A República distante
por Márcia Pinheiro e Sergio Lirio
O Banco Central recusa-se a acatar os princípios de transparência e promove encontros secretos com o mercado
Quinta-feira 15 e sexta 16. Dois diretores do Banco Central encontraram-se, sigilosamente, com executivos de instituições financeiras para discutir economia. Foram três reuniões em São Paulo (escalonadas de duas em duas horas, a partir das 11 da manhã) e uma no Rio, nas sedes regionais do BC, prédios públicos. Estavam presentes 20 participantes, em cada encontro, aproximadamente, o que em um cálculo rápido daria 80 privilegiados, que foram se atualizar sobre as planilhas dos representantes do BC: o diretor de Política Econômica e Estudos Especiais, Mario Mesquita (ex-ABN Amro e ING), e o diretor de Política Monetária, Rodrigo Azevedo (ex-Credit Suisse First Boston e Garantia). O presidente do BC, Henrique Meirelles, compareceu somente ao evento no Rio, mas não falou.
Cento e dezoito anos depois do gesto do marechal Deodoro da Fonseca, proclamando a República, eternizado em quadro do pintor Benedito Calixto, uma série de instituições brasileiras recusa-se a entrar na era da República. Falar em valores republicanos, nos dias de hoje, causa urticária em meia dúzia de aclamados pensadores e escribas da vida cotidiana, como se o conceito tivesse perdido o sentido.
Seria bom que os críticos do debate sobre o republicanismo no Brasil e os que acham moderno grafar estado com letra minúscula consultassem os ideólogos que moldaram a civilização ocidental. Encontrariam, por exemplo, um ensinamento de Montesquieu, na obra O Espírito das Leis, de 1745: "Quando, numa república, o povo como um todo possui o poder soberano, trata-se de uma Democracia. Quando o poder soberano está nas mãos de uma parte, trata-se de uma Aristocracia".
A quem serve o poder soberano do BC brasileiro, cuja autonomia de fato não parece suficiente aos donos do dinheiro? As reuniões com agentes do mercado financeiro falam por si. Mais do que negar os preceitos de um Estado participativo e forte, comprometido com o interesse público, os convescotes revelam o quanto, no Brasil, o público e o privado confundem-se a ponto de não se poder enxergar a linha divisória entre ambos.
Oficialmente, as reuniões nem existem. Não constam da agenda do BC. Tampouco os resultados são revelados à imprensa. Trata-se de uma festa para poucos, em que as práticas de democratização da informação passam ao largo. Segundo o assessor de imprensa do BC, Jocimar Nastari, a não divulgação das agendas é um procedimento que visa coibir a especulação do mercado financeiro. Um comunicado prévio, argumenta, daria margem a ruídos nos negócios. "No caso, não é preciso transparência. Ela se dá por meio dos (breves) comunicados após a reunião do Copom, da Ata do encontro e dos relatórios trimestrais de inflação. "É o arcabouço legal do regime de metas de inflação", afirma.
Não é de hoje que tais encontros acontecem. Os eventos são trimestrais. Em 2006, por exemplo, ocorreram em 20 de fevereiro, 8 de junho, 21 de agosto e 22 de novembro. Como o mercado financeiro não é exatamente composto por ingênuos, fica a dúvida. Por que os saraus restritos a economistas e gestores de instituições financeiras?
A alegação, ainda oficial, é que, das reuniões, saem dados concretos para que o BC redija o relatório trimestral de inflação. Mas e o setor produtivo? E os economistas das universidades? Ou seriam os últimos incapazes de prover o BC de análises consistentes? É relevante lembrar que a autoridade monetária já dispõe de um canal de comunicação com o mercado, por meio da Gerência Executiva de Relações com Investidores (Gerin), cuja função é compilar, semanalmente, entre economistas de bancos, expectativas sobre os mais diferentes preços da economia.
Pois as reuniões ocorridas em São Paulo e no Rio foram ricas em percepções e informações. Pena que ninguém, a não ser o mercado, teve acesso às discussões. A mídia sistematicamente ignora tais eventos, exceção feita às agências de notícias on-line, cujos clientes são os próprios bancos e corretoras. CartaCapital ouviu alguns dos presentes nos encontros, que não quiseram ser identificados.
Nas exposições iniciais, os diretores do BC Mesquita e Azevedo disseram estar o País menos vulnerável, com reservas internacionais sólidas (acima de 100 bilhões de dólares), mas insuficientes para ter tranqüilidade. Recado dado e assimilado: o BC vai manter a política agressiva de compra de dólares no mercado. Ou seja, a moeda não cairá abaixo de 2 reais. Afirmaram ainda que a alta recente da inflação foi pontual, mas cabe à autoridade monetária "não deixar o repique se espalhar para os demais preços da economia". Leia-se: quem apostava em queda de meio ponto porcentual da taxa Selic na próxima reunião do Copom saiu convicto de que ela cairá não mais que 0,25 ponto.
