Diego Viana escreve no Valor uma excelente reportagem sobre o cenário internacional da atualidade, com EUA e China rivalizando. Texto publicado dia 31/7, íntegra a seguir.
Em duas décadas, o século XXI vive a sua terceira grande crise: em 2001, o ataque terrorista às Torres Gêmeas em Nova York precipitou o redesenho da relação entre os Estados Unidos e o Oriente Médio. Em 2008, a bolha dos subprimes atingiu em cheio o sistema financeiro mundial, sobretudo nos EUA e na Europa. Os dois eventos tiveram grandes impactos geopolíticos, corroendo a ordem mundial dominada pelo Ocidente e favorecendo, por tabela, a ascensão da China.
A pandemia de 2020 acelera um processo já em curso, que envolve a desmontagem das instituições que organizaram o mundo desde 1945, o enfraquecimento progressivo do Ocidente e a provável transição para um “século asiático”. Mas esse não é um processo imediato: em vez de uma nova ordem global, o planeta caminha para uma “anarquia pós-pandêmica”, segundo o ex-primeiro-ministro australiano Kevin Rudd, hoje presidente do “think tank” Asia Society Policy Institute, em Nova York.
Rudd se contrapõe a uma série de análises que preveem a expansão da influência chinesa, enquanto os EUA, sob Donald Trump, recuam de seu papel como esteio da ordem global. Há razões para crer que 2020 marca um momento de avanço chinês, em detrimento dos americanos. Pesquisas de opinião no mundo em desenvolvimento expressam um sentimento de decepção com a liderança americana. Na Europa, que em 2019 havia declarado que a China era um “rival sistêmico”, uma pesquisa do “think tank” European Council on Foreign Relations revela que 60% da população tem uma imagem pior dos EUA hoje do que antes da pandemia.
Provável transição para “século asiático” não é imediata: em vez de uma nova ordem global, o planeta caminha para uma “anarquia pós-pandêmica”, diz Kevin Rudd — Foto: Justin Chin/Bloomberg
O tabuleiro diplomático já estava bagunçado quando foi atingido pelo coronavírus e logo se tornou um novo cenário de disputa entre as duas grandes potências, cujas relações já estavam degradadas. O sistema global centrado nos EUA, com as instituições herdadas de 1945, como o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial e a Otan, estavam sob ataque. A China vinha buscando expandir sua influência nos órgãos de decisão multilateral e criava instituições paralelas, como o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (Aiib) e o Banco dos Brics.
Pressionadas também pelo isolacionismo dos EUA sob Trump, as instituições multilaterais vinham sofrendo de perda de prestígio e dificuldade de agir. As críticas à Organização Mundial da Saúde (OMS) têm como pano de fundo a escolha do etíope Tedros Adhanom Ghebreyesus como diretor-geral, em 2017. Na ocasião, Adhanom tinha o apoio dos chineses, contra o britânico David Nabarro, apoiado pelos americanos. A eleição foi um forte sinal de que o equilíbrio de poder está, de fato, se deslocando para o Pacífico.
“A crise do coronavírus acelerou uma perda de poder real e percebida dos Estados Unidos que já vinha acontecendo”, diz o ex-primeiro-ministro australiano Kevin Rudd. “Mas o poder da China também sofreu um impacto. Em primeiro lugar, pelo estrago econômico. A queda do PIB tem ondas de choque na capacidade de gastar sem limites, principalmente nas forças armadas e na iniciativa Um Cinturão, Uma Estrada”, afirma, referindo-se ao gigantesco projeto de investimentos chineses em infraestrutura em várias partes do mundo, também conhecido como Nova Rota da Seda.
“Os chineses também perdem um pouco de prestígio internacional, tanto entre os países ricos quanto entre os pobres”, argumenta o analista. Desde o ano passado, quando Hong Kong irrompeu em protestos, a expansão do “soft power” chinês vem enfrentando dificuldades. Neste ano, a repressão à minoria muçulmana uigur e as refregas na fronteira com a Índia, que provocaram a morte de 20 militares indianos em junho, acenderam o alerta em Pequim.
