A pandemia escancarou a desigualdade social existente no Brasil. Dessa verdade não conseguiremos nos livrar por um bom tempo. Mas a covid-19 revelou também, de forma cristalina, a real situação das políticas públicas do país. O exemplo que todos pensariam é o da saúde, pois o SUS nos salvou de uma tragédia que poderia ter sido pior, porém, as pessoas mais pobres, que não tiveram o privilégio da medicina privada da classe média e dos ricos, foram as que mais faleceram da doença. O caso da educação espelha uma fragilidade ainda maior do Estado brasileiro, algo que ficará bem claro com a volta às aulas, escreve o colunista do Valor em artigo publicado sexta, 28/8. Continua a seguir.
O tema do retorno às atividades escolares é bastante complexo. Por um lado, os mais pobres são os mais prejudicados com a ausência de aulas presenciais e da falta da escola como lugar de aprendizado e proteção social. Basta lembrar que o ensino virtual não alcançou um pouco mais de 25% dos alunos das escolas públicas brasileiras, o que é uma tragédia, dado que já há um enorme fosso entre a educação pública e as escolas privadas, gerando aí um importante fator de perpetuação da desigualdade em termos intergeracionais.
O argumento a favor da volta imediata às aulas ganha o reforço dos exemplos internacionais. Especialmente na Europa já está ocorrendo uma volta planejada, gradativa e muito cuidadosa do pleno funcionamento das escolas. Geralmente são as crianças menores que voltam primeiro, porque alguns estudos revelam que elas são menos afetadas pelas formas mais duras da doença e têm baixo potencial de transmissão. No entanto, ainda não há conhecimento científico consolidado para dar respostas exatas sobre esse problema.
Basta lembrar que artigo recentemente publicado no “Journal of Pediatrics”, escrito por pesquisadores de Harvard, mostrou que crianças infectadas tinham uma quantidade viral maior do que adultos que estavam em UTIs. Tal conclusão gera uma enorme angústia, especialmente em países que os menores de idade moram com gente idosa, como acontece em boa parte dos lares mais pobres do Brasil.
Entra aqui, então, o outro lado do problema: há aspectos das políticas públicas brasileiras, em combinação com características de nossa sociedade, que dificultam a mera transposição dos exemplos internacionais para o Brasil. Cinco obstáculos são importantes de serem levados em conta.
O primeiro é que todos os países que tiveram uma volta bem-sucedida às aulas já tinham reduzido a incidência da covid-19. O Brasil está num longo platô, há mais de dois meses, com uma média móvel de cerca de mil mortes por dia. O fracasso da política sanitária comandada pelo Ministério da Saúde é a principal causa de o país ainda não ter retornado às aulas. Isso porque o SUS tem uma coordenação federativa da União, que é mais importante nos casos que ultrapassam fronteiras estaduais. É preciso dizer claramente que foi o fracasso de uma política pública (a de saúde) que está impedindo que outra política pública (a de educação) possa voltar às suas atividades normais.
O segundo obstáculo diz respeito à falta de coordenação e cooperação entre os níveis de governo. Retomar as atividades de aula exigirá mais gastos e apoio para governos subnacionais, principalmente os locais, que têm menos capacidades estatais. As redes de ensino são muito desiguais entre si e o gasto per capita global por aluno na educação básica é bem menor do que o da média das nações da OCDE. Seria preciso, portanto, que o governo federal ajudasse Estados e, sobretudo, municípios, dado o impacto da pandemia no custo da reorganização escolar.
Só que o governo Bolsonaro já vetou essa possibilidade. Afinal, o presidente precisa de recursos para fazer obras em busca do apoio clientelista do Centrão, dinheiro para garantir a retaguarda dos militares, com um aumento descomunal das despesas com a Defesa para um país que não tem nenhuma ameaça geopolítica séria, além de verbas para manter o auxílio emergencial e assim tentar segurar o voto dos mais pobres. Essa última intenção é a mais nobre e deveria ser perseguida por todos os governantes do país, porém, repassar esses valores sem ter escolas de boa qualidade para crianças e jovens carentes é reduzir a vulnerabilidade presente das famílias, mas perpetuar a desigualdade dos brasileiros no futuro, como mostram os estudos científicos.
