Pular para o conteúdo principal

Raj Sisodia: lucro não deve ser a única motivação de empresas

É de um romance de Charles Dickens de 1859 que o indiano Raj Sisodia se recorda para definir os paradoxos atuais do mundo dos negócios. A narrativa do inglês oscila entre o “melhor dos tempos” e o “pior dos tempos”, entre a “era da sabedoria” e a “era da tolice”, entre a “primavera da esperança” e o “inverno do desespero”. É “Um Conto de Duas Cidades”, construído em cima da Inglaterra do século XIX, que testemunhou a revolução da política e de valores ocorrida cem anos antes na França e tentava empreender a sua própria. Mas o conto também é sobre qual caminho seguir como país, e Sisodia defende que, passados mais de dois séculos daquela revolução, os negócios se veem diante de uma bifurcação similar. “Temos muitas coisas melhores do que já tivemos em toda a história em termos de expectativa de vida, recursos, tecnologias. Mas este é o pior tempo porque ainda não enfrentamos as maiores ameaças existenciais”, afirma Sisodia, de 62 anos. Barbara Bigarelli, no Valor de sexta, 28/8, escreve esta bela matéria, continua a seguir.

A pandemia não é nem de longe uma delas, diz o professor de negócios do Babson College, fundador do movimento Capitalismo Consciente. No entanto, é um alerta e uma oportunidade para as próximas que virão. É como se estes dias fossem um prólogo para testes maiores, como escreveu na “Harvard Business Review”.
Para ele, é uma questão de tempo - cada vez mais curto - para que líderes de negócios sejam desafiados novamente. Mudar as premissas com as quais as companhias operam e a definição de sucesso que as direciona é a grande escolha para ele. “As pessoas vão se lembrar das empresas que reagiram de forma mais egoísta nesta pandemia, pensando só no acionista, e que não fizeram tudo que puderam para proteger quem poderiam e evitar contaminação em larga escala.”
Não fosse a pandemia, o professor estaria provavelmente no Brasil para lançar seu livro mais recente, “Empresas que Curam - Despertando a Consciência dos Negócios para Ajudar a Salvar o Mundo” (Alta Books), escrito com Michael J. Gelb. Estaria morando em Boston, mas, agora, ele tem feito o que pode, inclusive um livro de memórias, de uma casa em Aspen, no Colorado, EUA. É a sala de lá que o vídeo da entrevista para este “À Mesa com o Valor” descortina, indicando uma decoração rústica, que transmite certo conforto, no fim de uma manhã do verão local.
Do outro lado da tela, Sisodia está com uma camisa xadrez de mangas curtas e estampa listrada nas cores bege, branca e azul claro. Combina com a decoração da sala, que tem uma parede de bambus, escada de madeira e sofás aparentemente confortáveis. Remete ao clima de montanhas rochosas e natureza do Colorado. Considerando que o Brasil é um destino frequente a Sisodia, a repórter promete um almoço ao indiano quando ele puder retomar a agenda de compromissos e voos internacionais.
O homem de negócios, aqui em modo informal, diz que o maior desafio atual das organizações é sobreviver no curto prazo, mas aproveitar a crise para construir um negócio mais “resiliente”, revendo os alicerces e o que fazem de importante para a sociedade. “É como reconstruir uma casa após a passagem de um furacão. Você não constrói a mesma casa, nem que você queira.”
É isso que torna Sisodia mais otimista neste momento. “A covid-19 também mostrou que as empresas podem mudar a forma como operam rapidamente e que CEOs podem tomar decisões que demorariam anos em dias.”
O que o mantém em estado de alerta, porém, é lembrar dos desdobramentos da crise de 2008, nos EUA. “Muitas organizações gastaram muito de seu lucro recomprando ações para compensar acionistas, aumentando o preço sem que isso refletisse um negócio com propósitos refundados, maior geração de valor aos indivíduos e à sociedade, e não apenas lucrar.”
Foi naquele ano que Sisodia lançou um movimento global por um capitalismo mais consciente, ao lado do então CEO da Whole Foods, John Mackey. Em livros, palestras e consultorias, ele vem explicando que a principal premissa é de que o lucro não deve ser a única motivação de existência de uma organização. Elas devem operar a partir de quatro pilares: liderança consciente, propósito elevado, orientação aos stakeholders e cultura consciente.
Sisodia dizia acreditar que o modelo era viável e sustentável em termos econômicos porque entre 2005 e 2007 realizou um estudo acadêmico ao lado de Jag Sheth e David Wolfe. “Em 2004, os gastos em marketing de empresas americanas superaram o PIB da Índia, e eu pensei: ‘Para onde está indo esse tsunami de gastos? Que benefícios está gerando para companhias, funcionários, fornecedores e clientes?’.”
Ele estava prestes a publicar um livro alertando para essa estatística, chamado “The Shame of Marketing” (A Vergonha do Marketing), quando o mentor Jag Sheth lhe disse: “Raj, aqui na América as pessoas querem ouvir mais sobre uma solução do que sobre um problema”.
Ele mudou seu foco de pesquisa e foi atrás de empresas que conseguiam manter alta reputação e fidelidade dos clientes sem ter investimentos exorbitantes em publicidade e marketing. Estava aí sua tese e seu novo propósito, que gerou o livro “Empresas Humanizadas”, publicado em 2007, e de onde extraiu os quatro pilares do Capitalismo Consciente. “Até o livro, eu praticava a forma tradicional de fazer negócios, focada em números, retorno ao acionista, dividendos. Dava aula de negócios defendendo isso. Mas a pesquisa me mostrou que havia um novo jeito.” Foi o ponto de virada na sua vida.
Nascido em uma vila na região de Kesur, na casta dos warriors - a segunda faixa da sociedade, abaixo dos brâmanes -, Sisodia diz que sempre viveu entre mundos. Há aquele que conheceu até os 7 anos, antes de mudar para Barbados, Califórnia e Canadá, seguindo os movimentos da carreira do pai, Narayan, Ph.D. e pesquisador na área de melhoramento de plantas.
Há o outro mundo em que viveu, quando voltou ao seu país para cursar ensino médio, faculdade (em engenharia eletrônica) e MBA. E há ainda um terceiro, que conheceu quando voltou aos EUA aos 23 anos para um doutorado em marketing em Columbia. “Em Barbados, eu estava olhando aquilo pelos olhos de uma criança indiana de uma aldeia e via tudo com uma sensação de admiração. E então, quando voltei aos 12 anos para a Índia, estava olhando para o que acontecia no país com os olhos de uma pequena criança americana da Califórnia. Depois, voltando para os EUA, tive uma perspectiva da cultura e da herança espiritual indiana, sobre a qual eu sabia um pouco. Então, novamente, eu estava olhando para tudo sempre como um estranho. Dentro e fora de mim.”