No cenário de Rudd, ambos os principais poderes estão prejudicados, e as instituições de governança global se tornam arenas de disputas entre “duas lideranças feridas”. “O resultado vai ser uma queda paulatina na anarquia internacional em todos os assuntos, do comércio à segurança, passando pela saúde. A natureza caótica das respostas nacionais à pandemia é um sinal do que está por vir”, afirma.
Antes mesmo do novo coronavírus, já havia quem tratasse a ascensão econômica e diplomática da China como o início de uma “nova Guerra Fria”. Analistas como o americano Robert Kaplan e o próprio Rudd chegaram a empregar a expressão desde a primeira década deste século. Com Xi Jinping, Donald Trump e a pandemia, a ideia de uma “segunda Guerra Fria” retornou com força: o mundo das próximas décadas se anuncia bipolarizado e conflituoso. A exclusão da chinesa Huawei da concorrência pela tecnologia 5G na Inglaterra seria, assim, um sintoma dessa nova etapa histórica.
A analogia da Guerra Fria é aproveitada também pelas lideranças dos países. Há duas semanas, Trump ordenou o fechamento do consulado chinês em Houston, no Texas, acusando os diplomatas de espionagem industrial. Na semana seguinte, os chineses responderam com uma ordem para fechar o consulado americano na cidade de Chengdu. A acusação foi de “interferência em assuntos domésticos”. Outro ponto de tensão é Hong Kong, ilha que goza de um certo grau de autonomia administrativa e que era colônia britânica até 1997. Em resposta à nova lei de segurança imposta pelo governo continental, que permite um controle mais rigoroso de protestos, o primeiro-ministro britânico Boris Johnson anunciou que o Reino Unido ofereceria a cidadania a quase 3 milhões de residentes da ilha. Os chineses responderam que consideravam a oferta uma agressão.
Mas há um ponto frágil na comparação com a Guerra Fria, aponta Maurício Santoro, professor de relações internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj): a rivalidade dos americanos com a então União Soviética, no século passado, não se estendia ao campo econômico, já que os soviéticos exportavam basicamente produtos primários e armamentos. Hoje, por um lado, a China está buscando competir com os EUA nos setores industriais mais avançados. Por outro, a interdependência entre os dois rivais, e também entre ambos e o resto do mundo, é quase completa: a economia é globalizada, e as cadeias de valor atravessam continentes.
A interdependência põe os países que compram e vendem das grandes potências em situação delicada, já que tanto os americanos quanto os chineses procuram atraí-los para suas esferas. “Nos países do Sudeste Asiático, como Cingapura, os governos e o setor privado têm plena consciência de que é preciso se equilibrar entre a China e os Estados Unidos, evitando ao máximo o alinhamento completo com um dos dois”, diz Santoro, lembrando que a Guerra Fria foi um período sangrento em muitos países da região, a começar pelo Vietnã.
Ao mesmo tempo, a interdependência econômica, no momento em que a governança global se torna mais caótica, levanta a suspeita de que possa estar começando um processo de desglobalização, devido à quebra de cadeias de fornecimento nos primeiros meses do ano, quando partes da China estavam em pleno “lockdown”. O ministro das Finanças francês, Bruno Le Maire, declarou em fevereiro que a Europa precisa reduzir sua dependência “excessiva e irresponsável” da China. Estudo do Bank of America indicou que 80% das empresas multinacionais tinham planos de diversificar suas cadeias de fornecimento, diminuindo a presença na China.
Em seu pacote de estímulo econômico contra os efeitos da pandemia, o governo japonês reservou cerca de US$ 2,2 bilhões para subsidiar empresas japonesas dispostas a reorganizar suas cadeias produtivas, não necessariamente instalando fábricas no próprio Japão. A primeira companhia a demonstrar interesse, sintomaticamente, foi uma fabricante de máscaras de proteção: a Iris Ohyama anunciou em abril que produziria o equipamento no próprio país.
