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Gabo, a biblioteca de um viajante

Teresa de Miguel e David Marcial Pérez escrevem da Cidade Do México uma ótima reportagem, publicada em 6/8 no site do El País. Íntegra a seguir.

Uma rosa amarela, um dicionário e uma máquina de escrever. É tudo de que Gabriel García Márquez (Aracataca, Colômbia, 1927−Cidade do México, 2014) precisava para entrar em ação. Aos oito anos, seu avô lhe contou que as flores amarelas davam sorte, e ele nunca mais se separou delas. Durante a entrega do Nobel de Literatura (1982), tinha uma escondida no bolso. Gabo se considerava um amante dos dicionários, embora sua relação com as enciclopédias fosse de amor e ódio. Em 1977, prefaciou uma edição do Diccionario de Uso del Español, de María Moliner, seu favorito. Mas, ao mesmo tempo, inventava palavras: condolientes (“condolentes”), mecedor (“mexedor”, “balanceador”). Propôs até mesmo aposentar a ortografia, principalmente o “h rupestre”.
Também declarou guerra às máquinas de escrever. Sua primeira Remington ardeu no fogo dos distúrbios do Bogotaço, em 1948. Uma década depois, a máquina que concebeu em Paris Ninguém Escreve ao Coronel tinha perdido a tecla “d” pelo caminho. Para poder terminar o texto, teve de improvisar, completando manualmente cada “c” com um tracinho vertical. Depois, comprou uma Torpedo alemã e uma Smith Corona elétrica. Isso até se apaixonar pela Apple. Um eMac do início dos anos 2000, um computador branco com forma de pepino retrofuturista, continua na escrivaninha de sua casa na Cidade do México.
“Não era especialmente fetichista, mas foi comprando cada um dos modelos de Mac que foram saindo”, conta seu filho Gonzalo García Barcha, olhando para a traseira as costas ovais da máquina. Depois da explosão de sucesso de Cem Anos de Solidão durante sua estadia em Barcelona, a família chegou a esta casa na Cidade do México em 1975, quando ele tinha 11 anos e seu irmão, Rodrigo, 15. Gonzalo García lembra que muitas manhãs, ao voltar do colégio, os dois garotos cruzavam correndo o quintal com jardim e entravam para cumprimentar seu pai enquanto ele trabalhava no estúdio. Sentado à mesa onde hoje permanece um vaso com rosas amarelas diante de uma coleção de dicionários na estante, Gabo os olhava em silêncio, com os dedos ainda sobre o teclado, e os deixava falar. “Muitas vezes não sabíamos se realmente nos escutava. Ele se concentrava muito quando estava trabalhando.”
A concentração é uma das características mais destacadas por aqueles que alguma vez o viram trabalhando em seu estúdio. Iván Granados foi seu bibliotecário pessoal de 2007 até sua morte, em abril de 2014. Também costumava chegar de manhã. Cumprimentava-o ―“bom dia, professor”― e, durante as três ou quatro horas seguintes, mal trocavam palavras. “Ele não era nem um pouco maníaco, não interferia muito na organização de seus livros. Em troca, o que precisava era que o deixassem trabalhar o tempo que fosse necessário”, conta, por telefone, Granados, que prepara a publicação de uma pesquisa sobre a obra de Gabo, além de uma compilação de textos dispersos do autor colombiano. Depois da morte do escritor, Granados continuou indo à casa para terminar a tarefa. Durante anos, encarregou-se de dividir os quase 5.000 títulos em quatro áreas: uma com as traduções de seu próprios títulos; outra com dicionários e enciclopédias; uma terceira com livros de documentação com os quais preparava suas obras; e finalmente, a literatura que lhe interessava ―romance, poesia, ensaio, jornalismo, cinema e política.
De pé, olhando de frente para a área dos ensaios, Gonzalo García reconhece um livro importante, Las Flores en la Poesía Española, do filólogo José Manuel Blecua. Uma edição de 1968, da editora Gredos. “Em casa nunca houve muita pressão para que nos encaminhássemos para a leitura, mas se perguntássemos, por exemplo, sobre poesia, passavam-nos esse livro”. Gonzalo García, que é ilustrador e editor, avisa, de qualquer forma, que na biblioteca já não há muitos livros de sua infância. Nem aqueles com que seu pai formou sua cultura literária. Ao longo dos últimos anos, a família doou muito material à Biblioteca Nacional da Colômbia, além da parte do arquivo conservada pela Universidade do Texas em Austin.