Esse conflito interno e a busca, de certa forma, por um senso de pertencimento, refletiu diretamente no seu olhar para os negócios. Mas, quando ele achava que tinha encontrado o caminho, ao escrever “Empresas Humanizadas” - que começou a ser concebido em 2005 -, voltou à Índia e entregou a história a um antigo professor e mentor. “Ele me disse que não tinha conseguido parar de ler o livro, e eu agradeci, dizendo que a apreciação dele significava muito para mim. Mas então ele me respondeu: ‘Eu não parei de ler porque não vi nada de novo. Os valores são aqueles mesmos que movem as tradições na Índia há milhares de anos’.”
Sisodia percebeu, então, o quanto estava desconectado de sua cultura por, desde muito cedo, estudar em escolas que falavam inglês, dirigidas por missionários católicos e por achar que a forma natural de fazer negócios era a americana. Buscou se reconectar com esses valores, e seu discurso, sua jornada e sua defesa ganharam também um tom mais espiritual, diz. Em um livro escrito em 2016, ele reflete como olhar os negócios de uma forma consciente demanda mudar o peso e a predominância de uma visão masculina nas organizações. “Nós temos mulheres ocupando esses espaços, mas não temos a energia feminina equilibrando, representando de forma equânime valores como compaixão, empatia e cuidados. Essa energia faz falta.”
A ideia das duas energias que se completam veio de uma reflexão que Sisodia fez ao longo de décadas para entender o que bloqueava seu desenvolvimento como indivíduo e profissional. “Eu era uma criança idealista, inocente, amorosa, que confiava em tudo e todos. Mas, ao perceber a figura patriarcal e autoritária do meu pai, herança do avô e fruto de um ambiente indiano onde essa é a energia da liderança dominante, tentei me desenvolver como ele: alguém rude que não deveria confiar em ninguém”.
Por 45 anos, ele tentou ser assim para impressionar seu pai, cuja carreira de sucesso, autenticada por títulos de doutor e prêmios o levava a crer que esse era o comportamento a ser replicado. “Mas quando escrevi as histórias do livro [“Empresas Humanizadas”], com empresas movidas por valores muito mais parecidos com os da minha mãe, uma simples dona de casa e sem formação universitária - como compaixão e cuidado com os outros -, chorei pela primeira vez em um trabalho. Comecei a mudar meu propósito de vida e minha própria forma de ser.”
Quase uma década depois da publicação, Sisodia diz que levou esse momento para a ocasião em que fez “coach” pela primeira vez. A conversa gerou uma reconciliação com sua mãe em 2018. Já famoso internacionalmente, nomeado um dos “Ten Outstanding Trailblazers” (dez pioneiros excepcionais) de 2010 pela Good Business International e com dez livros publicados, ele disse à Usha, sua mãe, que ela era a responsável por tudo que conquistou. Hoje, ele afirma carregar as “duas energias”, do pai e da mãe, entendendo o que cada uma pode contribuir de positivo em sua atuação.
“E é por essa razão que hoje defendo que todo líder, antes de querer curar uma empresa, precisa curar a si próprio. Todos carregam traumas, muitos deles de infância, que devem ser resolvidos, para que, como dizem por aí, as vítimas não sofram com outras vítimas.”
Olhando para trás, Sisodia afirma que o capitalismo consciente evoluiu na última década. No Brasil, o movimento foi criado em 2013 e tem 106 empresas associadas; em seu conselho, estão empresas como Natura, SAP, Clearsale, Petz, Gerdau, Cacau Show, Magazine Luiza e Danone. Como Sisodia deixou de focalizar os números há 15 anos, ele prefere definir essa evolução dizendo que atualmente muitos dos novos negócios criados já nascem com um propósito social elevado e que a ascensão de movimentos como The Valuable 500, de Richard Branson e Paul Polman, e Imperative 21, que quer criar uma nova forma de se relacionar com stakeholders, indicam que uma maneira diferente de pensar o capitalismo já se faz presente. Mais significativo que isso, porém, foi o ano de 2019.
“Foi quando vimos movimentos concretos, de players muito grandes.” O principal deles foi o Business Roundtable - associação que reúne 183 companhias dos EUA, com faturamento somado de mais de US$ 7 trilhões -, que definiu que o lucro não é o maior propósito dessas organizações. Em um movimento que muita gente chamou de Capitalismo 3.0, empresas como JP Morgan e Amazon assinaram um manifesto se comprometendo a ter um novo propósito de negócios. “Foi uma grande mudança, porque no passado essas mesmas empresas disseram que o objetivo único era financeiro.”
