Pular para o conteúdo principal

Guerra e Paz, o clássico da quarentena

O confinamento deu um novo impulso às ambições de ler a monumental obra de Tolstói. E muita gente leu, escreve Ruan de Sousa Gabriel em texto publicado dia 24/7 no site da revista Época. Vale a leitura da matéria e da obra, fundamental e um marco na literatura russa.

Todos os anos, a escritora sino-americana Yiyun Li revisita Guerra e paz, o gigantesco romance de Liev Tolstói (1828-1910) que acompanha a vida e o destino de centenas (sim, centenas) de personagens — aristocratas, camponeses e soldados — por salões elegantes e campos de batalha durante as guerras napoleônicas que culminaram na invasão à Rússia em 1812. “Li Guerra e paz pela primeira vez em 2007. É um livro sólido, que nos oferece quase tudo que precisamos saber sobre a vida”, disse Li a ÉPOCA. Ela costuma levar seis meses para transpor as 1.298 páginas de sua edição, traduzida para o inglês por Richard Pevear e Larissa Volokhonsky e publicada pelo Vintage Classics, selo da Penguin Random House.
Neste ano, Li não quis encarar Guerra e paz sozinha. Em março, ela criou um clube do livro virtual, em parceria com a editora independente nova-iorquina A Public Space, para encorajar a leitura do romance de Tolstói durante a quarentena. “Guerra e paz é o livro perfeito para lermos juntos durante este período de isolamento”, escreveu Li na carta de apresentação do clube do livro. “Para ler entre 12 e 15 páginas por dia, levaremos cerca de 30 minutos (muito menos tempo do que os americanos gastam nas redes sociais) e terminaremos o livro daqui a três meses — às vésperas do verão e com nossos espíritos renovados.” Li talvez não imaginasse que a quarentena seria mais longa do que Guerra e paz.
A leitura coletiva começou em 18 de março. O cronograma elaborado por Li sugeria a leitura diária de 15 a 20 páginas ao longo de 85 dias. No site da Public Space, ela disponibilizou newsletters como material de apoio à leitura. Todas as manhãs, no Twitter da editora, Li postava três comentários sobre o trecho de Guerra e paz a ser lido naquele dia e convidava os leitores a compartilhar suas impressões em suas redes sociais usando a hashtag #TolstoyTogether (#TolstóiJuntos, na tradução do inglês). “Mais de 3 mil leitores de todos os continentes se juntaram a nós”, comemorou Li, que também dá aulas de escrita criativa na Universidade de Princeton. O escritor americano Garth Greenwell, autor de O que te pertence (Todavia), foi um dos que participaram. “‘Briguem, vadias, briguem’ é o meu mantra em festa chique”, disse Greenwell no Twitter ao comentar uma cena em que o Príncipe Andrei Bolkónski, a quem ele chamou de “rainha do caos”, e Pierre Bézukhov, filho ilegítimo de um conde e protagonista do romance, se cruzam num salão. “Guerra e paz é igual à vida”, filosofou Li. “Os personagens são obrigados a passar por diversas dificuldades sem nenhum atalho. É exatamente o que estamos vivendo hoje.”
Tolstói começou a escrever Guerra e paz em 1863. Ex-segundo-tenente de um regimento de artilharia na Guerra da Crimeia (1853-1856) e recém-casado, ele tinha 35 anos e pretendia escrever um romance sobre os decembristas, grupo de nobres e oficiais que, em 1825, haviam tentado desencadear uma revolução liberal na Rússia e derrubar o tsar Nicolau I. Tolstói chegou a entrevistar alguns deles, mas concluiu que, para contar a história dos decembristas, precisava, primeiro, voltar a 1812, quando as tropas de Napoleão Bonaparte invadiram o Império Russo, e, depois, para 1805, quando o Exército francês derrotou russos e austríacos na Batalha de Austerlitz. No início, cogitava chamar seu romance de 1805, mas, ao perceber que a narrativa se tornava cada vez mais abrangente, roubou o título de um livro do anarquista francês Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865): La guerre et la paix. Tolstói publicou as primeiras parte de Guerra e paz em 1867, mas só concluiu a redação do romance em 1869.
