Mais uma excelente análise da colunista da Folha de S. Paulo sobre o cenário eleitoral nos Estados Unidos e as perspectivas de um governo Biden nas relações com a China. Íntegra abaixo, vale a leitura.
São reais as chances de que, em menos de cem dias, Joe Biden seja eleito presidente dos EUA.
Analistas em todo o mundo especulam quais seriam as grandes linhas de sua política externa. No esforço de fazer os EUA “voltarem à normalidade”, como diz Biden, a diplomacia americana sob nova administração seria diferente da folia dos anos Trump tanto na forma quanto no conteúdo.
Na forma, a grande mudança estaria no esforço de reparar alianças e restaurar a confiança entre parceiros, algo que Trump, como ninguém, soube destruir. No conteúdo, assumiriam importância na agenda temas como mudança climática e direitos humanos, assuntos desprezados pelo atual presidente.
O grande desafio da política externa de Biden, no entanto, seria conceber e implementar uma estratégia adequada em relação à China.
É preciso reconhecer que, desde que Biden deixou a vice-presidência, em janeiro de 2017, houve uma mudança brutal de percepção nos EUA em relação à China:
1) Passou a haver consenso no establishment americano de que a China representa, no mínimo, um rival estratégico. Para muitos, um inimigo.
2) A avaliação dos americanos sobre a China despencou. 73% dos adultos têm uma visão desfavorável da China, um aumento de 26 pontos percentuais desde 2018, segundo o Pew Research Center.
Nesse contexto, mesmo que quisesse, Biden não teria como simplesmente restaurar as políticas pré-Trump.
Ambos os candidatos defendem ser necessária uma postura mais firme em relação à China. Mas o que exatamente os EUA estariam buscando?
O time de Trump parece acreditar que vale a pena investir em mudança de regime na China. Isso passaria por aniquilar o Partido Comunista Chinês, “uma ameaça para a humanidade”, nas palavras do atual secretário de Estado americano, Mike Pompeo.
Mudança de regime já foi estratégia testada e reprovada, como no Iraque e na Líbia. É ilusão achar que funcionaria com a China.
O time do atual presidente também defende o "decoupling", um descolamento da economia americana em relação à chinesa. Essa estratégia, além de impor custos exorbitantes aos próprios EUA, exigiria, para funcionar, que outros países-chave tomassem partido dos americanos, o que não é garantido.
Depois de quase quatro anos no poder, não é claro o que Trump quer da China.
E Biden? Seria possivelmente mais eficaz que o atual presidente, sobretudo porque seria mais hábil em trabalhar com outros países na defesa dos interesses americanos.
Além disso, temas como liberdade de expressão em Hong Kong e direitos humanos em Xinjiang ganhariam importância na agenda, para desgosto de Pequim.
A tomar pelo rascunho da plataforma democrata para 2020, Biden rejeitaria a lógica de uma nova Guerra Fria e resistiria à imposição unilateral de tarifas.
Diante do sentimento anti-China nos EUA, não surpreende que os dois candidatos estejam disputando quem seria mais duro em relação ao país asiático. A competição retórica amarra Biden e reverberará mandato adentro, caso seja eleito.
É perigoso que Biden permita que Trump indiretamente defina balizas para sua política em relação à China. Quanto mais Trump acusa Biden de ser fraco em relação à China, mais o democrata se sente compelido a mostrar sinais de força.
E menor passa a ser o espaço, necessário, para a cooperação entre as duas grandes potências em temas urgentes como combate à pandemia e recuperação econômica global.
O time de Biden ainda precisa articular de maneira coerente, afinal, o que pretende da China. Ser firme, incluir novos temas na agenda e trabalhar com aliados não bastam para caracterizar uma estratégia.
O grande desafio da política externa de Biden merece esclarecimentos antes das eleições, por mais que o favorito nas pesquisas prefira, é claro, não colocar a mão nesse vespeiro.
