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A alta dos velhos hits musicais

Em meio à popularização do streaming, antigos sucessos valorizam na “bolsa” da música, escreve Silvio Essinger em reportagem publicada na edição desta semana da revista Época. Vale a leitura! Íntegra a seguir.

Não é prata nem é ouro, é uma coisa bem singela — dizem-nos os versos do conhecido samba de Zeca Pagodinho. O cantor carioca talvez nem tenha percebido, mas hoje, em tempos de música por streaming, essas palavras podem se referir não só à faixa amarela “bordada com o nome dela”, como também ao próprio valor financeiro da canção popular testada e aprovada em anos de execução em rádio, TV — e rodas de samba, se for o caso. Esse é um ponto que o canadense radicado na Inglaterra Merck Mercuriadis vem tentando provar, em grande estilo, ao comprar os direitos sobre milhares de canções muito conhecidas do pop mundial dos últimos 50 anos. Só neste mês, para ter uma ideia, ele pôs em seu cofre 197 canções do grupo de new wave Blondie (entre elas, “Rapture”, hit de 1981) e nada menos que 900 do cantor Barry Manilow (“Mandy”, “Copacabana” e outros tantos sucessos).
“Músicas aprovadas pelo público são certeiras e confiáveis em suas receitas de streaming”, disse ao jornal Guardian Mercuriadis, o filho de um ex-jogador de futebol grego, que trabalhou com Richard Branson (fundador da Virgin, conglomerado que começou como um gravadora) e foi empresário de Elton John, Iron Maiden, Guns N’ Roses e Beyoncé. “Quando digo que essas músicas são tão boas ou melhores que ouro ou petróleo, é porque elas não têm correlação com o que está acontecendo no mercado. No fim das contas, se as pessoas estão vivendo da melhor maneira, elas estão celebrando com música. Da mesma forma, se estão enfrentando o tipo de desafio que temos experimentado nas últimas 25 semanas ou mais, elas estão escapando da realidade e se confortando na música.”
Há dois anos, Merck Mercuriadis abriu em Londres a Hipgnosis, empresa com a qual investiu 700 milhões de libras na compra dos direitos de mais de 13 mil canções. Um terço das músicas compradas tem mais de dez anos e 59% têm entre três e dez anos. Menos de 10% são lançamentos mais recentes. “SexyBack” (Justin Timberlake), “Single ladies” (Beyoncé), “Sweet dreams (are made of this)” (Eurythmics) e “Let’s stay together” (Al Green) são algumas das joias da Hipgnosis, que no entanto usa “Livin’ on a prayer”, do grupo americano de rock Bon Jovi, como melhor argumento para seus investidores. Lançada em 1986, a música chegou ao primeiro lugar das paradas em vários países. Foi incorporada ao catálogo do gigante do streaming Spotify em 2013 — e de lá para cá viu suas receitas anuais aumentarem 153%.
O movimento da Hipgnosis não passou despercebido. Em abril do ano passado, Mark Mulligan, diretor e analista da MIDiA Research, firma inglesa de pesquisas de mercado do mundo digital, já alertava sobre a “pressão do catálogo” como uma das tendências que redefiniriam a indústria da música. “O catálogo profundo tem sido parte do fundo de investimento das gravadoras há anos. Já que a maioria dos streams de catálogo tem vindo de música feita neste século, os valores estão virando de cabeça para baixo (na era do streaming, as Spice Girls valem mais do que os Beatles!)”, escreveu ele, em suas previsões. “As gravadoras ainda podem extrair alta receita de artistas de grande legado com edições superpremium como a Universal Music Group fez com os Beatles em 2018, mas uma nova abordagem de longo prazo é necessária para valorizar o catálogo. As coisas se complicam ainda mais pelo fato de que os selos não estão construindo valor de catálogo futuro.”
A opinião de Mulligan é reforçada pelo cearense Ricardo Bacelar, advogado especializado em direito autoral, que foi tecladista e guitarrista do grupo de rock Hanoi Hanoi (do hit “Totalmente demais”, de 1986) e que hoje se dedica ao jazz e à vida acadêmica (há dois anos, defendeu a dissertação de mestrado Direito autoral sobre música no Brasil e streaming: as transformações da indústria fonográfica e os conflitos da fruição econômica). Em entrevista a ÉPOCA, ele defendeu a tese de que, com o modelo de negócio estabelecido pelos agentes mais poderosos do streaming, “no qual as plataformas cobram mais barato pela música e pagam menos direito autoral, para poder trabalhar com grandes volumes”, os catálogos que as gravadoras estão fazendo hoje não tardarão muito a virarem pó. “As grandes companhias não gastam mais muito dinheiro com as grandes produções porque elas não dão retorno. Como você vai pagar um disco que custou US$ 50 mil só com o retorno do streaming? Eles estão procurando artistas que já tenham uma boa repercussão na internet”, explicou Bacelar.
