Pular para o conteúdo principal

Dica da Semana: O Estrangeiro, de Albert Camus, livro

Indiferença, falta de empatia e de valores morais de um personagem inviável 

Como no jogo de cubo mágico, em que cada jogador observa a peça, interpreta seus eixos e combinações até decifrá-la, ordenando as faces a seu próprio modo, também pode ser visto assim O Estrangeiro, principal obra do filósofo e escritor franco-argelino Albert Camus, publicada pela primeira vez em 1942.
História breve, 80 páginas, e narrativa simples, até hoje o título provoca discussões filosóficas em torno de seu personagem central e o destino a que é conduzido. Mesmo conhecendo sua história, bastante comentada em publicações, o atrativo da leitura de O Estrangeiro se mantém para checar impressões e formar opinião pessoal sobre o intrigante Meursault.
Um ano após seu lançamento, o romance foi objeto de uma análise publicada sob o título “Explicação de O Estrangeiro”, escrita por um filósofo francês, amigo de Albert Camus:  Jean-Paul Sartre. “O Estrangeiro não é um livro que explica: o homem absurdo não explica, descreve”, afirmou Sartre, que considerou o romance representante do pensamento absurdo – linha filosófica que concebe a vida do homem desprovida de significado real. “Camus limita-se a propor e não lhe importa justificar o que é, por princípio, injustificável”, disse.
As linhas iniciais da obra tornaram-se famosas na literatura, sinalizando a esfera em que vive o personagem. “Hoje, mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem.” Assim começa a narrativa de Meursault, alheio aos acontecimentos, à moral, a emoções, em meio ao cumprimento do rito funerário da mãe. Ele engata a tarefa que tem à frente seguindo em modo básico-protocolar: sem querer ver o corpo para se despedir, sem demonstrar tristeza ou saudade, sem sequer lembrar a idade da velha para informar ao lhe pedirem. Ele espera a conclusão do compromisso, sofre com o calor, se distrai com detalhes do ambiente, recorda que não ia ao asilo há um ano, pois lhe custava o domingo todo, mais o aluguel de um carro. Enterrada a mãe, ele passa o dia de sol na praia, encontra a namorada, pegam um cinema à noite, assistem a uma comédia.
Tipo comum, Meursault trabalha em um escritório, se dá bem com conhecidos, namora uma mulher que deseja. Sem interesse ou envolvimento pelo que o cerca, toma as decisões que precisa a partir do mantra “tanto faz”. Não demonstra propósitos ou valores morais, se move apenas pelos deveres que surgem, pelos interesses pessoais e impulsos. A indiferença e falta de vínculos emerge todo o tempo. Em um deles, a namorada, Maria, o pede em casamento ao que ele inicialmente responde “tanto faz” e logo depois, “tudo bem”. Decepcionada ante a falta de entusiasmo, ela pergunta se a resposta seria igual caso o pedido fosse de outra mulher. “Provavelmente, sim”, diz.
Desprovido de manifestações de empatia, sentimento de bondade ou de maldade, o comportamento frio do franco-argelino tem análises e interpretações divergentes. É, contudo, um equívoco precipitar o julgamento.  Quando as atitudes de Meursault resultam em uma boa ação ou no benefício de alguém, não há mérito seu nisso, apenas fruto do acaso. Do mesmo modo, o inverso. Uma ação sua que tenha resultado ruim, não envolveria intenção. Apesar disso, uma guinada na história impõe novas questões.
Capaz de conquistar simpatias eventuais, o entediado Meursault vai passar o dia na praia na companhia da namorada e conhecidos quando, ao segurar uma arma emprestada, tem a vista ofuscada pelo sol intenso e se vê levado a atirar em um árabe. Ao perceber o que fizera, vendo o homem caído, ele assimila a situação: “Compreendi que destruíra o equilíbrio do dia, o silêncio excepcional de uma praia onde havia sido feliz”, diz. Em seguida, o que faz então nosso herói Meursault? “Voltei então a disparar mais quatro vezes contra um corpo inerte. Era como se batesse quatro breves pancadas à porta da desgraça.” Eis um sinal singelo do desafio apresentado por Camus.
Findas as partes sobre a morte materna e o assassinato na praia, a terceira e última parte é dedicada à prisão e julgamento de Meursault pelo crime. No depoimento de testemunhas, a promotoria concentra o foco da composição de perfil do réu como alguém frio e desumano que abandonara a mãe em um asilo, não esboçara pesar em seu enterro, nem quisera ver o corpo. Ao contrário, saíra rápido e teria ido à praia se divertir já no dia seguinte, assistindo a uma comédia à noite.
No decorrer das audiências, Meursault vislumbra a formação de um quadro tenso à sua frente. Percebe que apesar de sua esperança em obter uma sentença branda, o julgamento pende para a pena capital, guilhotina. Quando finalmente tem oportunidade de se manifestar nos autos, diz não ter tido intenção de matar, que o fizera por causa do sol. Provoca risos. É oferecida, então a chance de se declarar arrependido por não ter demonstrado tristeza no enterro da mãe. “Não, porque não é verdade”, diz.
Intrigante, a história segue com o enigma construído em torno do personagem, o destino a que se vê aprisionado e uma sociedade também a se questionar. Nas palavras de um filósofo francês, “uma obra literária é uma tarefa a cumprir, ela só existe depois que é vista”, disse Jean-Paul Sartre. E ainda: “Você é perfeitamente livre para deixar este livro sobre a mesa. Mas uma vez que o abra, você assume a responsabilidade”, Jean Paul Sartre (por Denise Brito em 29/8/20)