O plano intergovernamental é importante ainda para coordenar melhor as regras de funcionamento das escolas pós-pandemia, algo que não está sendo feito porque o Brasil não tem um Sistema Nacional de Educação, que teria fóruns federativos para os três entes federativos dialogarem, tomarem decisões conjuntas e criarem mecanismos colaborativos. Sem isso, aumentaremos a desigualdade entre os alunos das diversas redes e entre escolas públicas e privadas.
Um terceiro obstáculo para a volta às aulas é a realidade das redes de ensino e das escolas brasileiras quando comparadas aos sistemas educacionais dos países desenvolvidos.
As diferenças são gritantes. Por exemplo, o tema da distância adequada entre as crianças, o que exige salas com menos alunos do que a média do que existe nas escolas públicas brasileiras. Será possível no espaço escolar típico do Brasil, e com os recursos estaduais e municipais existentes, ter turmas com menos pessoas? Uma grande parte das nossas escolas não têm saneamento básico e, pasmem, banheiros adequados. Como garantir medidas de higiene mais rígidas para evitar a propagação da doença?
Entre os obstáculos presentes na situação atual das redes educacionais está o fato de que boa parte dos professores do país dão aula em mais de uma escola, em particular nas superpopulosas regiões metropolitanas. Assim, o professorado se torna um potencial vetor da doença nos ambientes urbanos mais adensados. Os argumentos usados até agora têm se esquecido que nas escolas não há só alunos. A mobilidade de uma escola à outra de um grande número de docentes, que se somam a outros profissionais da educação, é um tipo de risco que não há nos países citados com modelo para o Brasil.
Em todos os países citados como exemplo de volta às aulas o professor é de tempo integral em uma unidade escolar. Isso faz uma enorme diferença, mostram os estudos, para o aprendizado dos alunos, para a construção de um clima escolar mais positivo e colaborativo, bem como para a motivação e responsabilização do corpo docente. Agora se descobre que a precariedade das escolas e da carreira do professor no Brasil dificulta a reorganização escolar pós-pandemia, porque as condições existentes não protegem nem o bem-estar das crianças nem o dos profissionais.
Um quarto obstáculo aparece primeiramente como uma vulnerabilidade social, mas que também é uma fragilidade das políticas públicas brasileiras. Trata-se da falta de ação coordenada da educação com as políticas de assistência social. Como parte das famílias brasileiras vive em condições habitacionais insalubres, inclusive um contingente de profissionais da educação, e uma parcela grande das crianças tem adultos idosos em suas residências, a volta às aulas pode ter efeitos indesejados. Essa desigualdade não há nos países com os quais estamos sendo comparados. O que se pode fazer do ponto de vista das políticas públicas é tentar mitigar as consequências disso e fazer um acompanhamento cuidadoso desse caminho que vai da escola à casa das pessoas.
Para realizar essa ação comunitária, no entanto, tem de haver uma maior ação intersetorial entre Educação, Assistência Social e Saúde, algo raro no país. É importante frisar que essa conexão entre os três setores já deveria ter funcionado nos últimos meses de pandemia, para, por exemplo, acompanhar mais as crianças em termos de aprendizado e alimentação, ou acompanhar as angústias dessas famílias que não tinham a menor condição de realizar um apoio a seus filhos.
Por fim, existe o obstáculo de tornar a defesa da Educação uma prioridade governamental em meio a mais de cem mil mortes, principalmente do governo federal, como comandante do sistema educacional. Todavia, seu maior objetivo é fazer política para reeleger o presidente. Definitivamente, Bolsonaro prefere políticas que gerem resultados imediatos e que não necessitem de diálogo, negociação e ajustes gerenciais a todo instante. Num cenário como esse, a política educacional é a que mais dá trabalho, que mais precisa de um arranjo com múltiplos atores, que mais depende de intersetorialidade, além de ser a que mais tempo demora para dar resultados.
Só resolveremos o problema da volta às aulas, algo fundamental para evitar que a desigualdade aumente ainda mais no país, se as ações de Saúde nos tirarem do platô de casos e mortes, for construída uma maior cooperação intergovernamental, houver uma redução da precariedade das escolas e da carreira dos professores (principalmente nos centros urbanos), caso se reforce a intersetorialidade na ação junto às famílias mais pobres e que, acima de tudo, a política educacional ganhe a centralidade necessária para garantirmos uma vida melhor para nossas crianças e jovens. Em suma, a solução está em melhoria das políticas públicas, de modo que colocar os alunos em escolas sem as devidas ações aqui apresentadas, é, no mínimo, uma temeridade, e, na pior das hipóteses, uma irresponsabilidade.
Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas, escreve neste espaço quinzenalmente
O tema do retorno às atividades escolares é bastante complexo. Por um lado, os mais pobres são os mais prejudicados com a ausência de aulas presenciais e da falta da escola como lugar de aprendizado e proteção social. Basta lembrar que o ensino virtual não alcançou um pouco mais de 25% dos alunos das escolas públicas brasileiras, o que é uma tragédia, dado que já há um enorme fosso entre a educação pública e as escolas privadas, gerando aí um importante fator de perpetuação da desigualdade em termos intergeracionais.
O argumento a favor da volta imediata às aulas ganha o reforço dos exemplos internacionais. Especialmente na Europa já está ocorrendo uma volta planejada, gradativa e muito cuidadosa do pleno funcionamento das escolas. Geralmente são as crianças menores que voltam primeiro, porque alguns estudos revelam que elas são menos afetadas pelas formas mais duras da doença e têm baixo potencial de transmissão. No entanto, ainda não há conhecimento científico consolidado para dar respostas exatas sobre esse problema.
Basta lembrar que artigo recentemente publicado no “Journal of Pediatrics”, escrito por pesquisadores de Harvard, mostrou que crianças infectadas tinham uma quantidade viral maior do que adultos que estavam em UTIs. Tal conclusão gera uma enorme angústia, especialmente em países que os menores de idade moram com gente idosa, como acontece em boa parte dos lares mais pobres do Brasil.
Entra aqui, então, o outro lado do problema: há aspectos das políticas públicas brasileiras, em combinação com características de nossa sociedade, que dificultam a mera transposição dos exemplos internacionais para o Brasil. Cinco obstáculos são importantes de serem levados em conta.
O primeiro é que todos os países que tiveram uma volta bem-sucedida às aulas já tinham reduzido a incidência da covid-19. O Brasil está num longo platô, há mais de dois meses, com uma média móvel de cerca de mil mortes por dia. O fracasso da política sanitária comandada pelo Ministério da Saúde é a principal causa de o país ainda não ter retornado às aulas. Isso porque o SUS tem uma coordenação federativa da União, que é mais importante nos casos que ultrapassam fronteiras estaduais. É preciso dizer claramente que foi o fracasso de uma política pública (a de saúde) que está impedindo que outra política pública (a de educação) possa voltar às suas atividades normais.
O segundo obstáculo diz respeito à falta de coordenação e cooperação entre os níveis de governo. Retomar as atividades de aula exigirá mais gastos e apoio para governos subnacionais, principalmente os locais, que têm menos capacidades estatais. As redes de ensino são muito desiguais entre si e o gasto per capita global por aluno na educação básica é bem menor do que o da média das nações da OCDE. Seria preciso, portanto, que o governo federal ajudasse Estados e, sobretudo, municípios, dado o impacto da pandemia no custo da reorganização escolar.
Só que o governo Bolsonaro já vetou essa possibilidade. Afinal, o presidente precisa de recursos para fazer obras em busca do apoio clientelista do Centrão, dinheiro para garantir a retaguarda dos militares, com um aumento descomunal das despesas com a Defesa para um país que não tem nenhuma ameaça geopolítica séria, além de verbas para manter o auxílio emergencial e assim tentar segurar o voto dos mais pobres. Essa última intenção é a mais nobre e deveria ser perseguida por todos os governantes do país, porém, repassar esses valores sem ter escolas de boa qualidade para crianças e jovens carentes é reduzir a vulnerabilidade presente das famílias, mas perpetuar a desigualdade dos brasileiros no futuro, como mostram os estudos científicos.
O plano intergovernamental é importante ainda para coordenar melhor as regras de funcionamento das escolas pós-pandemia, algo que não está sendo feito porque o Brasil não tem um Sistema Nacional de Educação, que teria fóruns federativos para os três entes federativos dialogarem, tomarem decisões conjuntas e criarem mecanismos colaborativos. Sem isso, aumentaremos a desigualdade entre os alunos das diversas redes e entre escolas públicas e privadas.