Na “Apresentação” a sua elogiadíssima tradução de Guerra e paz, Rubens Figueiredo afirmou que, ao se debruçar sobre as guerras napoleônicas, Tolstói pôde direcionar “suas indagações para temas mais vastos e complexos, temas no mínimo incomuns na literatura da época”, como a crítica às “relações sociais” russas e também ao “sistema de relações internacionais”. “Os processos e conflitos concretos da história impregnam e conferem profundidade a cada situação e a cada palavra do narrador e dos personagens de Guerra e paz”, escreveu Figueiredo num e-mail a ÉPOCA.
Em março, Figueiredo recomendou a leitura de Guerra e paz no programa Leituras de quarentena, da Rádio Batuta, mantida pelo Instituto Moreira Salles (IMS). Ele não vê “nada de difícil ou complicado na leitura de Guerra e paz”. “A extensão do livro não é maior do que a de O senhor dos anéis, Harry Potter ou tantas séries de fantasia que todo mundo lê. O texto é muito claro, as situações são incrivelmente bem descritas, os personagens são únicos e inconfundíveis e a graça dos nomes próprios russos constitui um tempero acústico picante para a cadência do conjunto”, afirmou a ÉPOCA. A tradução de Figueiredo, publicada atualmente pela Companhia das Letras, tem 1.544 páginas divididas em dois volumes. “Insisto: nada há de difícil em Guerra e paz. O problema é nossa limitada capacidade de suportar a consciência da vida, da morte e da história.”
Irineu Franco Perpétuo, autor de uma tradução de Guerra e paz a ser publicada em 2021 pela Editora 34, considera a quarentena uma “ocasião ideal” para ler o romance, “por seu tamanho e profundidade”. Segundo Perpétuo, por se interessar por “questões malditas”, como a espiritualidade e o sentido da vida, Tolstói criou personagens com os quais nos identificamos ainda hoje. “A vida e a morte são questões ainda mais prementes numa pandemia. Estamos em tempos de paz, mas morre gente como se estivéssemos em guerra”, afirmou. Na próxima quarta-feira 29, às 19 horas, Perpétuo conversará sobre Guerra e paz com a escritora Luana Chnaiderman no canal da Biblioteca Mário de Andrade no YouTube. Na quarentena, ele preferiu ler outro clássico que trata da guerra e da paz: a Ilíada, de Homero.
Uma rápida pesquisa no Twitter revela que por aqui, na “Rússia Tropical” (como o Brasil é às vezes é chamado por internautas bem-humorados que querem ressaltar o que há de comum entre os dois países, como a tendência ao autoritarismo e ao inverossímil), muitos leitores também se propuseram a passar a quarentena agarrados a Guerra e paz. Um deles foi o ator Pedro Henrique Müller. Depois de atuar na novela Orgulho e paixão, baseada nos romances da inglesa Jane Austen (1775-1817) e exibida pela TV Globo em 2018, Müller criou um canal no YouTube dedicado à leitura de clássicos. Retomou o projeto no início da quarentena determinado a ler Guerra e paz. Todos os domingos, de 12 de abril a 5 de junho, ele aparecia no YouTube, às 19 horas, para comentar a leitura. “Virou o meu programa de domingo, meu Domingão do Faustão”, disse a ÉPOCA. Pelos comentários dos espectadores, ele percebeu que alguns deles estavam lendo Guerra e paz como se acompanhassem uma novela. “Tinha gente que se identificava com algum personagem, como a Mária, que sofria muito, ou shippava casais. Uns shippavam a Natacha e o Andrei, outros shippavam ela e o Pierre”. “Shippar” é “torcer por um casal” em internetês.
Passar a quarentena com Tolstói não estava nos planos do estudante de Direito Antonio Tavalera, mas, ao ajudar o avô a arrumar a biblioteca, ele encontrou uma edição de Guerra e paz publicada pela editora Itatiaia em 1968 (tradução de Oscar Mendes) e resolveu dar uma chance. “Meu avô não acreditou que eu leria um livro tão grande, mas ficou muito feliz quando terminei”, disse Tavalera, que leu o romance em 40 dias. “Guerra e paz fala de todas as emoções humanas, da mais pura alegria ao medo de um jovem soldado na guerra, da felicidade de ver um filho dando seus primeiros passos à dor de se despedir de um amigo.” Tavalera gostou tanto da leitura que criou uma conta no Instagram para compartilhar suas leituras. A primeira resenha publicada por ele na rede social foi de Guerra e paz. A segunda será de outro clássico russo, Crime e castigo, de Fiódor Dostoiévski (1821-1881), lido em seguida. Agora, ele pretende encarar os sete volumes de Em busca do tempo perdido, do francês Marcel Proust (1871-1922), que totalizam mais de 4 mil páginas. Será que ele termina antes do fim da quarentena? “Estou com medo de perder todo esse tempo livre”, brincou.
