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O comportamento e a Covid-19

O que faz alguém aderir ao fumo, mesmo sabendo que poderá ter câncer? Por que negligenciar o uso de preservativos, se existe a ameaça de doenças como a sífilis e a Aids? Diante de tantas notícias sobre a pandemia, como deixar de se preocupar em contrair a Covid-19? Notícias e estudos alertam para os riscos do relaxamento de medidas de proteção contra o novo coronavírus: abandono ou uso inadequado de máscaras, aglomerações, desrespeito às recomendações de distanciamento social ou, ainda, retomada de atividades que expõem pessoas ao risco de infecção, especialmente aqueles que podem desenvolver a forma mais grave da doença, como idosos ou pacientes com doenças crônicas, escreve Esper Kallás a Folha de São Paulo, em artigo publicado segunda, 17/8. Continua a seguir.

A interferência na percepção de risco ocorre em três níveis. O primeiro, e mais importante, é resultado de ação externa sobre a percepção individual. Políticas públicas, com normas de conduta, regras eventualmente sujeitas à punição em caso de descumprimento, como multas para quem não usa cinto de segurança, ou a obrigatoriedade do uso de máscaras em transporte público, são alguns exemplos de interferência externa.
Da mesma forma, a grande mídia, as atitudes e o bom exemplo de pessoas reconhecidamente formadoras de opinião, como presidentes, ministros, governadores, prefeitos e outras figuras públicas, também interferem nas decisões individuais. Inevitavelmente, aqueles com grande visibilidade podem influenciar significativamente o comportamento de grande número de pessoas.
A percepção de risco também depende de quem está em nosso entorno. Este é o segundo nível de interferência, seguindo a classificação de especialistas. Como pais, amigos, colegas e conhecidos se comportam mediante uma situação de risco? Exemplos e atitudes ao nosso redor podem interferir nas nossas decisões, especialmente quando trazem implicações sobre a maneira como nos socializamos.
Uma sociedade de hábitos mais disciplinados apresenta comportamentos individuais ressonantes, com respeito às recomendações e normas de proteção, por exemplo. No caso da Covid-19, isso inclui uma maior procura por testes, autoisolamento, manutenção de distanciamento social e uso de máscaras.
O terceiro nível diz respeito à decisão individual. Envolve conhecimento pessoal sobre o assunto e, por isso, depende também do nível socioeducacional de cada um, além de seu acesso a informações de fontes confiáveis. É possível imaginar o quanto as mídias sociais podem ser benéficas, à medida que propagam dados com rapidez, ou danosas, quando os disseminam com qualidade duvidosa. Este terceiro nível também é suscetível à interferência de crenças pessoais, pensamentos mágicos e viés de otimismo: “Ah! Isso nunca vai acontecer comigo...”
Todos os três níveis de interferência na percepção de risco ocorrem com dinamismo e sob a influência do tempo. Muitas vezes, essa percepção sofre mudanças ocasionadas pela “fadiga”. Basta observar o pânico comum no início da pandemia no Brasil e compará-lo ao que acontece agora: as pessoas não deixaram de morrer de Covid-19, mas muitos hábitos seguros deixaram de ser mantidos por vários. Hoje, há mais condescendência e relaxamento.
Não é tarefa simples mudar o comportamento individual e coletivo.
É difícil, mas não impossível, interferir na ação de políticos e figuras públicas. Podemos, também, direcionar nossa atitude, influenciando positivamente as pessoas ao nosso redor. Enfatizar as medidas de segurança contra a Covid-19, bem como disseminar informações de qualidade, são ações de grande importância. Assim como é de grande importância evitar a propagação de informações falsas ou infundadas, que podem acarretar danos de difícil reparação.
Estas são ferramentas poderosas que temos em mãos. Os exemplos, para o bem e para o mal, são multiplicadores.
Esper Kallás é médico infectologista, é professor titular do departamento de moléstias infecciosas e parasitárias da Faculdade de Medicina da USP e pesquisador na mesma universidade.


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