O Fórum Econômico Mundial também apresentou um debate com diversos executivos comprometendo-se com um “capitalismo de stakeholder”, assinando um manifesto e indicando que o acionista não é mais o único foco. No pano de fundo dessas movimentações, diz Sisodia, está a pressão de investidores cobrando uma postura mais consciente das empresas diante de seus funcionários, clientes, fornecedores etc.
“E aí temos o Larry Fink, da BlackRock, como precursor, alguém que abraça a causa de um capitalismo consciente há muitos anos, que tem US$ 7 bilhões de ativos sob sua gestão, dizendo que negócios precisam pensar no longo prazo e isso pressupõe pensar em todos seus stakeholders.”
Diante desses novos paradigmas, Sisodia também quer evoluir o conceito de capitalismo consciente e grande parte de seu discurso está focado em descrever as “empresas que curam”. Em sua pesquisa acadêmica mais recente, ele foi atrás de organizações nos EUA, na Índia e Europa com CEOs comprometidos em “diminuir as fontes de sofrimento” da sociedade, de seus funcionários ou clientes.
“A Jabian Consulting, por exemplo, reformulou o modelo de negócios ao constatar que a vida dos consultores é ingrata. Passa-se muito tempo viajando e fora de casa para realizar o trabalho, enquanto os filhos crescem com pais distantes. Qual é o custo de uma criança que cresce sem os pais por perto? Entenderam que a empresa tinha responsabilidade nessa resposta.”
Há também o caso do CEO John Ratliff, da empresa de “call center” Appletree Answers, que constatou que existiam duas vidas dentro de sua empresa: aquela dos funcionários qualificados e bem-remunerados (15%), com condições de bancar problemas de saúde, psicológicos e financeiros, e aquela dos trabalhadores remunerados por hora (85%), que mal tinham uma casa para morar. O “turnover” do primeiro grupo era de 3%. Do segundo, 118%.
“Ele remodelou toda sua cultura depois disso.” O grande problema dos CEOs atualmente, diz, é que eles não conhecem a vida e o contexto de grande parte de seus funcionários. “Há um ‘reality show’ nos EUA que leva o executivo a realizar o trabalho de quem está na ponta do seu negócio. No fim, o CEO admite que aquele trabalho é dificílimo e mal remunerado e, geralmente, dá um cheque e ajuda financeira àquelas pessoas com as quais interagiu. Mas isso não resolve a vida desses indivíduos, tampouco o sistema de sociedade.”
É por essa razão que Sisodia defende no seu novo livro que os negócios só vão fazer diferença na sociedade se analisarem a realidade e entenderem onde estão as causas de dores e sofrimentos. A partir da constatação, vem a missão da liderança de criar uma cultura onde as pessoas possam expressar suas situações angustiantes e outras possam ajudar a construir formas de endereçar uma solução.
“Não estou dizendo para criar negócios que curam montando estúdios de ioga e de massagem, mas para mudar métricas de sucesso, para criar uma cultura que acolha e ajude, para medir o impacto pelo número de pessoas atingidas positivamente, e não só pelo que vem no balanço.”
Como exemplos, Sisodia cita Paul Polmann, seu amigo e ex-CEO da Unilever, e Bob Chapman, CEO da Barry-Wehmiller, que seriam contrapontos a um modelo de gestão meritocrático, estritamente financeiro e de pressão por resultados que pautou a construção das empresas investidas pelo 3G Capital.
“Se você olhar para o que aconteceu recentemente com a Kraft Heinz, verá que eles até tiveram um aumento nas ações após a aquisição. Mas precisaram demitir milhares de pessoas para ganhar mais. A que custo isso veio? Quantas pessoas sofreram nesse processo?”. Procurada, a Kraft Heinz não quis se manifestar.
Na entrevista, Sisodia é alertado que Jorge Paulo Lemann, um dos três brasileiros do 3G, assumiu neste mês que “mudar uma cultura que foi bem-sucedida por anos é um processo lento, ainda mais em organizações tão grandes”. Ao que Sisodia rebate: “Eu não vi ainda essa entrevista, mas aí é o meu ponto: eles continuam achando que aquela cultura era bem-sucedida”. É dessa bifurcação que Sisodia fala quando cita Dickens e a escolha entre duas eras e, para ele, duas formas de fazer negócios no mundo.