Graças à sua mão de obra mais barata, o Vietnã colheu benefícios das iniciativas de reorganização das cadeias, que vêm sendo chamadas de “China mais um” ou “China mais dois”. Fornecedores das gigantes americanas Apple e Google transferiram parte da produção para o país. Tailândia, Malásia e Índia também aproveitaram a ocasião para oferecer vantagens a multinacionais que quisessem se instalar em seus territórios. “Esse movimento ainda é pequeno e concentrado em produtos de menor valor agregado. É difícil encontrar um país com mercado tão vasto e mão de obra tão qualificada como a China, sem sindicatos combativos ou regras rigorosas”, diz Santoro.
Apesar da resposta demorada das autoridades chinesas e seus esforços iniciais para abafar as notícias sobre o surgimento de um novo vírus mortal, o impacto sobre sua influência e poder geopolítico será pequeno, estima o filósofo americano Francis Fukuyama, em artigo publicado na revista “Foreign Policy”. Discordando de Rudd, Fukuyama aponta que outros países também subestimaram a força do novo coronavírus, com consequências ainda mais devastadoras do que em Wuhan, tanto na saúde quanto na economia. Os chineses, pelo menos, mudaram rapidamente de política, conseguindo manter a contagem de mortos pela covid-19 relativamente baixa.
Fukuyama aponta que os chineses batem frequentemente na tecla da comparação de sua própria resposta com a dos EUA, onde o presidente Trump tentou evitar o fechamento de cidades, provocou conflitos com adversários políticos, deu palpites mal-informados sobre a área de saúde e interferiu em vendas internacionais de equipamentos médicos.
Como resultado, enquanto Nova York vivia um surto grave de covid-19, o presidente perdeu popularidade, e seu país viu o prestígio internacional abalado. Hoje, com novos surtos em áreas onde o partido Republicano, de Trump, costuma ser forte, a situação do presidente se agrava. Pesquisa atrás de pesquisa aponta grande vantagem de seu adversário, o democrata Joe Biden, nas eleições de novembro.
Os chineses também se beneficiam do fato de que o eixo político do mundo acompanha o eixo econômico, que se desloca para a Ásia, aconteça o que acontecer com o prestígio do “Império do Meio”. O projeto do “pivô para o Pacífico” na política externa americana, anunciado por Barack Obama em 2011, expressa a constatação desse deslocamento, em contraste com o projeto da década de 1990, sob Bill Clinton e George Bush, que consistia em aumentar o espaço dos chineses nos organismos globais centrados no Ocidente.
Apesar da retórica de Trump e da retirada americana da Parceria Transpacífica (TPP), o “pivô para o Pacífico” permanece como estratégia de Estado nos EUA, lembra Santoro. “Nas eleições deste ano, o republicano Trump e o democrata Biden vão disputar quem consegue ser mais agressivo com a China”, diz. “Provavelmente a única política realmente bipartidária de Trump seja sua confrontação com os chineses, apoiada até mesmo por editoriais da imprensa liberal.”
A sensação de rivalidade com a China se amplia nos EUA em grande parte porque a indústria chinesa já está atingindo graus de sofisticação que têm impacto militar. O esforço para barrar o avanço da Huawei na instalação da infraestrutura de tecnologia 5G em diversos países, inclusive o Brasil, se insere nessa preocupação, já que é uma tecnologia aplicada inclusive no comando de armamentos não tripulados. Por enquanto, a Huawei tem oferecido os melhores preços pela tecnologia.
Na disputa global de prestígio, ou “soft power”, a imagem dos americanos está abalada, mas a dos chineses também não sai imaculada da pandemia. A China atraiu críticas profundas no começo do ano por sua tentativa inicial de contar as notícias sobre a nova doença surgida em Wuhan. O presidente Xi Jinping demorou a aparecer em público para anunciar medidas de combate à epidemia.
