O ano era 1984, o mundo ainda estava chocado com a recente chegada de uma nova doença, a aids, as músicas de Michael Jackson tocavam em todos os cantos e Walter Mondale, o candidato à Casa Branca pelo Partido Democrata, tinha pela frente a ingrata tarefa de tentar desbancar o republicano Ronald Reagan. Mondale acabou perdendo a eleição, mas antes entrou para a história ao escolher como vice Geraldine Ferraro, a primeira mulher a compor a chapa presidencial de um grande partido nos Estados Unidos. De lá para cá, a política americana foi palco de inovações, como a eleição de Barack Obama, o primeiro presidente negro, e a escolha de Hillary Clinton como candidata, também uma primeira vez, mas, até o dia 10 de agosto de 2020, nenhuma mulher negra tinha sido destacada por um dos principais partidos para ser candidata a vice-presidente. Isso mudou no dia seguinte, quando a senadora Kamala Harris foi anunciada como companheira de Joe Biden, democrata que tentará expulsar o republicano Donald Trump da Casa Branca em novembro, escreve Filipe Barini na edição desta semana da revista Época. Continua a seguir.
A escolha não foi fácil. Na lista de possíveis vices estava a também negra Susan Rice, ex-chefe do Conselho de Segurança com quem Biden trabalhou na época de Obama. O nome de Harris não era uma unanimidade entre os conselheiros de Biden. Poucos duvidam de que, em caso de vitória, ela começará sua campanha para presidente assim que pisar na Casa Branca, em janeiro de 2021. Mas, no fim do processo de seleção, prevaleceu a ideia de que a campanha de Biden, de 77 anos, não pode se dar ao luxo de prescindir justamente da ambição, da energia e da combatividade de Harris. Uma combatividade que ficou bem clara no ano passado, quando ela ainda disputava a cabeça de chapa na prévia do Partido Democrata e não poupou o próprio Biden de boas estocadas.
“Havia uma pequena menina na Califórnia que fazia parte da segunda turma na integração de escolas públicas de Berkeley. Ela era levada de ônibus para a escola todos os dias. Essa pequena menina era eu”, disse Harris durante um dos debates numa mensagem cujo destinatário tinha nome e sobrenome: Joe Biden. Apesar de seu histórico de defesa dos direitos civis, o hoje candidato democrata à Presidência se juntou a conservadores nos anos 1970 contra a política de integração que consistia em levar crianças negras de ônibus para estudar em escolas frequentadas apenas por brancos por achar a medida ineficaz. Logo após o anúncio de Harris como vice de Biden, a campanha de Trump, pródiga em apelidos, foi rápida em chamá-la de “a falsa Kamala”, por ela ter largado o petardo racial contra “o sonolento Joe” no debate e agora ter aceitado ser sua companheira de chapa.
Para os democratas, os apelidos dados por republicanos são puro blá-blá-blá. O que importa é a predisposição de Harris para uma boa briga. No Senado, aonde chegou em 2017, ela protagonizou célebres discussões com integrantes do governo Trump, como o vice-procurador-geral, Rod Rosenstein. No ano seguinte, traria a mesma eloquência à sabatina do indicado de Trump para a Suprema Corte, Brett Kavanaugh. A autoridade, o preparo e a presença de espírito são uma herança dos tempos como advogada e procuradora-geral da Califórnia. No processo de impeachment de Trump, Harris, assim como os demais representantes de seu partido, votou pelo afastamento. Na ocasião, questionou se o Congresso escolheria “um modelo que deixaria alguns acima da lei”.
Nos últimos meses, em meio aos protestos do movimento Vidas Negras Importam após a morte de George Floyd, Harris apoiou, de forma incisiva, o movimento, com declarações fortes contra a violência policial — o que trouxe à tona algumas críticas do tempo em que ela era procuradora-geral. Embora a senadora se apresente como uma reformista do sistema legal, embora acredite na ideia de que há muitas detenções desnecessárias de minorias nos Estados Unidos, seus críticos a acusam de ter demorado para libertar presos na Califórnia e de não ter agido de uma maneira mais enfática para coibir abusos das forças de segurança.
