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Ricardo Kotscho: o fenômeno Bolsonaro: burro ele não é

"Acho que a humanidade é um desastre e, simultaneamente, uma beleza" (D. Pedro Casaldáliga, profeta e poeta).
Bolsonaro pode ser tudo isso que falam dele. Mas burro ele não é.
Burro não se elege nem síndico de prédio.
Com sete mandatos de deputado federal, já elegeu quase toda a família e chegou à Presidência da República montado na onda conservadora contra a corrupção, o petismo e a velha política, graças a uma facada providencial, que o tirou dos debates, e à Lava Jato, que detonou o sistema político.
Em junho, quando estava balançando no cargo, em meio à pandemia e à inércia do governo assolado por crises diversas, deu um cavalo de pau e jogou para o alto todas as bandeiras da campanha eleitoral.
Depois de despachar o justiceiro Sergio Moro, aliou-se ao Centrão da velhíssima política do baixo clero, de onde ele saiu, parou de desafiar os outros poderes, deu um chega pra lá na ala ideológica e, no embalo da ajuda emergencial de R$ 600, pôs-se a viajar pelo país com um chapéu de couro na cabeça, já em plena campanha para a reeleição.
Se a eleição fosse hoje, ganharia por W.O., correndo sozinho na pista.
Era agora um outro Bolsonaro, que trocou de turma e mudou até o penteado, nada a ver com o original.
"Inacreditável! Como você explica isso?", reagiu a minha bolha, os quarentenados, ao ver a manchete do jornal com a nova pesquisa Datafolha, mostrando que Bolsonaro bateu recorde de aprovação (chegou a 37%) e a rejeição caiu dez pontos (para 34%), invertendo a curva de junho, em que tinha 32% de ótimo ou bom e 44% de ruim e péssimo.
O que aconteceu de tão grave?
Não foi só por causa dos R$ 600, já que o crescimento da aprovação se deu em todas as regiões do país, classes sociais e faixas etárias.
Para começar, acossado pela prisão de Fabrício Queiroz, Bolsonaro recolheu-se ao silêncio, fechou o "cercadinho" da imprensa e passou a fazer política como sempre foi feita no país, o popular é dando que se recebe.
Bolsonaro é o retrato e o produto do país que o elegeu. Como dizia o costureiro e deputado Clodovil Hernandes, "boi preto conhece boi preto".
Boa parte dos brasileiros se identifica com seu estilo bronco, tocando a vida na base do deixa que eu chuto e do leve vantagem em tudo, e o resto que se dane.
Aquele governo eleito em 2018 é coisa do passado, acabou.
Na versão 2020, o novo "pai dos pobres", bancado e eleito por banqueiros e patos da Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo), com o aval de Paulo Guedes, saiu do gueto da extrema-direita miliciano-militar-neopentecostal e avançou na chamada "nova classe média", que a pandemia e a política econômica jogaram no acostamento.
O capitão de cara antes sempre enfezada agora só quer correr para o abraço, sem dar muita bola para essas frescuras do teto de gastos e responsabilidade fiscal da turma de Paulo Guedes, que em breve fará companhia a Sergio Moro.
Bolsonaro agora não precisa mais do aval de ninguém.
Ganhou voo próprio e nem carece de partido. Bastam-lhe as redes antissociais e os votos do Centrão, a retaguarda dos generais, a reza dos bispos e uma militância aguerrida, o bolsonarismo raiz, cevado em anos de ostracismo, recalques e frustrações.
"Agora é nóis!", parecem dizer ao saudar o "Mito", enquanto a oposição ainda procura o rumo de casa, sem entender o que está acontecendo.
Só se surpreende com o resultado do novo Datafolha quem não frequenta a vida real e a esgotosfera das redes, e ainda tem aquela imagem idílica do povo brasileiro, hospitaleiro e tolerante, o "homem cordial" de que falava o historiador Sergio Buarque, o pai do Chico, aquele comunista.
No Brasil, voltamos aos tempos da Guerra Fria: metade é a favor de Bolsonaro e, a outra, é "comunista".
Não é um fenômeno?
Os tempos mudaram. Salve-se quem puder.
Vida que segue.



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