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Época: as incertezas do formato do trabalho pós-quarentena

Cássia Almeida, Henrique Gomes Batista, Renato Grandelle e Ana Carolina Diniz escrevem excelente reportagem na edição desta semana da revista Época, vale muito ler o longo texto sobre o pós-pandemia no mundo do trabalho. Íntegra abaixo.

Atividades físicas e aula de espanhol on-line são os dois novos compromissos que Núbia Castro, gerente de projetos de uma multinacional de tecnologia, em São Paulo, conseguiu encaixar em sua rotina depois de ser mandada para casa, em regime de home office, em 13 de março. Ela consegue intercalá-los com a jornada de dez horas de trabalho, se diz satisfeita com a nova vida e não acha que voltará tão cedo a dar expediente presencial na empresa. “Recebemos um questionário sobre nosso sentimento em relação a voltar para o escritório, mas acho que o retorno foi tão negativo que ninguém voltou a falar do assunto”, contou. Já Bruno Hartz, funcionário do Tribunal de Contas da União (TCU) no Rio de Janeiro, que mora a 20 minutos do trabalho, não vê a hora de voltar. “Quando vou ao trabalho, fico focado oito horas direto. Em casa, não trabalho direito, não dou atenção direito aos filhos, não faço as atividades domésticas direito. Estou dormindo menos. Tenho almoçado no computador. No final, estou trabalhando até as 23 horas”, lamentou.
As dores e vantagens do trabalho remoto voltaram às discussões nas empresas e famílias em razão de dois acontecimentos: a redução gradual de novos casos de Covid-19 em parte das capitais do país, que tem acelerado a retomada das atividades, e a volta às aulas, que já é realidade em algumas cidades e deverá ganhar escala a partir de setembro. Os estudantes podem estar prestes a colocar a mochila nas costas novamente, mas, diante dos dilemas do home office, nem todos os pais voltarão aos escritórios. As empresas estão colocando na ponta do lápis o custo da volta sem uma vacina, numa equação de difícil solução. É preciso oferecer mais espaço para assegurar o distanciamento, mas, ao mesmo tempo, já se sabe que não é mais necessário ter tanta gente no escritório para fazer o que as empresas conseguiram executar com todos em casa.
Núbia Castro, funcionária de uma multinacional em São Paulo, se adaptou ao modelo remoto e acredita que ainda é cedo para voltar para a empresa. Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo
Núbia Castro, funcionária de uma multinacional em São Paulo, se adaptou ao modelo remoto e acredita que ainda é cedo para voltar para a empresa. Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo
Desde o início de maio, quando o IBGE começou a medir os impactos da pandemia no mercado de trabalho semanalmente, foram identificados 8,9 milhões de pessoas que estão trabalhando em casa. E, mesmo com a retomada das atividades, na primeira semana de julho esse contingente permanecia no mesmo patamar. Só recentemente, na segunda semana de julho, essa situação começou a mudar: 700 mil pessoas voltaram aos escritórios. Mas o retorno ainda é permeado de incertezas. Muitos temem deixar suas casas porque não querem se expor à transmissão viral. Enquanto outros acreditam que sua ausência na empresa pode significar desleixo ou desinteresse, dando margem para que sejam demitidos num período de crise profunda e dificuldade de recolocação profissional.
Carlos Machado de Freitas, coordenador-geral do Observatório Covid-19 da Fiocruz, lista uma série de medidas básicas a serem adotadas por empresas de qualquer porte e que já fazem parte da rotina da população, como a oferta de máscaras, de álcool em gel e a implantação de um ambiente mais arejado, onde o ar possa circular. Os detalhes começam a se tornar mais complexos conforme se planeja o distanciamento social interno dentro de uma empresa. Funcionários devem estar afastados por, no mínimo, 2 metros e preferencialmente com barreiras físicas entre suas mesas, tais como as já vistas no caixa de supermercados e no balcão de farmácias.
Outro procedimento necessário é ampliar a testagem, identificando pessoas que manifestem sintomas relacionados à Covid-19 e fazendo o rastreio de funcionários com quem elas tiveram contato, colocando-os imediatamente em quarentena. São medidas que requerem investimento e planejamento num período em que muitas empresas demitem justamente em decorrência da crise. “O empregado deve ficar o menor tempo possível em seu trabalho. Se havia duas pessoas que trabalhavam juntas por oito horas, o ideal seria que fizessem turnos diferentes e de menor duração”, explicou Freitas, da Fiocruz.