Na tentativa de resgatar sua imagem, o país aproveitou a ocasião para dar início à “diplomacia da máscara”, que consiste em aproveitar seu gigantesco parque industrial para exportar equipamentos médicos e de proteção. Em abril, enquanto o noticiário internacional informava desvios de equipamentos médicos para os EUA, Xi Jinping anunciou que, caso uma vacina para a covid-19 fosse descoberta na China, sua patente seria aberta.
“É evidente que a China está tentando aproveitar a oportunidade de usar suas cadeias produtivas, sobretudo na área médica, para extrair o máximo de uma situação ruim. Os chineses precisam reverter a imagem negativa muito forte do início da pandemia”, diz Santoro. Mais por efeito da reação errática de Trump do que pela diplomacia da máscara chinesa, as pesquisas divulgadas até agora sugerem que a imagem dos americanos saiu mais prejudicada do que a chinesa na opinião pública dos outros países. Na Alemanha, uma sondagem da Fundação Körber revelou que a proporção de alemães que consideram a relação com a China mais importante do que a relação com os EUA é praticamente igual à que pensa o contrário: 37% contra 36%.
Rudd considera que um dos fatores decisivos para a “anarquia pós-pandêmica” é a máquina interna do governo chinês. O australiano busca interpretar nas entrelinhas as declarações de figuras públicas chinesas, particularmente membros do Partido Comunista. Seu diagnóstico é que Xi Jinping se tornou alvo de “críticas sutilmente veladas” em “uma série de comentários semioficiais que misteriosamente conseguiram chegar à esfera pública ao longo de abril e maio”.
Para Rudd, os vazamentos são um sinal de rachaduras no aparato estatal do gigante asiático. Considerando a ampliação de poder que Xi tem perseguido nos últimos anos, um forte arranhão em sua imagem na opinião pública e no Partido Comunista podem conduzir a uma crise de liderança no país. Não está claro, porém, se a imagem de Xi será permanentemente arranhada. “Tudo vai depender do que acontece daqui por diante”, segundo Santoro. “Como a economia vai se comportar até o fim do ano? Reabrir Beijing não foi fácil, com novos focos de infecção. A produção industrial teve boa recuperação, mas a população chinesa não voltou rapidamente ao consumo.”
Em duas décadas, o século XXI vive a sua terceira grande crise: em 2001, o ataque terrorista às Torres Gêmeas em Nova York precipitou o redesenho da relação entre os Estados Unidos e o Oriente Médio. Em 2008, a bolha dos subprimes atingiu em cheio o sistema financeiro mundial, sobretudo nos EUA e na Europa. Os dois eventos tiveram grandes impactos geopolíticos, corroendo a ordem mundial dominada pelo Ocidente e favorecendo, por tabela, a ascensão da China.
A pandemia de 2020 acelera um processo já em curso, que envolve a desmontagem das instituições que organizaram o mundo desde 1945, o enfraquecimento progressivo do Ocidente e a provável transição para um “século asiático”. Mas esse não é um processo imediato: em vez de uma nova ordem global, o planeta caminha para uma “anarquia pós-pandêmica”, segundo o ex-primeiro-ministro australiano Kevin Rudd, hoje presidente do “think tank” Asia Society Policy Institute, em Nova York.
Rudd se contrapõe a uma série de análises que preveem a expansão da influência chinesa, enquanto os EUA, sob Donald Trump, recuam de seu papel como esteio da ordem global. Há razões para crer que 2020 marca um momento de avanço chinês, em detrimento dos americanos. Pesquisas de opinião no mundo em desenvolvimento expressam um sentimento de decepção com a liderança americana. Na Europa, que em 2019 havia declarado que a China era um “rival sistêmico”, uma pesquisa do “think tank” European Council on Foreign Relations revela que 60% da população tem uma imagem pior dos EUA hoje do que antes da pandemia.
