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Imunidade de rebanho

Quando chegarmos próximos à IRPI a doença não irá desaparecer, mas o número de casos e mortes diminuirá o suficiente para voltarmos a uma vida normal, escreve o biólogo Fernando Reinach no Estado de S.Paulo, em artigo publicado sábado, 8/8. Vale a leitura, continua a seguir.

Mark Lipsitch, um epidemiologista de Harvard, foi questionado se a imunidade de rebanho poderia ser atingida por meios naturais: “O problema é quanto sofreremos no processo. Não é que não podemos atingir, é que não queremos atingir. Não acho que seja cientificamente errado, acho que é moralmente errado”. Concordo. A estratégia correta é reduzir o número de novos casos com um lockdown e implementar a identificação e o isolamento imediato das pessoas infectadas e seus contatos.
Para isso é necessário testar dezenas de milhares de pessoas por dia usando testes de RT-PCR e ter os resultados disponíveis em menos de 24 horas para o time de rastreadores de contatos que organizam o isolamento. E tudo isso precisa ser meticulosamente executado por um ano ou mais, até que uma vacina esteja disponível. Não tem sido fácil nem na Alemanha.
Em São Paulo é impossível apesar de o governo dizer que está tentando. De concreto o governo recomenda máscaras, álcool em gel e tenta calibrar as medidas de distanciamento social, contando os leitos de UTI disponíveis e as mortes a cada dia. Apesar de indesejável e moralmente condenável, nossa incompetência vem causando o sofrimento que Lipsitch descreve: 100 mil mortes no Brasil e 10 mil na cidade de São Paulo. Isso em cinco meses. Essa é a nossa realidade. E nela, atingir a imunidade de rebanho é destino, não escolha. A estratégia adotada pelo Brasil é o que chamei de Imunidade de Rebanho por Incompetência (IRPI).
Como acredito que a IRPI em São Paulo é inevitável, me interessa saber quando isso vai ocorrer e a que preço. Tenho dedicado meu tempo a estudar as condições necessárias para chegarmos à IRPI e tenho participado de um grupo que está medindo o número de pessoas já infectadas pelo SARS-CoV-2 em São Paulo, pois essa é a melhor medida de quão próximos estamos da IRPI. Aqui vai, pelo pouco que vale, minha opinião pessoal sobre a IRPI na cidade de São Paulo.
São Paulo tem 12,2 milhões de habitantes. Nossas medidas indicam que pelo menos 18% dessas pessoas já possuem anticorpos contra o SARS-CoV-2. São pessoas que estão total ou parcialmente imunes. A elas temos que acrescentar as pessoas que foram infectadas, desenvolveram anticorpos, mas já deixaram de produzi-los e hoje são soronegativas. Esse número é desconhecido, mas muitos estudos demonstram que esses casos existem. Meu palpite é de que sejam um décimo dos soropositivos, ou seja 2% da população (estamos nos organizando para medir esse número).
Temos ainda que somar as pessoas que foram infectadas, mas não desenvolveram anticorpos. Essas pessoas talvez existam, não se sabe quantas são, e seu número é difícil de estimar. Vamos imaginar mais 2%. Finalmente temos que adicionar as pessoas que são imunes ao vírus. Se quase 40% dos casos é de assintomáticos e parte tem sintomas leves, é muito provável que existam pessoas resistentes ao vírus. Sabemos que 35% das pessoas não infectadas já possuem linfócitos T capazes de reconhecer o vírus.
Elas podem representar os assintomáticos ou os resistentes, não sabemos. Aqui o chute é mais difícil, mas vamos assumir que são 10% da população. Somando esses valores chegamos a 32%. Como descobrimos que diferentes testes sorológicos detectam diferentes antígenos, esse número pode ser 35%. Lembre, esse é um palpite, os dados ainda são imprecisos ou inexistentes.
A questão seguinte é saber a fração da população que precisa estar parcial ou totalmente imune para atingirmos a IRPI. Para um vírus com R0 de 2,5 (que é o número de pessoas que uma pessoa infecta no início da pandemia), esse número é 60%, caso a população seja totalmente homogênea. Diversos estudos teóricos, e a experiência com outras doenças transmissíveis, mostram que a heterogeneidade da população pode reduzir esse número para até 20%.
Infelizmente não sabemos ainda qual a redução provocada pela heterogeneidade que existe em São Paulo, mas meu palpite é que chegaremos à IRPI se a fração da população que possuir algum grau de imunidade chegar a um número entre 40% e 55%. Quando chegarmos próximos à IRPI a doença não irá desaparecer, mas o número de casos e mortes diminuirá o suficiente para voltarmos a uma vida normal. A partir de então vamos conviver com a covid-19 em quase normalidade até a chegada da vacina. Mas para isso é necessário que a imunidade dure ao menos um ano.
Como provavelmente já estamos com 35% da população total ou parcialmente resistente, podem faltar algo entre 5% e 20% da população ser infectada para atingirmos a IRPI.
O custo desse aumento de infectados pode ser medido em números adicionais de mortos. Se 18% de infectados causaram 10 mil mortes em São Paulo, o custo foi de 555 mortes por ponto porcentual. Portanto se estivermos a 5% da IRPI o custo será de mais 2,7 mil mortes. Mas se estivermos a 20% da IRPI o custo para a cidade será de mais 11 mil mortes, além das 10 mil que já amargamos. Acompanhe quantas pessoas morrem por dia e você pode calcular a data provável da chegada da IRPI. Nos últimos dez dias morreram 450 pessoas.
É esse o sofrimento a que Lipsitch se refere quando diz que ninguém pode desejar atingir a IRPI. Mas se já tivemos 10 mil mortes na cidade em 5 meses, não é impossível imaginar que teremos mais 11 mil nos 12 meses que faltam para realisticamente vacinarmos a população. É o custo de viver numa sociedade pobre, desorganizada e sem liderança.


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