Cada vez fica mais claro, contudo, que, apesar dos protocolos a serem seguidos, não haverá modelo único de volta ao trabalho. Há desde grandes empresas que voltaram há um mês aos escritórios àquelas que aboliram de vez um endereço físico. Na Froneri, multinacional fabricante de sorvetes e licenciadora de marcas como Nestlé, Lacta e Oreo, o retorno ao trabalho presencial da parte administrativa em Jacarepaguá, na Zona Oeste do Rio, está completando quatro semanas, sem casos de Covid-19, com 80 funcionários em rodízio que permite no máximo 60% dos trabalhadores no local. “É o momento de voltar? Eu acho que uma vez estando avalizado e recomendado pelas autoridades sanitárias, e baseado em nossa experiência do ganho de produtividade do retorno, é o momento, sem abrir mão de toda a segurança”, explicou Sudário Martins, diretor-geral da Froneri Brasil.
A empresa, que faturou R$ 715 milhões no ano passado, tomou a decisão com base em experiências em suas unidades da Europa, do Oriente Médio, da Argentina, Austrália, Filipinas e África do Sul. A maior mudança específica para o Brasil foi no transporte, com a criação de quatro rotas exclusivas de ônibus privados e o pagamento de Uber ou táxi para outros colaboradores. A fábrica, que ficou fechada entre final de abril e começo de maio, já havia voltado a funcionar com seus 300 funcionários e apenas cinco casos de Covid-19 registrados. O RH mapeou cada funcionário de grupo de risco ou com familiares vulneráveis em casa. A limpeza do escritório, que era semanal, passou a ser diária. Na fábrica, onde ocorria duas vezes por dia, passou a ser repetida a cada quatro horas.
Para voltar foi preciso pensar não só no transporte e no espaço entre os funcionários, como também em cada pequeno aspecto da rotina. Foram adotados novos protocolos de vestiário, o self-service no refeitório deu lugar a um menu à la carte, foram criadas embalagens plásticas para depositar as máscaras durante a refeição e os funcionários receberam aulas sobre como vestir, usar e manusear o adereço de proteção.
Outras empresas já traçaram estratégias para transformar, ao menos parcialmente, o home office forçado em prática definitiva. Em São Paulo, o Metrô colocará 600 funcionários da área administrativa trabalhando em casa, desocupando 13 mil metros quadrados, divididos em três prédios. A Petrobras já anunciou que manterá metade do pessoal administrativo em casa trabalhando. São 10 mil funcionários. O Banco do Brasil também vai pôr 30% em home office permanente, com a devolução de 16 prédios. Já o Google postergou em um ano a estratégia definitiva e anunciou que pretende deixar seus empregados em home office até o fim de junho de 2021.
Em empresas menores, contudo, a solução tem sido pensada caso a caso. No escritório de advocacia Kincaid — Mendes Vianna, na unidade do Rio, com 100 funcionários, as atividades deverão ser retomadas no fim de agosto, de forma escalonada, seguindo protocolos sanitários. Já a sede paulista entregou a sala que ocupava na Avenida Juscelino Kubitschek, no Itaim, e agora testa o trabalho com 100% de home office e uso de coworking apenas para reuniões. “Vamos testar os diferentes escritórios compartilhados da cidade. Pode ser bom fechar com alguma rede que nos permita, em um mês, fazer uma reunião na região da Berrini e, no outro, ter uma estação de trabalho na Paulista”, afirmou Lucas Leite Marques, sócio da banca.
Em países onde a pandemia apresenta recuo consistente, como é o caso do Reino Unido, há a expectativa de que, até o final do ano, dois terços dos britânicos tenham retornado ao escriório. Esse movimento foi estimulado, em parte, pelo próprio premiê Boris Johnson, que deu declarações, em julho, convocando a população a voltar. Entre as firmas londrinas que retomaram as atividades estão as filiais das consultorias PwC e Deloitte. No caso da PwC, a empresa calcula que, até o final de setembro, pelo menos 50% dos funcionários terão voltado a dar expediente, mesmo que parcialmente, no escritório, segundo o The Guardian. Contudo, ainda de acordo com o jornal, a avaliação das 30 maiores empresas da City of London, o centro financeiro da capital britânica, é que, no máximo, 40% das equipes voltarão ao trabalho fisicamente nos próximos meses.
