, compartilhar com mais pessoas, ver mais anúncios e dar lucro, segundo especialistas. “É difícil mudar”, diz Gitlin.
O psicanalista Benilton Bezerra Jr. alerta para o perigo de atuarmos como Beato Salu, personagem da novela “Roque Santeiro” (1985-1986), querendo proibir tudo e anunciando o fim do mundo. Até ter internet, “big data” e inteligência artificial para acessar o mundo interior das pessoas, era necessário abrir as portas, diz.
Elas falavam, escreviam, faziam romances, novelas, testemunhos, análise, tinham um padre etc. Agora, mesmo a pessoa que se considera a mais fechada, que não abre a boca para dizer nada sobre ela, é um livro aberto. Basta consultar os dados que ela espontaneamente disponibiliza o tempo todo nas escolhas que faz on-line. “E como o mundo digital está cada vez mais ocupando o espaço da existência, daqui a pouco nós vamos ser transparentes”, diz Bezerra Jr..


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