A escritora americana Kate Cohen lamentou que a pandemia esteja se arrastando mais do que a leitura de Guerra e paz. Em março, pouco antes da imposição do lockdown em Albany, capital do estado de Nova York, ela e uma amiga combinaram de ler o livro juntas. “Muitas pessoas têm se dedicado a projetos pessoais durante a pandemia para não perder a noção de tempo e para dar sentido ao caos. Esses projetos nos ajudam a fingir que tudo está bem ou que a quarentena é uma experiência positiva”, disse Cohen num e-mail a ÉPOCA. “Quando terminei a leitura e pude riscá-la de minha lista, foi perturbador perceber que ainda estávamos no meio — ou no começo! — da pandemia.” Num artigo publicado em maio no jornal americano The Washington Post, Cohen perguntou: “Se eu terminei de ler Guerra e paz, a pandemia já não deveria ter acabado?”. “A editora que há em mim cortaria facilmente umas 300 páginas de Guerra e paz. Eu me perguntava com frequência se realmente precisávamos de outra investigação filosófica sobre a história ou a guerra”, disse a ÉPOCA.
Na segunda parte do epílogo de Guerra e paz, Tolstói expõe sua filosofia da história e critica historiadores antigos e modernos. Para os primeiros, a história era escrita pelos deuses; para os últimos, era forjada pela vontade de grandes homens, como Napoleão Bonaparte, que conduziriam a humanidade rumo a um objetivo determinado (“a liberdade”, “a igualdade”, “um tipo conhecido de civilização”). Antigos e modernos, acusou o russo, são incapazes de explicar as forças que, de fato, movem a história. As reflexões de Tolstói sobre os avanços e recuos da história talvez aflijam quem tirou Guerra e paz da estante nestes tempos doentes, quando é extremamente difícil vislumbrar algum futuro.
“Gostaria de saber como os leitores estão digerindo a visão de Tolstói de que a história não pode ser explicada de maneira lógica, identificando causas racionais específicas e desconsiderando o acaso”, disse o jornalista, escritor e psicanalista Robson Viturino, que está quase no fim do romance. “A voz do narrador domina a narrativa com seu estoicismo e leva a crer que há algo de inapreensível e impossível de dominar em grandes eventos, como as guerras napoleônicas. Concordo com o caráter imprevisível e, às vezes, incontrolável da história. Nesse aspecto eu estou de acordo com Tolstói. O ponto de que discordo é a postura estoica, de aceitação resignada do destino, que, em muitos momentos do livro, surge como a melhor resposta para enfrentar as agruras. No Brasil de 2020, assistir calado ao que se passa seria como aceitar a morte.”
Para o professor de literatura e escritor Henrique Balbi, que leu Tolstói depois de ouvir a sugestão de Figueiredo na Rádio Batuta, “Guerra e paz tem muito a ver com o momento da pandemia por articular dois planos de existência: o individual e o coletivo”. “Enquanto no individual os personagens tentam controlar seu destino, no coletivo ele foge ao controle de qualquer um, e isso reverbera de novo nos personagens”, disse Balbi, que também é colunista do site de ÉPOCA. “É igual à pandemia: a gente tenta se proteger, faz isolamento, usa máscara, mas no fundo há uma dimensão maior, coletiva, histórica, de que não conseguimos escapar e que volta para nos afetar. Nesse sentido, Guerra e paz é uma lição forte contra um individualismo muito brasileiro que acha que pode tudo e despreza ou sabota a dimensão coletiva.”