Mesmo assim, Gonzalo García continua procurando entre os títulos da parede. E aparece uma edição de 1972 do Ulisses de James Joyce, esse “calhamaço assustador”, como um jovem Gabo o chamou. Também aparecem cópias de O Dia do Chacal e O Conde de Monte Cristo. “Meu pai sempre fugiu da solenidade e nunca fez distinção entre o que se chama de alta e baixa cultura, pegava o que podia de todo os lados”, explica seu filho sobre sua conhecida veia popular. Seu bibliotecário pessoal tem uma teoria complementar: “Esta não é a biblioteca de um colecionador ou de alguém que teve a oportunidade de ir guardando seus primeiros livros. É a biblioteca de um viajante que se estabelece definitivamente no México”.
Antes de se instalar pela segunda vez, e para sempre, no México aos 52 anos, o escritor colombiano teve uma vida errante: Barranquilla, Bogotá, Paris, Havana, Caracas, Londres, Barcelona. “Além disso, leu seus primeiros livros emprestados”, acrescenta Granados. “Em suas memórias, explica como descobriu Kafka e Faulkner pelos livros de seus amigos.” Apesar de tudo, a biblioteca do viajante também guarda preciosidades. Como uns 20 volumes da lendária Pléiade, a coleção da Gallimard que reúne o cânone da literatura universal através de antologias dos grandes textos, encadernados com capa dura revestida de couro flexível e com páginas finíssimas de papel-bíblia.
O vallenato
O que nunca faltou a Gabo em nenhuma de suas etapas foi o vallenato, sua música favorita. Tanto que gostava de dizer que “Cem Anos de Solidão nada mais é que um vallenato de 450 páginas”. Seus amigos no Caribe colombiano lhe enviavam fitas com músicas. Algumas continuam aqui, ao lado de Rocio Jurado, José Luis Perales, Armando Manzanero e Joaquín Sabina. O estúdio da casa mexicana, um amplo corredor de tijolos brancos em forma de “L”, tem as paredes transformadas em estantes. Acompanhando aos livros, há também mesas, sofás e poltronas para descansar e conversar. De manhã, esta biblioteca era o bunker de trabalho de Gabo. À tarde, o centro de operações de muitas farras. “Tinha um bar sempre muito bem abastecido”, lembra seu filho. Fidel Castro, Sean Penn e Silvio Rodríguez foram algumas das muitas e ilustres visitas. Quando a festa era entre escritores, a brincadeira era que um deles começasse a recitar um verso de Lorca, ou de algum poeta espanhol do Século de Ouro, e outros continuassem com a estrofe.
Uma cópia gigante do retrato que Richard Avedon fez de García Márquez nos anos setenta domina uma das paredes. Mais fotos: seus filhos, sua esposa, seus pais, Ernest Hemingway, Gabo com Juan Rulfo, com Felipe González, com Bill Clinton. Os personagens históricos também foram personagens de seus livros. Retratados com um rigor matemático, herdeiro possivelmente de sua veia jornalística. Para O General em seu Labirinto, que narra os últimos dias de Simón Bolívar, Gabo mergulhou fundo nos 34 volumes das memórias de Daniel Florence O’Leary, o general irlandês que acompanhou o libertador até seu túmulo. Voltava uma e outra vez às fontes históricas para, muitas vezes, simplesmente confirmar a verossimilhança de uma cena. Por exemplo, quando quis descrever o general comendo um pedaço de manga e foi comprovar se, no início do século XIX, o cultivo de manga já havia chegado à atual Colômbia.
Mais de seis anos depois da morte de Gabo, ainda chegam à sua casa pacotes com livros. Muitos de autores iniciantes, que continuam buscando a aprovação do professor. A família reconhece que, como esses livros já não têm quem os leia, foi encontrado um destino melhor para eles. Graças a um acordo aprovado em vida pelo próprio Gabo, todos os meses a família envia caixas com livros à biblioteca de uma escola rural agropecuária de um povoado de Sinaloa (México). Em troca, recebe caixas com lichias e camarões.


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