Tatiana Prazeres é senior fellow na Universidade de Negócios Internacionais e Economia, em Pequim, foi secretária de comércio exterior e conselheira sênior do diretor-geral da OMC.
São reais as chances de que, em menos de cem dias, Joe Biden seja eleito presidente dos EUA.
Analistas em todo o mundo especulam quais seriam as grandes linhas de sua política externa. No esforço de fazer os EUA “voltarem à normalidade”, como diz Biden, a diplomacia americana sob nova administração seria diferente da folia dos anos Trump tanto na forma quanto no conteúdo.
Na forma, a grande mudança estaria no esforço de reparar alianças e restaurar a confiança entre parceiros, algo que Trump, como ninguém, soube destruir. No conteúdo, assumiriam importância na agenda temas como mudança climática e direitos humanos, assuntos desprezados pelo atual presidente.
O grande desafio da política externa de Biden, no entanto, seria conceber e implementar uma estratégia adequada em relação à China.
É preciso reconhecer que, desde que Biden deixou a vice-presidência, em janeiro de 2017, houve uma mudança brutal de percepção nos EUA em relação à China:
1) Passou a haver consenso no establishment americano de que a China representa, no mínimo, um rival estratégico. Para muitos, um inimigo.
2) A avaliação dos americanos sobre a China despencou. 73% dos adultos têm uma visão desfavorável da China, um aumento de 26 pontos percentuais desde 2018, segundo o Pew Research Center.
Nesse contexto, mesmo que quisesse, Biden não teria como simplesmente restaurar as políticas pré-Trump.
Ambos os candidatos defendem ser necessária uma postura mais firme em relação à China. Mas o que exatamente os EUA estariam buscando?
O time de Trump parece acreditar que vale a pena investir em mudança de regime na China. Isso passaria por aniquilar o Partido Comunista Chinês, “uma ameaça para a humanidade”, nas palavras do atual secretário de Estado americano, Mike Pompeo.
Mudança de regime já foi estratégia testada e reprovada, como no Iraque e na Líbia. É ilusão achar que funcionaria com a China.
O time do atual presidente também defende o "decoupling", um descolamento da economia americana em relação à chinesa. Essa estratégia, além de impor custos exorbitantes aos próprios EUA, exigiria, para funcionar, que outros países-chave tomassem partido dos americanos, o que não é garantido.
Depois de quase quatro anos no poder, não é claro o que Trump quer da China.
E Biden? Seria possivelmente mais eficaz que o atual presidente, sobretudo porque seria mais hábil em trabalhar com outros países na defesa dos interesses americanos.
Além disso, temas como liberdade de expressão em Hong Kong e direitos humanos em Xinjiang ganhariam importância na agenda, para desgosto de Pequim.
A tomar pelo rascunho da plataforma democrata para 2020, Biden rejeitaria a lógica de uma nova Guerra Fria e resistiria à imposição unilateral de tarifas.
Diante do sentimento anti-China nos EUA, não surpreende que os dois candidatos estejam disputando quem seria mais duro em relação ao país asiático. A competição retórica amarra Biden e reverberará mandato adentro, caso seja eleito.
É perigoso que Biden permita que Trump indiretamente defina balizas para sua política em relação à China. Quanto mais Trump acusa Biden de ser fraco em relação à China, mais o democrata se sente compelido a mostrar sinais de força.
E menor passa a ser o espaço, necessário, para a cooperação entre as duas grandes potências em temas urgentes como combate à pandemia e recuperação econômica global.
O time de Biden ainda precisa articular de maneira coerente, afinal, o que pretende da China. Ser firme, incluir novos temas na agenda e trabalhar com aliados não bastam para caracterizar uma estratégia.
O grande desafio da política externa de Biden merece esclarecimentos antes das eleições, por mais que o favorito nas pesquisas prefira, é claro, não colocar a mão nesse vespeiro.
Tatiana Prazeres é senior fellow na Universidade de Negócios Internacionais e Economia, em Pequim, foi secretária de comércio exterior e conselheira sênior do diretor-geral da OMC.
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