Um terceiro obstáculo para a volta às aulas é a realidade das redes de ensino e das escolas brasileiras quando comparadas aos sistemas educacionais dos países desenvolvidos.
As diferenças são gritantes. Por exemplo, o tema da distância adequada entre as crianças, o que exige salas com menos alunos do que a média do que existe nas escolas públicas brasileiras. Será possível no espaço escolar típico do Brasil, e com os recursos estaduais e municipais existentes, ter turmas com menos pessoas? Uma grande parte das nossas escolas não têm saneamento básico e, pasmem, banheiros adequados. Como garantir medidas de higiene mais rígidas para evitar a propagação da doença?
Entre os obstáculos presentes na situação atual das redes educacionais está o fato de que boa parte dos professores do país dão aula em mais de uma escola, em particular nas superpopulosas regiões metropolitanas. Assim, o professorado se torna um potencial vetor da doença nos ambientes urbanos mais adensados. Os argumentos usados até agora têm se esquecido que nas escolas não há só alunos. A mobilidade de uma escola à outra de um grande número de docentes, que se somam a outros profissionais da educação, é um tipo de risco que não há nos países citados com modelo para o Brasil.
Em todos os países citados como exemplo de volta às aulas o professor é de tempo integral em uma unidade escolar. Isso faz uma enorme diferença, mostram os estudos, para o aprendizado dos alunos, para a construção de um clima escolar mais positivo e colaborativo, bem como para a motivação e responsabilização do corpo docente. Agora se descobre que a precariedade das escolas e da carreira do professor no Brasil dificulta a reorganização escolar pós-pandemia, porque as condições existentes não protegem nem o bem-estar das crianças nem o dos profissionais.
Um quarto obstáculo aparece primeiramente como uma vulnerabilidade social, mas que também é uma fragilidade das políticas públicas brasileiras. Trata-se da falta de ação coordenada da educação com as políticas de assistência social. Como parte das famílias brasileiras vive em condições habitacionais insalubres, inclusive um contingente de profissionais da educação, e uma parcela grande das crianças tem adultos idosos em suas residências, a volta às aulas pode ter efeitos indesejados. Essa desigualdade não há nos países com os quais estamos sendo comparados. O que se pode fazer do ponto de vista das políticas públicas é tentar mitigar as consequências disso e fazer um acompanhamento cuidadoso desse caminho que vai da escola à casa das pessoas.
Para realizar essa ação comunitária, no entanto, tem de haver uma maior ação intersetorial entre Educação, Assistência Social e Saúde, algo raro no país. É importante frisar que essa conexão entre os três setores já deveria ter funcionado nos últimos meses de pandemia, para, por exemplo, acompanhar mais as crianças em termos de aprendizado e alimentação, ou acompanhar as angústias dessas famílias que não tinham a menor condição de realizar um apoio a seus filhos.
Por fim, existe o obstáculo de tornar a defesa da Educação uma prioridade governamental em meio a mais de cem mil mortes, principalmente do governo federal, como comandante do sistema educacional. Todavia, seu maior objetivo é fazer política para reeleger o presidente. Definitivamente, Bolsonaro prefere políticas que gerem resultados imediatos e que não necessitem de diálogo, negociação e ajustes gerenciais a todo instante. Num cenário como esse, a política educacional é a que mais dá trabalho, que mais precisa de um arranjo com múltiplos atores, que mais depende de intersetorialidade, além de ser a que mais tempo demora para dar resultados.
Só resolveremos o problema da volta às aulas, algo fundamental para evitar que a desigualdade aumente ainda mais no país, se as ações de Saúde nos tirarem do platô de casos e mortes, for construída uma maior cooperação intergovernamental, houver uma redução da precariedade das escolas e da carreira dos professores (principalmente nos centros urbanos), caso se reforce a intersetorialidade na ação junto às famílias mais pobres e que, acima de tudo, a política educacional ganhe a centralidade necessária para garantirmos uma vida melhor para nossas crianças e jovens. Em suma, a solução está em melhoria das políticas públicas, de modo que colocar os alunos em escolas sem as devidas ações aqui apresentadas, é, no mínimo, uma temeridade, e, na pior das hipóteses, uma irresponsabilidade.
Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas, escreve neste espaço quinzenalmente
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