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Um pai

Bruno Covas, prefeito de São Paulo, morreu vivendo. Morreu criando novas lembranças. Morreu não deixando o câncer levar a sua vontade de resistir.  Mesmo em estado grave, mesmo em tratamento oncológico, juntou todas as suas forças para assistir ao jogo do seu time Santos, na final da Libertadores, no Maracanã, ao lado do filho.  Foi aquela loucura por carinho a alguém, superando o desgaste da viagem e o suor frio dos remédios.  Na época, ele acabou criticado nas redes sociais por ter se exposto. Afinal, o que é o futebol perto da morte?  Nada, mas não era somente futebol, mas o amor ao seu adolescente Tomás, de 15 anos, cultivado pela torcida em comum. Não vibravam unicamente pelos jogadores, e sim pela amizade invencível entre eles, escreve Fabrício Carpinejar em texto publicado nas redes sociais. Linda homenagem, vale muito a leitura, continua a seguir.  Nos noventa minutos, Bruno Covas defendia o seu legado, a sua memória antes do adeus definitivo, para que s...

Dica da Semana: Tarso de Castro, 75k de músculos e fúria, livro

Tom Cardoso faz justiça a um grande jornalista  Se vivo estivesse, o gaúcho Tarso de Castro certamente estaria indignado com o que se passa no Brasil e no mundo. Irreverente, gênio, mulherengo, brizolista entusiasmado e sobretudo um libertário, Tarso não suportaria esses tempos de ascensão de valores conservadores. O colunista que assina esta dica decidiu ser jornalista muito cedo, aos 12 anos de idade, justamente pela admiração que nutria por Tarso, então colunista da Folha de S. Paulo. Lia diariamente tudo que ele escrevia, nem sempre entendia algumas tiradas e ironias, mas acompanhou a trajetória até sua morte precoce, em 1991, aos 49 anos, de cirrose hepática, decorrente, claro, do alcoolismo que nunca admitiu tratar. O livro de Tom Cardoso recupera este personagem fundamental na história do jornalismo brasileiro, senão pela obra completa, mas pelo fato de ter fundado, em 1969, o jornal Pasquim, que veio a se transformar no baluarte da resistência à ditadura militar no perío...

Dica da semana: Nine Perfect Strangers, série

Joia no Prime traz drama perturbador que consagra Nicole Kidman  Dizer que o tempo não passou para Nicole Kidman seria tão leviano quanto irresponsável. E isso é bom. No charme (ainda fatal) de seus 54 anos, a australiana mostra que tem muita lenha para queimar e escancara o quanto as décadas de experiência lhe fizeram bem, principalmente para composição de personagens mais complexas e maduras. Nada de gatinhas vulneráveis. Ancorando a nova série Nine Perfect Strangers, disponível na Amazon Prime Video, a eterna suicide blonde de Hollywood – ok, vamos dividir o posto com Sharon Stone – empresta toda sua aura de diva para dar vida à mística Masha, uma espécie de guru dos novos tempos que desenvolveu uma técnica terapêutica polêmica, pouco acessível e para lá de exclusiva. Em um lúdico e misterioso retiro, a “Tranquillum House”, a exotérica propõe uma nova abordagem de tratamento para condições mentais e psicossociais manifestadas de diferentes formas em cada um dos nove estranhos, “...