Provável transição para “século asiático” não é imediata: em vez de uma nova ordem global, o planeta caminha para uma “anarquia pós-pandêmica”, diz Kevin Rudd — Foto: Justin Chin/Bloomberg
O tabuleiro diplomático já estava bagunçado quando foi atingido pelo coronavírus e logo se tornou um novo cenário de disputa entre as duas grandes potências, cujas relações já estavam degradadas. O sistema global centrado nos EUA, com as instituições herdadas de 1945, como o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial e a Otan, estavam sob ataque. A China vinha buscando expandir sua influência nos órgãos de decisão multilateral e criava instituições paralelas, como o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (Aiib) e o Banco dos Brics.
Pressionadas também pelo isolacionismo dos EUA sob Trump, as instituições multilaterais vinham sofrendo de perda de prestígio e dificuldade de agir. As críticas à Organização Mundial da Saúde (OMS) têm como pano de fundo a escolha do etíope Tedros Adhanom Ghebreyesus como diretor-geral, em 2017. Na ocasião, Adhanom tinha o apoio dos chineses, contra o britânico David Nabarro, apoiado pelos americanos. A eleição foi um forte sinal de que o equilíbrio de poder está, de fato, se deslocando para o Pacífico.
“A crise do coronavírus acelerou uma perda de poder real e percebida dos Estados Unidos que já vinha acontecendo”, diz o ex-primeiro-ministro australiano Kevin Rudd. “Mas o poder da China também sofreu um impacto. Em primeiro lugar, pelo estrago econômico. A queda do PIB tem ondas de choque na capacidade de gastar sem limites, principalmente nas forças armadas e na iniciativa Um Cinturão, Uma Estrada”, afirma, referindo-se ao gigantesco projeto de investimentos chineses em infraestrutura em várias partes do mundo, também conhecido como Nova Rota da Seda.
“Os chineses também perdem um pouco de prestígio internacional, tanto entre os países ricos quanto entre os pobres”, argumenta o analista. Desde o ano passado, quando Hong Kong irrompeu em protestos, a expansão do “soft power” chinês vem enfrentando dificuldades. Neste ano, a repressão à minoria muçulmana uigur e as refregas na fronteira com a Índia, que provocaram a morte de 20 militares indianos em junho, acenderam o alerta em Pequim.
No cenário de Rudd, ambos os principais poderes estão prejudicados, e as instituições de governança global se tornam arenas de disputas entre “duas lideranças feridas”. “O resultado vai ser uma queda paulatina na anarquia internacional em todos os assuntos, do comércio à segurança, passando pela saúde. A natureza caótica das respostas nacionais à pandemia é um sinal do que está por vir”, afirma.
Antes mesmo do novo coronavírus, já havia quem tratasse a ascensão econômica e diplomática da China como o início de uma “nova Guerra Fria”. Analistas como o americano Robert Kaplan e o próprio Rudd chegaram a empregar a expressão desde a primeira década deste século. Com Xi Jinping, Donald Trump e a pandemia, a ideia de uma “segunda Guerra Fria” retornou com força: o mundo das próximas décadas se anuncia bipolarizado e conflituoso. A exclusão da chinesa Huawei da concorrência pela tecnologia 5G na Inglaterra seria, assim, um sintoma dessa nova etapa histórica.
A analogia da Guerra Fria é aproveitada também pelas lideranças dos países. Há duas semanas, Trump ordenou o fechamento do consulado chinês em Houston, no Texas, acusando os diplomatas de espionagem industrial. Na semana seguinte, os chineses responderam com uma ordem para fechar o consulado americano na cidade de Chengdu. A acusação foi de “interferência em assuntos domésticos”. Outro ponto de tensão é Hong Kong, ilha que goza de um certo grau de autonomia administrativa e que era colônia britânica até 1997. Em resposta à nova lei de segurança imposta pelo governo continental, que permite um controle mais rigoroso de protestos, o primeiro-ministro britânico Boris Johnson anunciou que o Reino Unido ofereceria a cidadania a quase 3 milhões de residentes da ilha. Os chineses responderam que consideravam a oferta uma agressão.