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Um pai

Bruno Covas, prefeito de São Paulo, morreu vivendo. Morreu criando novas lembranças. Morreu não deixando o câncer levar a sua vontade de resistir.  Mesmo em estado grave, mesmo em tratamento oncológico, juntou todas as suas forças para assistir ao jogo do seu time Santos, na final da Libertadores, no Maracanã, ao lado do filho.  Foi aquela loucura por carinho a alguém, superando o desgaste da viagem e o suor frio dos remédios.  Na época, ele acabou criticado nas redes sociais por ter se exposto. Afinal, o que é o futebol perto da morte?  Nada, mas não era somente futebol, mas o amor ao seu adolescente Tomás, de 15 anos, cultivado pela torcida em comum. Não vibravam unicamente pelos jogadores, e sim pela amizade invencível entre eles, escreve Fabrício Carpinejar em texto publicado nas redes sociais. Linda homenagem, vale muito a leitura, continua a seguir.  Nos noventa minutos, Bruno Covas defendia o seu legado, a sua memória antes do adeus definitivo, para que s...

Dica da Semana: Tarso de Castro, 75k de músculos e fúria, livro

Tom Cardoso faz justiça a um grande jornalista  Se vivo estivesse, o gaúcho Tarso de Castro certamente estaria indignado com o que se passa no Brasil e no mundo. Irreverente, gênio, mulherengo, brizolista entusiasmado e sobretudo um libertário, Tarso não suportaria esses tempos de ascensão de valores conservadores. O colunista que assina esta dica decidiu ser jornalista muito cedo, aos 12 anos de idade, justamente pela admiração que nutria por Tarso, então colunista da Folha de S. Paulo. Lia diariamente tudo que ele escrevia, nem sempre entendia algumas tiradas e ironias, mas acompanhou a trajetória até sua morte precoce, em 1991, aos 49 anos, de cirrose hepática, decorrente, claro, do alcoolismo que nunca admitiu tratar. O livro de Tom Cardoso recupera este personagem fundamental na história do jornalismo brasileiro, senão pela obra completa, mas pelo fato de ter fundado, em 1969, o jornal Pasquim, que veio a se transformar no baluarte da resistência à ditadura militar no perío...

Dica da semana: Nine Perfect Strangers, série

Joia no Prime traz drama perturbador que consagra Nicole Kidman  Dizer que o tempo não passou para Nicole Kidman seria tão leviano quanto irresponsável. E isso é bom. No charme (ainda fatal) de seus 54 anos, a australiana mostra que tem muita lenha para queimar e escancara o quanto as décadas de experiência lhe fizeram bem, principalmente para composição de personagens mais complexas e maduras. Nada de gatinhas vulneráveis. Ancorando a nova série Nine Perfect Strangers, disponível na Amazon Prime Video, a eterna suicide blonde de Hollywood – ok, vamos dividir o posto com Sharon Stone – empresta toda sua aura de diva para dar vida à mística Masha, uma espécie de guru dos novos tempos que desenvolveu uma técnica terapêutica polêmica, pouco acessível e para lá de exclusiva. Em um lúdico e misterioso retiro, a “Tranquillum House”, a exotérica propõe uma nova abordagem de tratamento para condições mentais e psicossociais manifestadas de diferentes formas em cada um dos nove estranhos, “...