Apesar dos reparos a sua conduta em determinados casos, Harris tem uma história de superação. Filha de pai jamaicano e mãe indiana, aos 7 anos viu seus pais se divorciarem. Como era comum na época, ela e a irmã, Maya, ficaram com a mãe. “Minha mãe entendia bem que estava criando duas filhas negras”, escreveu Harris em sua autobiografia, ainda sem tradução no Brasil, The truths we hold (As verdades que defendemos, numa tradução livre).
Em um vídeo de sua campanha pela vaga democrata à Presidência, a senadora lembrou das vezes em que a mãe, uma mulher de pele morena, com sotaque e que, em sua opinião, era muitas vezes menosprezada por isso, lutou contra os estereótipos e a inspirou. “Ela sabia que os Estados Unidos nos veriam como meninas negras e queria garantir que nós cresceríamos como mulheres confiantes e orgulhosas.”
Harris viveu na Califórnia, onde nasceu, até seus 12 anos, quando se mudou com a mãe e a irmã para Quebec, no Canadá. De volta aos Estados Unidos já jovem, entrou para a Universidade Howard, de Washington, se formando em história e ciência política. Na Universidade da Califórnia, obteve um doutorado em Direito, além do registro que a habilitava a trabalhar como advogada, profissão que sonhava em exercer quando criança. “Eles (advogados) eram heróis. Foram os arquitetos do movimento dos direitos civis. Pensava que era uma forma de fazer coisas boas e estabelecer a justiça. Era bem simples”, afirmou Harris ao site SFGate em 2009.
Nos anos 1990, atuou como promotora no condado de Alameda e como promotora assistente em San Francisco, passando a chefiar o órgão em 2003, eleita com uma plataforma voltada à aplicação “inteligente” da lei. Sete anos depois, se tornaria a procuradora-geral do Estado, trampolim para a carreira política que viria em seguida. Sua vitória para o Senado teve um quê de anticlímax. “Eu tinha escrito um discurso baseado na ideia de que Hillary Clinton seria nossa primeira mulher presidente. Quando subi no palco para saudar meus eleitores, deixei o texto para trás. Olhei para a sala lotada. Muitos estavam em choque enquanto acompanhavam os resultados da disputa presidencial”, escreveu Harris, que vai trabalhar noite e dia nos próximos três meses para evitar um novo resultado chocante na próxima eleição.
A escolha não foi fácil. Na lista de possíveis vices estava a também negra Susan Rice, ex-chefe do Conselho de Segurança com quem Biden trabalhou na época de Obama. O nome de Harris não era uma unanimidade entre os conselheiros de Biden. Poucos duvidam de que, em caso de vitória, ela começará sua campanha para presidente assim que pisar na Casa Branca, em janeiro de 2021. Mas, no fim do processo de seleção, prevaleceu a ideia de que a campanha de Biden, de 77 anos, não pode se dar ao luxo de prescindir justamente da ambição, da energia e da combatividade de Harris. Uma combatividade que ficou bem clara no ano passado, quando ela ainda disputava a cabeça de chapa na prévia do Partido Democrata e não poupou o próprio Biden de boas estocadas.
“Havia uma pequena menina na Califórnia que fazia parte da segunda turma na integração de escolas públicas de Berkeley. Ela era levada de ônibus para a escola todos os dias. Essa pequena menina era eu”, disse Harris durante um dos debates numa mensagem cujo destinatário tinha nome e sobrenome: Joe Biden. Apesar de seu histórico de defesa dos direitos civis, o hoje candidato democrata à Presidência se juntou a conservadores nos anos 1970 contra a política de integração que consistia em levar crianças negras de ônibus para estudar em escolas frequentadas apenas por brancos por achar a medida ineficaz. Logo após o anúncio de Harris como vice de Biden, a campanha de Trump, pródiga em apelidos, foi rápida em chamá-la de “a falsa Kamala”, por ela ter largado o petardo racial contra “o sonolento Joe” no debate e agora ter aceitado ser sua companheira de chapa.