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

No pior clube

O livro O Crepúsculo da Democracia, da escritora e jornalista norte-americana Anne Applebaum, começa numa festa de Réveillon. O local: Chobielin, na zona rural da Polônia. A data: a virada de 1999 para o ano 2000. O prato principal: ensopado de carne com beterrabas assadas, preparado por Applebaum e sua sogra. A escritora, que já recebeu o maior prêmio do jornalismo nos Estados Unidos, o Pulitzer, é casada com um político polonês, Radosław Sikorski – na época, ele ocupava o cargo de ministro do Interior em seu país. Os convidados: escritores, jornalistas, diplomatas e políticos. Segundo Applebaum, eles se definiam, em sua maioria, como “liberais” – “pró-Europa, pró-estado de direito, pró-mercado” – oscilando entre a centro-direita e a centro-esquerda. Como costuma ocorrer nas festas de Réveillon, todos estavam meio altos e muito otimistas em relação ao futuro. Todos, é claro, eram defensores da democracia – o regime que, no limiar do século XXI, parecia ser o destino inevitável de toda

Abaixo o cancelamento

A internet virou o novo tribunal da inquisição — e isso é péssimo Só se fala na rapper Karol Conká, que saiu do BBB, da Rede Globo, com a maior votação da história do programa. Rejeição de 99,17% não é pouca coisa. A questão de seu comportamento ter sido odioso aos olhos do público não é o principal para mim. Sou o primeiro a reconhecer que errei muitas vezes. Tive atitudes pavorosas com amigos e relacionamentos, das quais me arrependo até hoje. Se alguma das vezes em que derrapei como ser humano tivesse ido parar na internet, o que aconteceria? Talvez tivesse de aprender russo ou mandarim para recomeçar a carreira em paragens distantes. Todos nós já fizemos algo de que não nos orgulhamos, falamos bobagem, brincadeiras de mau gosto etc… Recentemente, o ator Armie Hammer, de Me Chame pelo Seu Nome, sofreu acusações de abuso contra mulheres. Finalmente, através do print de uma conversa, acabou sendo responsabilizado também por canibalismo. Pavoroso. Tudo isso foi parar na internet. Ergue

OCDE e o erro do governo na gestão das expectativas

O assunto do dia nas redes é a tal negativa dos Estados Unidos para a entrada do Brasil na OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico). Enquanto os oposicionistas aproveitam para tripudiar, os governistas tentam colocar panos quentes na questão, alegando que não houve propriamente um veto à presença do Brasil no clube dos grandes, a Série A das nações. Quem trabalha com comunicação corporativa frequentemente escuta a frase "é preciso gerenciar a expectativa dos clientes". O problema todo é que o governo do presidente Bolsonaro vendeu como grande vitória a entrada com apoio de Trump - que não era líquida e certa - do país na OCDE. Ou seja, gerenciou mal a expectativa do cliente, no caso, a opinião pública brasileira. Não deixa de ser irônico que a Argentina esteja entrando na frente, logo o país vizinho cujo próximo governo provavelmente não será dos mais alinhados a Trump. A questão toda é que o Brasil não "perdeu", como o pobre Fla-Flu que impe