Os direitos autorais de 197 canções do grupo de new wave Blondie foram adquiridos neste mês pela empresa de Merck Mercuriadis. Foto: Anthony Barboza / Getty ImagesOs direitos autorais de 197 canções do grupo de new wave Blondie foram adquiridos neste mês pela empresa de Merck Mercuriadis. Foto: Anthony Barboza / Getty Images
Longe ficaram os tempos da crise por causa da pirataria e da desmaterialização do suporte físico (ou seja: o declínio dos CDs). Se em 2013 as receitas com a música gravada chegaram a uma baixa histórica de US$ 14 bilhões, no ano passado experimentaram seu quinto ano consecutivo de crescimento, fechando em US$ 20 bilhões, impulsionadas pelo aumento de 23% em streaming em relação ao ano anterior. “As gravadoras estão ganhando muito dinheiro, mas é um dinheiro imediato”, alertou Bacelar. “A cada 28 dias, o artista lança uma música porque o algoritmo tem de ficar funcionando, tem de ficar o tempo todo alimentando o streaming com um conteúdo que não tem uma vida útil muito grande. Vai chegar o ponto em que as pessoas se perguntarão qual foi a música de 2020 e ninguém lembrará qual é. Os artistas têm um elemento visual muito forte, e a música é secundária. Hoje, quando o artista é muito popular, muitas vezes você nem sabe qual é a música dele. Antigamente, no rádio, você conhecia a música e nem sabia o nome do artista. Esse vínculo com a música tem de retornar.”
As gravadoras se defendem, alegando que hoje em dia o público consome música em muitas janelas diferentes e que as regras que valiam dez anos atrás, essas sim, viraram pó. “O volume da produção musical aumentou muito, porque é muito fácil hoje fazer música, e o consumo é bem mais rápido do que antigamente. Essa diversidade acabou com a receita de bolo da indústria fonográfica”, disse ao GLOBO, em setembro passado, o presidente da Universal Music do Brasil, Paulo Lima. Mas a questão dos parâmetros da produção musical nos novos tempos voltou à baila neste mês em uma palestra do bilionário sueco Daniel Ek, um dos fundadores do Spotify, plataforma líder do streaming de música, que fechou o segundo trimestre de 2020 — o da pandemia — com um aumento de 8 milhões de assinantes (num total de 38 milhões) e de 13 milhões de usuários ativos (299 milhões de pessoas recorrem ao serviço, ao todo).
“Alguns artistas que costumavam se dar bem no passado podem não se dar bem neste cenário futuro, onde você não pode gravar música uma vez a cada três ou quatro anos e pensar que isso será o suficiente. Os artistas de hoje estão percebendo que se trata de criar um envolvimento contínuo com seus fãs”, pregou Ek. A provocação — de que os veteranos artistas, críticos da remuneração do Spotify (meros US$ 0,0032 por stream de faixa) precisam produzir mais conteúdo se quiserem o mesmo dinheiro que costumavam ganhar — deu o que falar na comunidade musical.
Mike Mills, baixista do finado grupo americano R.E.M., um dos maiores nomes do rock de todos os tempos, foi sintético em sua publicação no Twitter: “Música = produto e deve ser produzida regularmente, diz o bilionário Daniel Ek. Vá se f...”. Lendário ex-vocalista do grupo de hard rock Skid Row, sucesso nos anos 1990, Sebastian Bach também se irritou com a ingerência artística do executivo do Spotify: “Quando esse cara lançar um álbum, só aí é que eu vou ouvi-lo falar como devo gravar os meus”, escreveu também no Twitter.
Os artistas têm um longo caminho pela frente até que a questão da remuneração seja equilibrada — com a pandemia, espera-se que até o fim do ano os principais serviços de streaming musical (Spotify, Apple e Amazon) tenham chegado a um total de 450 milhões de assinantes no mundo, atiçando a cobiça de todos os agentes da indústria musical, atrás de sua fatia no bolo. Se vão conseguir novos hits, ninguém sabe. O único alento está em sua obra já lançada, que pode ou não sobreviver ao tempo. Ou seja: tudo indica que o velho catálogo é quem poderá vir em socorro.
Merck Mercuriadis já avisou que seguirá com seus investimentos em músicas antigas: ele avalia que tem cerca de mais dois anos para gastar um total de 2 a 3 bilhões de libras, antes que os preços dos velhos e testados hits fiquem impraticáveis. “Os catálogos de Caetano, de Gil e de Bethânia vão valer por muito tempo. A obra dos Beatles vai vender para sempre”, analisou Ricardo Bacelar. “As gravadoras podem estar se escorando hoje na música sertaneja e no funk barato, mas daqui a dez anos eles poderão não existir mais. Já quem investir em catálogos vai ter um ativo financeiro futuro considerável.”




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