Na França, onde o presidente Emmanuel Macron conclamou a volta da normalidade em maio e deu diretrizes sanitárias estritas às empresas, a subida dos novos casos de contágio coloca em xeque a retomada. Na primeira semana de julho, o número de novos casos no país alcançou o mesmo patamar de dias antes do lockdown, anunciado em março, o que já faz as autoridades francesas falarem em uma “nova onda”.
Com o ingrediente a mais da crise econômica, a única coisa certa até agora é que o primeiro a perder será o mercado de locação de imóveis comerciais. O baque que o setor já sofreu poderá se tornar permanente. Uma pesquisa inédita da consultoria Cushman & Wakefield, especializada em imóveis corporativos, mostra que 30% de mais de 200 grandes empresas pretendem diminuir o espaço físico dos escritórios. Dados da Apsa, uma das maiores administradoras de imóveis no Rio, corroboram essa tendência. No segundo trimestre havia 15 mil salas, lojas e galpões desocupados, um aumento de 50% no estoque na comparação com o primeiro trimestre. Muitos deles são imóveis de até 50 metros quadrados.
Até mesmo nas ruas mais disputadas do eixo Rio-SP, a expectativa é que o burburinho se traduza em mudança nas estatísticas já no terceiro trimestre. É o caso da Faria Lima, em São Paulo, e de ruas centrais do Rio, que contam com contratos longos, com multas altas em caso de rescisão, o que faz o inquilino só devolver o imóvel diante da certeza de uma mudança definitiva de cenário. “A Faria Lima tem uma vacância baixíssima, em torno de 2,6%. Se a empresa decidir desocupar o escritório e depois perceber que foi uma decisão errada, poderá não encontrar mais vaga”, explicou Felipe Robert Giuliano, diretor de locação da CBRE, empresa que atua no mercado imobiliário.
A baixa vacância, contudo, ainda não contempla a saída da XP do centro financeiro paulistano. A empresa, que ocupa dois prédios de 30 andares na região, determinou home office definitivo e manterá apenas uma base na Faria Lima para receber alguns clientes. Uma pesquisa da Mercer, uma das maiores consultorias na área de recursos humanos no país, com mais de 200 grandes empresas, adianta o que pode ser o impacto do home office para o setor imobiliário. O levantamento constatou que 13% das empresas pretendem deixar em média 44% do pessoal trabalhando em casa permanentemente. E 85% delas vão permitir o home office opcional. “A grande maioria (97%) foi bem-sucedida com home office”, disse Antonio Salvador, da Mercer.
Se pudesse escolher, Leandro Brusque trabalharia em casa. Gerente da Ocyan, empresa da área de petróleo e gás, com escritórios no centro do Rio, ganhou tempo com a mudança na rotina. A empresa vai colocar 50% do pessoal em casa, com os funcionários se revezando no escritório. Morador de Niterói, Brusque levava uma hora e meia para chegar ao trabalho. “Com mais tempo livre, consegui ler, organizar as lembranças de família, escanear documentos”, disse. O esquema de revezamento, além de agradar a Brusque, também se mostra mais versátil para um futuro incerto sobre o qual muitos preferem não pensar: a ideia de que, nos próximos meses — e até anos —, enquanto a vacina não for acessível a todos, a pandemia possa voltar a crescer, à medida que o distanciamento social diminuir. “Esse processo deve ser lento e gradual, porque a transmissão aumenta facilmente se houver muitas pessoas na rua. Até termos um tratamento ou vacina, nós viveremos no fio da navalha o tempo inteiro, abrindo e fechando os negócios”, disse Carlos Machado de Freitas, da Fiocruz.
O especialista avalia que o momento não é o mais adequado para a volta à normalidade, em razão dos números ainda elevados de infectados pelo Brasil. Machado apontou que a sensação de que o país possa ter atingido seu “platô” — ou seja, quando há uma estabilidade entre o número de novos casos e o de novas mortes — esconderia uma leitura mais cética dos números. Segundo ele, uma análise mais aprofundada revela que muitas cidades “estacionaram” em uma média elevada de casos e mantêm uma alta taxa de leitos de UTI ocupados. Desta forma, uma nova onda de infecções provocaria rapidamente a falência do sistema hospitalar. Diante de tantas incertezas, a imprevisibilidade continua sendo a palavra de ordem da pandemia. Empresas que conseguirem criar modelos mais dinâmicos e retráteis de retomada, mantendo os protocolos de segurança, tendem a navegar melhor nesses novos mares.



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