A seguir, cada representante de banco foi convidado a fazer uma avaliação da economia. Grande parte mostrou preocupação com o cenário de médio prazo. Acham, os economistas, que a demanda continuará forte, com aumento do crédito e do consumo, e que os investimentos serão insuficientes para garantir um crescimento de bom tamanho, sem que a inflação repique. Voltou à cena o famoso PIB potencial, ou quanto um país pode crescer sem pressão sobre os preços. E consideram estar havendo "um fechamento do hiato do produto". Recado para o BC: é preciso continuar com a política de juro alto, para conter um suposto ímpeto consumista da população.
Em uma das reuniões, em São Paulo, um economista ousou discordar. Traçou projeções otimistas sobre a capacidade de produção do Brasil, mas foi logo desautorizado por Mesquita: "Vamos parar de falar de cenários róseos. Vamos discutir os riscos". Curioso. Não combina com os discursos otimistas do chefe dele. Em público, Henrique Meirelles não se cansa de dizer que o Brasil está mais sólido como nunca antes na história. Que está imune a tempestades financeiras. A quatro paredes, não é bem assim. Leitura: para as massas, circo e otimismo. Para os privilegiados, informações e impressões que viram dinheiro.
As ligações estreitas entre o BC e o mercado, no Brasil, não têm paralelo no mundo. Nos Estados Unidos, reino do capitalismo financeiro, o presidente e os governadores do Federal Reserve (Fed) estão submetidos a duras regras. Além de um código de conduta rigoroso, explicitado nos sites de todas as regionais do Fed, duas vezes por ano, o presidente da autoridade monetária (Ben Bernanke) é obrigado por lei a dirigir-se ao Congresso para explicar os objetivos e os resultados da política monetária, com ênfase nos efeitos sobre o crescimento e o desemprego.
Aliás, entre as responsabilidades do Fed está "conduzir a política monetária, por meio de controle da oferta de dinheiro e do crédito na economia, perseguindo o pleno emprego e a estabilidade dos preços". Também está no site da instituição (www.federalreserve.gov).
O quê? Um BC preocupado com o emprego? Certamente é coisa de país atrasado e economistas subdesenvolvidos.
Perante os congressistas, Bernanke, como foram Alan Greenspan e todos os antecessores dele, é submetido a uma sabatina. Nada passa em brancas nuvens. São ocasiões aguardadas por todo o mercado, mas abertas ao público, registradas e televisionadas. Todos têm direito à mesma informação em tempo real.
Consultada por CartaCapital sobre a existência de encontros secretos entre os membros do Fed e o mercado, a porta-voz para a imprensa da regional de Nova York do banco, Linda Ricci, até se surpreendeu, em princípio, com a pergunta. Negou que houvesse qualquer coisa do gênero.
Linda disse que as únicas conversas não reveladas para a imprensa são as trocas de idéias diárias do Fed com os chamados primary dealers, prática comum em todos os BCs mundiais, inclusive o brasileiro. Os primary são instituições financeiras cuja função é indicar ao BC as condições do mercado no dia, dar liquidez aos negócios e participar ativamente dos leilões de títulos públicos. "O teor das conversas não é publicado, mas o fato de elas existirem é público", tratou de esclarecer Linda.
A história dos encontros a portas fechadas entre o BC e o mercado é apenas uma dentre as relações pouco republicanas da autoridade monetária. Há outras. Uma delas, exemplar. Em 14 de março de 2005, segundo noticiou o jornal Valor Econômico, o BC pediu à Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) que organizasse um seminário a portas fechadas, com o objetivo de discutir mudanças nas regras cambiais. Na ocasião houve, ao menos, entrevistas coletivas após o encontro. De todo modo, economistas de universidades mostraram-se descontentes com o rumo das discussões, por não terem sido consultados.
Em uma sessão da Comissão de Finanças e Tributação da Câmara, em 27 de setembro de 2005, foram convidados João Sicsú, professor do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Alexandre Schwartsman (hoje, ABN Amro), então diretor da Área Internacional do BC. O diretor não compareceu e enviou, para representá-lo, Alexandre Geraldo Magela Siqueira, gerente-executivo de Normatização de Câmbio e Capitais Estrangeiros do BC. O propósito era discutir a ampliação do prazo, de 180 para 210 dias, para os exportadores trazerem os dólares obtidos com as vendas externas para o Brasil.
Provocado por Sicsú sobre a reunião na Fiesp, Magela afirmou desconhecer que teria sido uma iniciativa do BC. Ficou o dito pelo não dito, mas se era uma inverdade, perguntou Sicsú, por que ninguém do BC havia protestado contra o texto do Valor Econômico? Não obteve resposta. Na ocasião, Magela negou que a ampliação da chamada cobertura cambial estaria no escopo de um projeto mais abrangente de liberalização desse segmento do mercado. Os fatos posteriores provam que estava. O áudio da sessão está disponível para consulta pública.