Mas há um ponto frágil na comparação com a Guerra Fria, aponta Maurício Santoro, professor de relações internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj): a rivalidade dos americanos com a então União Soviética, no século passado, não se estendia ao campo econômico, já que os soviéticos exportavam basicamente produtos primários e armamentos. Hoje, por um lado, a China está buscando competir com os EUA nos setores industriais mais avançados. Por outro, a interdependência entre os dois rivais, e também entre ambos e o resto do mundo, é quase completa: a economia é globalizada, e as cadeias de valor atravessam continentes.
A interdependência põe os países que compram e vendem das grandes potências em situação delicada, já que tanto os americanos quanto os chineses procuram atraí-los para suas esferas. “Nos países do Sudeste Asiático, como Cingapura, os governos e o setor privado têm plena consciência de que é preciso se equilibrar entre a China e os Estados Unidos, evitando ao máximo o alinhamento completo com um dos dois”, diz Santoro, lembrando que a Guerra Fria foi um período sangrento em muitos países da região, a começar pelo Vietnã.
Ao mesmo tempo, a interdependência econômica, no momento em que a governança global se torna mais caótica, levanta a suspeita de que possa estar começando um processo de desglobalização, devido à quebra de cadeias de fornecimento nos primeiros meses do ano, quando partes da China estavam em pleno “lockdown”. O ministro das Finanças francês, Bruno Le Maire, declarou em fevereiro que a Europa precisa reduzir sua dependência “excessiva e irresponsável” da China. Estudo do Bank of America indicou que 80% das empresas multinacionais tinham planos de diversificar suas cadeias de fornecimento, diminuindo a presença na China.
Em seu pacote de estímulo econômico contra os efeitos da pandemia, o governo japonês reservou cerca de US$ 2,2 bilhões para subsidiar empresas japonesas dispostas a reorganizar suas cadeias produtivas, não necessariamente instalando fábricas no próprio Japão. A primeira companhia a demonstrar interesse, sintomaticamente, foi uma fabricante de máscaras de proteção: a Iris Ohyama anunciou em abril que produziria o equipamento no próprio país.
Graças à sua mão de obra mais barata, o Vietnã colheu benefícios das iniciativas de reorganização das cadeias, que vêm sendo chamadas de “China mais um” ou “China mais dois”. Fornecedores das gigantes americanas Apple e Google transferiram parte da produção para o país. Tailândia, Malásia e Índia também aproveitaram a ocasião para oferecer vantagens a multinacionais que quisessem se instalar em seus territórios. “Esse movimento ainda é pequeno e concentrado em produtos de menor valor agregado. É difícil encontrar um país com mercado tão vasto e mão de obra tão qualificada como a China, sem sindicatos combativos ou regras rigorosas”, diz Santoro.
Apesar da resposta demorada das autoridades chinesas e seus esforços iniciais para abafar as notícias sobre o surgimento de um novo vírus mortal, o impacto sobre sua influência e poder geopolítico será pequeno, estima o filósofo americano Francis Fukuyama, em artigo publicado na revista “Foreign Policy”. Discordando de Rudd, Fukuyama aponta que outros países também subestimaram a força do novo coronavírus, com consequências ainda mais devastadoras do que em Wuhan, tanto na saúde quanto na economia. Os chineses, pelo menos, mudaram rapidamente de política, conseguindo manter a contagem de mortos pela covid-19 relativamente baixa.
Fukuyama aponta que os chineses batem frequentemente na tecla da comparação de sua própria resposta com a dos EUA, onde o presidente Trump tentou evitar o fechamento de cidades, provocou conflitos com adversários políticos, deu palpites mal-informados sobre a área de saúde e interferiu em vendas internacionais de equipamentos médicos.
Como resultado, enquanto Nova York vivia um surto grave de covid-19, o presidente perdeu popularidade, e seu país viu o prestígio internacional abalado. Hoje, com novos surtos em áreas onde o partido Republicano, de Trump, costuma ser forte, a situação do presidente se agrava. Pesquisa atrás de pesquisa aponta grande vantagem de seu adversário, o democrata Joe Biden, nas eleições de novembro.
