Um amigo me falou da série “Normal People”, inspirada no best-seller homônimo da autora irlandesa Sally Rooney. Disse que pirou tanto naquele amor puro e intenso, que ficou meio eufórico e um tanto deprê. Passei dias com suas palavras ecoando na cabeça. Vi frames do seriado quando procurei informações na internet e fiquei obcecada pelo corpo da garota, pelo olhar dela, escreve a colunista da Folha, em texto publicado na quinta, 27/8 no jornal. Continua a seguir.
Acreditei que assistir à história seria como tomar um elixir da juventude. Ou entrar em uma cápsula do tempo. Eu poderia sentir tudo aquilo de novo? Talvez eu pudesse ser aquela garota muito magra, bastante masoquista e ultrassexualizada. Exatamente os três adjetivos —superlativos— que o antidepressivo tirou de mim. Que saudade deles, que horror de voltar para eles.
O gelo de uma colher na minha língua era sentido até o dedão do meu pé. Isso fazia de mim uma perversa polimorfa maravilhosa. Isso fazia de mim um bebê tentando não ficar em carne viva a cada decepção. Olho para a cartela do Efexor XR com um misto de nojo e fiel agradecimento. Não sei se ajoelho diante dele ou se me curvo para jogá-lo no lixo.
Às vezes penso que deveria existir uma lei psiquiátrica chamada “final de semana da pulsão e do gozo desenfreado”. Imagina se em um sábado eu pudesse amar tanto meus amigos, mas tanto, que os ofenderia. Imagina passar o dia inteiro sem conseguir comer uma alface, me apaixonar sete vezes por quatro pessoas diferentes, talvez chamar todas elas para a minha casa. Mas na segunda cedinho, ufa, passou. Tomei minha “pílula de cabimento” e acordei casada, com meus três empregos e uma filha maravilhosa. Nem sei o que estou dizendo.
De tanto eu perturbar meu marido, ele começou a estudar aqui como faria para baixar os episódios ou acessar de forma ilegal a plataforma Hulu. Eis que descobrimos o Starzplay via Net Claro. Isso aqui está parecendo um conteúdo pago, então, para elucidar que não é, conto que foi bem difícil assinar o tal streaming. Um técnico teve que vir à minha casa mudar o aparelhinho de recepção. Nem sei se chama aparelhinho de recepção. Whatever. Nada disso é o que eu quero escrever.
O que eu quero dizer é que, depois de tudo isso, Pedro resolveu ver uma série de terror no quarto, e eu fiquei sozinha na sala, testemunhando minha adolescência e minha juventude na tela. Eu atraída por garotos populares angustiados que poderiam me fazer sofrer mais ainda. Assisti a cada episódio na companhia de várias das minhas idades e buracos, acariciando a cabeça delas com minha saudade-pavor. Chorando de brotar dançarinas gordas aquáticas da minha cara inteira. O amor dos protagonistas e a química absurda entre eles rasgaram a barreira química do meu cérebro, a camisinha antitristeza da minha mente. Transei com eles, dormi com eles, quase morri com eles. Se você tem 20 anos, por favor, lembre disso: a gente nasce para ter 20 anos. Caso sofra muito, lembre de mim: não existe felicidade maior do que sofrer muito aos 20 anos.
Eu quero demais me livrar desses remédios. Remédio para não ter pânico, para não ficar anoréxica, para não ter mania de perseguição ou arrumar cada canto da casa mil vezes, para não ficar vadia louca, para não chorar 14 vezes por dia e ter ataques de riso antes e depois. Remédio para não ter a dor crônica que vai do meu cóccix ao osso parietal. Graças a Deus eles existem e eu não tenho mais 20 anos. Que seriado foda, meus amigos!
Tati Bernardi é escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.
Acreditei que assistir à história seria como tomar um elixir da juventude. Ou entrar em uma cápsula do tempo. Eu poderia sentir tudo aquilo de novo? Talvez eu pudesse ser aquela garota muito magra, bastante masoquista e ultrassexualizada. Exatamente os três adjetivos —superlativos— que o antidepressivo tirou de mim. Que saudade deles, que horror de voltar para eles.
O gelo de uma colher na minha língua era sentido até o dedão do meu pé. Isso fazia de mim uma perversa polimorfa maravilhosa. Isso fazia de mim um bebê tentando não ficar em carne viva a cada decepção. Olho para a cartela do Efexor XR com um misto de nojo e fiel agradecimento. Não sei se ajoelho diante dele ou se me curvo para jogá-lo no lixo.
Às vezes penso que deveria existir uma lei psiquiátrica chamada “final de semana da pulsão e do gozo desenfreado”. Imagina se em um sábado eu pudesse amar tanto meus amigos, mas tanto, que os ofenderia. Imagina passar o dia inteiro sem conseguir comer uma alface, me apaixonar sete vezes por quatro pessoas diferentes, talvez chamar todas elas para a minha casa. Mas na segunda cedinho, ufa, passou. Tomei minha “pílula de cabimento” e acordei casada, com meus três empregos e uma filha maravilhosa. Nem sei o que estou dizendo.
De tanto eu perturbar meu marido, ele começou a estudar aqui como faria para baixar os episódios ou acessar de forma ilegal a plataforma Hulu. Eis que descobrimos o Starzplay via Net Claro. Isso aqui está parecendo um conteúdo pago, então, para elucidar que não é, conto que foi bem difícil assinar o tal streaming. Um técnico teve que vir à minha casa mudar o aparelhinho de recepção. Nem sei se chama aparelhinho de recepção. Whatever. Nada disso é o que eu quero escrever.
O que eu quero dizer é que, depois de tudo isso, Pedro resolveu ver uma série de terror no quarto, e eu fiquei sozinha na sala, testemunhando minha adolescência e minha juventude na tela. Eu atraída por garotos populares angustiados que poderiam me fazer sofrer mais ainda. Assisti a cada episódio na companhia de várias das minhas idades e buracos, acariciando a cabeça delas com minha saudade-pavor. Chorando de brotar dançarinas gordas aquáticas da minha cara inteira. O amor dos protagonistas e a química absurda entre eles rasgaram a barreira química do meu cérebro, a camisinha antitristeza da minha mente. Transei com eles, dormi com eles, quase morri com eles. Se você tem 20 anos, por favor, lembre disso: a gente nasce para ter 20 anos. Caso sofra muito, lembre de mim: não existe felicidade maior do que sofrer muito aos 20 anos.
Eu quero demais me livrar desses remédios. Remédio para não ter pânico, para não ficar anoréxica, para não ter mania de perseguição ou arrumar cada canto da casa mil vezes, para não ficar vadia louca, para não chorar 14 vezes por dia e ter ataques de riso antes e depois. Remédio para não ter a dor crônica que vai do meu cóccix ao osso parietal. Graças a Deus eles existem e eu não tenho mais 20 anos. Que seriado foda, meus amigos!
Tati Bernardi é escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.
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