A procuradora da República do Distrito Federal, Valquíria Quixadá, encaminhou uma recomendação, em 2005, à Procuradoria-Geral para que solicitasse a Meirelles e ao então ministro da Fazenda, Antonio Palocci, uma justificativa do motivo de se ampliar o prazo para a repatriação dos recursos por meio de resoluções do Conselho Monetário Nacional e não pelo Congresso Nacional. Como resposta, ambos disseram entender que a Lei 4.595, de 1964, assegurava a constitucionalidade das iniciativas.
Valquíria tem outra visão. Segundo ela, as resoluções são inconstitucionais, pois afrontam a Lei 4.131/62, que "disciplina a aplicação do capital estrangeiro e as remessas de valores para o exterior". Da forma como foi feito, diz, "o Conselho Monetário Nacional e o BC usurpam uma competência do Legislativo".
Os fatos: os prazos foram ampliados e, por Medida Provisória, em agosto de 2006, o processo culminou com a permissão para os exportadores deixarem no exterior parte dos recursos das vendas externas. Cabe ao CMN fixar os limites; por ora, 30% podem ficar depositados lá fora. Os restantes 70% têm 360 dias para ingressar no País. O projeto foi aprovado pelo Senado em novembro do ano passado. Não foi um assunto amplamente debatido na sociedade. Não houve consulta pública. Mas o projeto obteve o apoio dos industriais, por causa do câmbio supervalorizado.
Toda a questão, resume João Sicsú, transcende resoluções ou normas pontuais. "Devemos refletir sobre o que é melhor para o País. Devemos refletir sobre a República." Segundo ele, foram conferidos superpoderes ao BC, após a adoção do regime de metas de inflação, pelo Decreto 3.088, de 21 de junho de 1999. Segundo o artigo 1º, as metas devem ser fixadas pelo CMN. Mas o artigo 2º dá total liberdade ao BC de persegui-las da forma que julgar conveniente.
Na avaliação do economista, o BC opera com duas variáveis-chave da economia, juro e câmbio. E nunca dá explicações exatas e técnicas sobre suas atitudes. Exemplo: Meirelles vive a repetir que só mira a meta de inflação, mas é incontestável que a atual política de compras agressivas de dólares no mercado tenta evitar um tombo maior do câmbio, como ficou evidente nas reuniões com os economistas. Questiona Sicsú: "Qual é a política do BC para o câmbio? Mesmo para a taxa de inflação: por que o juro é tão elevado se a inflação passada e a projeção para o futuro são de números abaixo da meta?"
A transparência está em xeque. E não é pouco. A independência formal do BC, como advogam os porta-vozes do mercado, precisaria ter como contrapartida o mais absoluto disclosure (abertura), para usar um termo tão em voga.
É parte da história recente a acusação de favorecimento financeiro que o BC concedeu aos bancos Marka e FonteCindam em 1999, durante o ataque especulativo ao real, que gerou uma brutal desvalorização cambial. Foi 1,6 bilhão de reais, a valores da época. No meio da corrida especulativa, o BC comprara câmbio dos bancos abaixo do preço do mercado para evitar, como justificou a posteriori, a ocorrência de uma crise sistêmica. Os bancos quebraram. Houve condenação judicial dos envolvidos, inclusive de alguns diretores do BC. Todos estão soltos. O banqueiro Salvatore Cacciola fugiu para a Itália. Discutir amplamente questões de política econômica, portanto, não é teoria conspiratória. Está no escopo de quem sonha construir um País mais democrático e republicano.
Luis,
ResponderExcluira grande imprensa ignora a Carta Capital. Ela nunca repercute o que a revista publica.
Deve ser algo pessoal com o Mino Carta.
A nossa "grande" imprensa é, digamos, "seletiva".
ResponderExcluirA diferença está, me parece, exatamente no que os leitores acima sugerem: o PT nunca teve o controle quase absoluto da mídia, como a oposição tem hoje. E a mídia certamente ignora Carta Capital: lembram-se da denúncia sobre a trama dos grandes jornais e uma emissora de rádio para publicar as tais fotos do delegado Bruno? Que forjou o segundo turno, ano passado? Eles não esquecem, ora! Então é o seguinte: ninguém sabe, ninguém viu.
ResponderExcluirDenúncia bombástica que o BC faz reuniões "secretas"(!) com o "mercado". Só mesmo o vendido do Mino Carta para publicar notícia falsa e velha deste jeito. Falsa porque as reuniões são anunciadas e, ao contrário do que diz a matéria, economistas de instituições monetaristas como a Fiesp, a CNI e a Firjan participam. Só se a Carta Capital acordou em 2007 para algo que todo mundo sabe existir desde 2001 pelo menos...
ResponderExcluirQuanto à questão cambial, só alguém que acredita na pior procuradora da República desde o Corcunda Luiz Francisco pode crer que o CMN não tem competência para normatizar este mercado. Enfim, a Carta Capital foi relegada à irrelevância que merece...