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Contardo: o que mais detesto no Brasil de hoje é tentar explicar sua boçalidade

Minha última viagem, antes que o coronavírus imobilizasse a todos, foi no Natal de 2019, que passei em Nova York. Não sei, aliás, quando e se, em algum dia do futuro, NY voltará a ser o que sempre amei desde os anos 1960: o protótipo da convivência urbana mais intensa —cultural, comercial e sexual. No dia 24, antes de a gente passar a ceia juntos, almocei com Antoine Compagnon, um amigo do peito que não via há tempos. Passamos a tarde conversando, num dos restaurantes do Time Warner Building, no Columbus Circle, escreve Contardo Caligaris em sua coluna semanal na Folha de São Paulo, texto que vale a leitura. Continua a seguir.

Era a primeira vez que encontrava Antoine depois da morte de Patrizia Lombardo, que fora a grande companheira da vida dele. Os três tínhamos sido amigos muito próximos nos anos 1970; os três orientandos de doutorado de Roland Barthes, frequentadores do grande e pequeno seminário; os três nos formando na Paris daqueles anos, que era insensata, mágica e apaixonadamente inteligente.
Seguimos caminhos diferentes. Antoine e Patrizia se tornaram acadêmicos. Antoine na Universidade Columbia em Nova York e, enfim, no Collège de France. Patrizia, depois de um tempo nos Estados Unidos, na Universidade de Genebra (que é a universidade que me formou, aliás).
Antoine e eu, numa época (1974 ou 1975), projetamos um livro a quatro mãos contra a linguística de Ferdinand de Saussure, que, ao nosso ver, era uma simplificação quase cômica do funcionamento da linguagem (uma catástrofe para o estruturalismo francês). Passamos um verão trabalhando nisso, mas, no fim, cada um foi pelo seu caminho. Eu enveredei pelo exercício da psicanálise, e ele enveredou por seus autores preferidos (Montaigne, Proust) e para um ensaísmo frequentemente genial.
Naquela tarde de véspera de Natal, recapitulando juntos nossas vidas, confessei a Antoine que, recentemente, eu tinha a estranha impressão de dedicar tempo demais a autores, temas ou questões que talvez não valessem a pena.
É uma observação frequente depois de um doutorado: alguém passa dez anos estudando um autor, por exemplo, e, no fim, se pergunta se o autor valia o esforço e o tempo.
Mas minha observação não tinha a ver com meu doutorado, era mais genérica. A que eu me referia? A quais autores e quais questões eu dedicaria mais tempo e esforço do que merecessem?
Comecei passando mentalmente em revista os autores canônicos para mim.
Freud sem dúvida valeu a pena. Lacan também, sobretudo pela extraordinária curiosidade intelectual (a vontade de ler mil outras coisas) pela qual a gente era tomado ao lê-lo ou escutá-lo falar. Barthes era leve e elegante a ponto de nunca ter me exigido muito tempo ou esforço. Foucault, enfim, sempre foi, para mim, o sonho de uma outra vida possível e tentadora. Adoro arquivos e bibliotecas, teria gostado de passar a vida na Biblioteca Nacional de Paris, explorando e descobrindo conexões que aliviariam o peso dos falsos sentidos dos quais sofremos. E é isso que os grandes historiadores fazem.
Houve um momento, em 1974, justamente, em que tive que decidir se eu me tornaria psicanalista ou responderia ao convite de uma universidade dos EUA (na especialidade que mais me interessava, que eram as relações entre literatura e artes plásticas).
Para mim, naquele momento, a escolha se resumia assim: o que mais me importa, a leitura dos grandes (e quem sabe dos sábios) ou a escuta de mil dores, alegrias e misérias cotidianas?
Bom, eu me tornei psicanalista e dediquei uma enorme quantidade de minha atenção (flutuante ou não) e de meu tempo à escuta, de mim mesmo e dos outros.
Será que era a isso que eu me referia naquela tarde, conversando com Antoine? Uma espécie de lamento, como se as errâncias de mil e tantas subjetividades humanas, de repente, me parecessem não valer a pena e a dedicação?
Não é isso. A última coisa à qual renunciaria é justamente a escuta dos pacientes. Minha pergunta (será que valeu a pena?) surgia de outro cansaço. Qual?
Aos poucos, me dei conta de que havia algo, sim, na minha escuta do cotidiano, que me dava a estranha impressão de não valer a pena.
Desde o ano retrasado, a atualidade é ocupada por uma vulgaridade inculta, grossa, violenta e idiota, que é imperativo escutar e comentar — no mínimo, para a gente se defender de seu ódio.
É o que mais detesto e desprezo no Brasil de hoje: a necessidade de passar estes anos me dedicando a contemplar e tentar explicar sua boçalidade.
Contardo Calligaris é psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de Menina?', com Maria Homem (Papirus)



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