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Por que a mortalidade pela Covid-19 é tão variável ao redor do mundo?

O Brasil lamenta os mais de 100 mil mortos pela doença. Sofrimento incalculável, que não poupa nenhuma região. Sabemos que idosos com doenças associadas possuem a maior taxa de mortalidade. Também chama a atenção o maior número de mortes entre pessoas economicamente vulneráveis, em regiões com escassez de recursos, bem como de unidades de saúde com profissionais pouco experientes e estrutura técnica deficiente. Algo, entretanto, tem chamado a atenção: a diferença de casos notificados e mortes no sudeste da Ásia, comparados aos relatados por outros continentes, principalmente Europa e Américas, escreve Esper Kallás em sua coluna na Folha de S. Paulo. Texto muito interessante, publicado dia 11/8 no jornal, continua a seguir.

Dados compilados pelo Instituto Estáter demonstram diferenças muito grandes na mortalidade pela Covid-19 em diferentes países. Até a semana passada, foram 492 mortes por milhão de habitantes nos Estados Unidos, 462 na Europa e 487 no Brasil. Os números equivalentes no sudeste asiático são surpreendentemente menores: 19 mortes por milhão de habitantes na Indonésia e Filipinas, 8 no Japão, 6 na Coreia do Sul, 5 em Singapura, 4 na Malásia e 3 na China.
Por que tamanha disparidade? Seria possível que a explicação estivesse associada à quarentena estrita e precoce, imposta pela China; à estratégia mais ampla de testes e isolamento, aplicada pela Coreia do Sul e por Singapura; ou pelo maior uso de máscaras, como já acontecia anteriormente em Hong Kong? Ainda, seriam a superioridade do sistema de saúde em algumas regiões ou possível manipulação de dados epidemiológicos responsáveis pela diferença?
A enorme discrepância desses índices, comparativamente ao Ocidente, torna as explicações pouco plausíveis. O Vietnã, país que se aproxima de 100 milhões de habitantes, com IDH de 0.693, 118º no mundo —um tanto atrás do Brasil, que ocupa a 79ª colocação— notificou somente 16 mortes por Covid-19 até a semana passada. Deve haver alguma razão que justifique pandemia tão menos severa no extremo Oriente do que no outro lado do globo.
É possível que a onda pandêmica ainda não tenha terminado na Ásia? Ou mal tenha começado? Difícil acreditar nessa hipótese, considerando que esta é a região de origem da pandemia.
Uma teoria também provável é que, antes da pandemia de Covid-19, uma parte da população já tivesse alguma imunidade contra o novo coronavírus. Como isso seria possível? A família de coronavírus possui grande número de representantes em répteis, aves e mamíferos. Sabemos que sete desses coronavírus saltaram para humanos, sendo o Sars-CoV-2 o último que trilhou esse caminho.
A primeira possibilidade é que os coronavírus que causam resfriado comum possam conferir alguma proteção contra os demais coronavírus, que são quatro: dois do gênero alfa, batizados de 229E e NL63, e dois do beta, chamados de HKU1 e OC43. Estes dois últimos são os mais parecidos com o Sars-CoV-2.
Ainda não temos informações suficientes para dizer que esse seja, mesmo, o caso. Mas é uma explicação possível. Será que outros coronavírus já haviam feito o “salto” na população do sudeste asiático em algum momento anterior e, com isso, conferido alguma proteção contra a Covid-19 a essa população?
Muitos estudos têm identificado pessoas que, mesmo sem apresentar quaisquer sintomas da doença, sem isolamento do vírus no organismo e sem anticorpos detectáveis contra o Sars-CoV-2, possuem resposta imune celular contra o vírus. Essa constatação traz muitas implicações e várias outras indagações.
O que podemos aprender com o comportamento do vírus na Ásia? Seria esse comportamento aplicável a outros lugares? Como podem ser mensuradas tais respostas preexistentes na população? Como isso pode interferir nos resultados dos estudos de vacinas?
A realidade é complexa e explicações, simplistas não são cabíveis. Estamos, coletivamente, em busca de mais respostas sobre as variáveis que expliquem o diferente comportamento da pandemia ao redor do mundo.
Esper Kallás é médico infectologista, é professor titular do departamento de moléstias infecciosas e parasitárias da Faculdade de Medicina da USP e pesquisador na mesma universidade.



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