Para os democratas, os apelidos dados por republicanos são puro blá-blá-blá. O que importa é a predisposição de Harris para uma boa briga. No Senado, aonde chegou em 2017, ela protagonizou célebres discussões com integrantes do governo Trump, como o vice-procurador-geral, Rod Rosenstein. No ano seguinte, traria a mesma eloquência à sabatina do indicado de Trump para a Suprema Corte, Brett Kavanaugh. A autoridade, o preparo e a presença de espírito são uma herança dos tempos como advogada e procuradora-geral da Califórnia. No processo de impeachment de Trump, Harris, assim como os demais representantes de seu partido, votou pelo afastamento. Na ocasião, questionou se o Congresso escolheria “um modelo que deixaria alguns acima da lei”.
Nos últimos meses, em meio aos protestos do movimento Vidas Negras Importam após a morte de George Floyd, Harris apoiou, de forma incisiva, o movimento, com declarações fortes contra a violência policial — o que trouxe à tona algumas críticas do tempo em que ela era procuradora-geral. Embora a senadora se apresente como uma reformista do sistema legal, embora acredite na ideia de que há muitas detenções desnecessárias de minorias nos Estados Unidos, seus críticos a acusam de ter demorado para libertar presos na Califórnia e de não ter agido de uma maneira mais enfática para coibir abusos das forças de segurança.
Apesar dos reparos a sua conduta em determinados casos, Harris tem uma história de superação. Filha de pai jamaicano e mãe indiana, aos 7 anos viu seus pais se divorciarem. Como era comum na época, ela e a irmã, Maya, ficaram com a mãe. “Minha mãe entendia bem que estava criando duas filhas negras”, escreveu Harris em sua autobiografia, ainda sem tradução no Brasil, The truths we hold (As verdades que defendemos, numa tradução livre).
Em um vídeo de sua campanha pela vaga democrata à Presidência, a senadora lembrou das vezes em que a mãe, uma mulher de pele morena, com sotaque e que, em sua opinião, era muitas vezes menosprezada por isso, lutou contra os estereótipos e a inspirou. “Ela sabia que os Estados Unidos nos veriam como meninas negras e queria garantir que nós cresceríamos como mulheres confiantes e orgulhosas.”
Harris viveu na Califórnia, onde nasceu, até seus 12 anos, quando se mudou com a mãe e a irmã para Quebec, no Canadá. De volta aos Estados Unidos já jovem, entrou para a Universidade Howard, de Washington, se formando em história e ciência política. Na Universidade da Califórnia, obteve um doutorado em Direito, além do registro que a habilitava a trabalhar como advogada, profissão que sonhava em exercer quando criança. “Eles (advogados) eram heróis. Foram os arquitetos do movimento dos direitos civis. Pensava que era uma forma de fazer coisas boas e estabelecer a justiça. Era bem simples”, afirmou Harris ao site SFGate em 2009.
Nos anos 1990, atuou como promotora no condado de Alameda e como promotora assistente em San Francisco, passando a chefiar o órgão em 2003, eleita com uma plataforma voltada à aplicação “inteligente” da lei. Sete anos depois, se tornaria a procuradora-geral do Estado, trampolim para a carreira política que viria em seguida. Sua vitória para o Senado teve um quê de anticlímax. “Eu tinha escrito um discurso baseado na ideia de que Hillary Clinton seria nossa primeira mulher presidente. Quando subi no palco para saudar meus eleitores, deixei o texto para trás. Olhei para a sala lotada. Muitos estavam em choque enquanto acompanhavam os resultados da disputa presidencial”, escreveu Harris, que vai trabalhar noite e dia nos próximos três meses para evitar um novo resultado chocante na próxima eleição.
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