Os chineses também se beneficiam do fato de que o eixo político do mundo acompanha o eixo econômico, que se desloca para a Ásia, aconteça o que acontecer com o prestígio do “Império do Meio”. O projeto do “pivô para o Pacífico” na política externa americana, anunciado por Barack Obama em 2011, expressa a constatação desse deslocamento, em contraste com o projeto da década de 1990, sob Bill Clinton e George Bush, que consistia em aumentar o espaço dos chineses nos organismos globais centrados no Ocidente.
Apesar da retórica de Trump e da retirada americana da Parceria Transpacífica (TPP), o “pivô para o Pacífico” permanece como estratégia de Estado nos EUA, lembra Santoro. “Nas eleições deste ano, o republicano Trump e o democrata Biden vão disputar quem consegue ser mais agressivo com a China”, diz. “Provavelmente a única política realmente bipartidária de Trump seja sua confrontação com os chineses, apoiada até mesmo por editoriais da imprensa liberal.”
A sensação de rivalidade com a China se amplia nos EUA em grande parte porque a indústria chinesa já está atingindo graus de sofisticação que têm impacto militar. O esforço para barrar o avanço da Huawei na instalação da infraestrutura de tecnologia 5G em diversos países, inclusive o Brasil, se insere nessa preocupação, já que é uma tecnologia aplicada inclusive no comando de armamentos não tripulados. Por enquanto, a Huawei tem oferecido os melhores preços pela tecnologia.
Na disputa global de prestígio, ou “soft power”, a imagem dos americanos está abalada, mas a dos chineses também não sai imaculada da pandemia. A China atraiu críticas profundas no começo do ano por sua tentativa inicial de contar as notícias sobre a nova doença surgida em Wuhan. O presidente Xi Jinping demorou a aparecer em público para anunciar medidas de combate à epidemia.
Na tentativa de resgatar sua imagem, o país aproveitou a ocasião para dar início à “diplomacia da máscara”, que consiste em aproveitar seu gigantesco parque industrial para exportar equipamentos médicos e de proteção. Em abril, enquanto o noticiário internacional informava desvios de equipamentos médicos para os EUA, Xi Jinping anunciou que, caso uma vacina para a covid-19 fosse descoberta na China, sua patente seria aberta.
“É evidente que a China está tentando aproveitar a oportunidade de usar suas cadeias produtivas, sobretudo na área médica, para extrair o máximo de uma situação ruim. Os chineses precisam reverter a imagem negativa muito forte do início da pandemia”, diz Santoro. Mais por efeito da reação errática de Trump do que pela diplomacia da máscara chinesa, as pesquisas divulgadas até agora sugerem que a imagem dos americanos saiu mais prejudicada do que a chinesa na opinião pública dos outros países. Na Alemanha, uma sondagem da Fundação Körber revelou que a proporção de alemães que consideram a relação com a China mais importante do que a relação com os EUA é praticamente igual à que pensa o contrário: 37% contra 36%.
Rudd considera que um dos fatores decisivos para a “anarquia pós-pandêmica” é a máquina interna do governo chinês. O australiano busca interpretar nas entrelinhas as declarações de figuras públicas chinesas, particularmente membros do Partido Comunista. Seu diagnóstico é que Xi Jinping se tornou alvo de “críticas sutilmente veladas” em “uma série de comentários semioficiais que misteriosamente conseguiram chegar à esfera pública ao longo de abril e maio”.
Para Rudd, os vazamentos são um sinal de rachaduras no aparato estatal do gigante asiático. Considerando a ampliação de poder que Xi tem perseguido nos últimos anos, um forte arranhão em sua imagem na opinião pública e no Partido Comunista podem conduzir a uma crise de liderança no país. Não está claro, porém, se a imagem de Xi será permanentemente arranhada. “Tudo vai depender do que acontece daqui por diante”, segundo Santoro. “Como a economia vai se comportar até o fim do ano? Reabrir Beijing não foi fácil, com novos focos de infecção. A produção industrial teve boa recuperação, mas a população chinesa não voltou rapidamente ao consumo.”
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